O que o óleo de palma revela sobre colonização e o mercado global




Por Rosa Vieira

O óleo de palma é extraído da polpa dos frutos da palmeira Elaeis guineensis, conhecida no Brasil pelo nome de dendezeiro. É o óleo vegetal mais produzido do mundo e com menor custo. Outros óleos vegetais, como os óleos de soja, de girassol e de canola, demandam entre cinco e oito vezes mais terra para a produção do que o de palma. É por este e outros fatores que em agosto de 2020 a produção global de óleo de palma chegou a 74,99 milhões de toneladas, enquanto a do óleo de soja foi de 59,86 milhões de toneladas (Foreign Agricultural Service, 2021). Esta substância está presente na maioria das mercadorias industrializadas que consumimos, como alimentos processados, cosméticos e itens de limpeza.

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Há quase duas décadas, ONGs, pesquisadores, partidos políticos e mídias denunciam a destruição ambiental acarretada pela agroindústria do óleo de palma. Atualmente o sudeste asiático concentra 80% da produção global. O setor agroindustrial é o principal responsável pela desflorestação na Indonésia, tornando este país um dos principais emissores globais de gases de efeito estufa, atrás apenas dos EUA e da China. Ambientalistas passaram a defender o consumo consciente de produtos “palm oil free” e mobilizaram campanhas como o chamado feito pela ex-ministra da ecologia na França para o boicote à pasta de avelã Nutella feita com tal ingrediente.

Esta tese desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, Paris) mostra como o fenômeno global do óleo de palma, da relação entre indústria e expansão da monocultura da palmeira Elaeis guineensis, esteve inserido em histórias coloniais e em dinâmicas relacionais locais. A questão é explorada a partir de uma pesquisa etnográfica em aldeias da floresta do Mayombe, na República Democrática do Congo, onde foram criadas plantações para aumentar o fornecimento de frutos (dendê) para empresas estrangeiras instaladas na região durante o período colonial belga (1908-1960).

A QUAL PERGUNTA A PESQUISA RESPONDE?

A palmeira Elaeis guineensis é nativa de áreas da África Central e ocidental, como a floresta do Mayombe que faz parte da Bacia do Congo, segundo maior complexo florestal do planeta depois da Amazônia.

A vida cotidiana dos povos Yoómbe depende desta planta, da qual extraem frutos para cozinhar e para elaborar óleo de palma, pegam suas folhas para fazer vassouras e coletam da sua seiva o vinho de palma, bebida fermentada, alcoólica, ligada aos ancestrais e muito consumida nas aldeias. Dentre estas variadas apropriações da palmeira, a tese indaga como o óleo de palma se tornou e se torna dinheiro nas aldeias do Mayombe. Ele é o principal meio de acesso a dinheiro e, ao mesmo tempo, funciona também como dinheiro: os galões de óleo de palma (de aproximadamente 25 litros) são empregados enquanto unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor. No decorrer da pesquisa, analisei como o passado estava presente nas paisagens das aldeias e nas memórias coletivas de seus habitantes, que indicavam a inserção do Mayombe nos fluxos globais de pessoas escravizadas e de óleo de palma.


POR QUE ISSO É RELEVANTE?

A tese indica como a transformação do óleo de palma em uma mercadoria global para alimentar a industrialização europeia dependeu inicialmente da exploração de territórios africanos. O trabalho descreve como um povo específico, os Yoómbe, vivenciou e também transformou esta experiência. As aldeias na floresta do Mayombe são atualmente espaços de resistência à expansão monocultora em que as pessoas fazem e reconstituem suas vidas em meio a e apesar de projetos coloniais. Trata-se de uma experiência distinta do que ocorre hoje em dia no sudeste asiático, onde há uma produção agroindustrial em larga escala do óleo de palma para alimentar a demanda global, que tem gerado problemas socioambientais.


Na década de 1950, o antigo Congo belga chegou a ser o segundo maior exportador de óleo de palma, atrás apenas da Nigéria, em grande medida devido às Huilleries du Congo Belge (HCB). Elas foram criadas pelo britânico Willian Lever, o qual encontrou no Congo uma maneira de expandir os seus empreendimentos. Em 1929, as HCB fundiram-se com a empresa holandesa Margarine Unie e deram origem à Unilever, multinacional bastante ativa nos dias de hoje. Diferente de outras regiões do Congo, o Mayombe não teve a presença das HCB, mas foi um local de experimentação colonial. Nas primeiras décadas do século 20, a administração belga investiu no estudo botânico da espécie Elaeis guineenses. Mudas de sementes modificadas foram inseridas em aldeias da floresta, com o objetivo de aumentar a produção industrial de óleo de palma, garantindo o fornecimento de frutos para as empresas estrangeiras instaladas na região.

As mudas plantadas durante este período são chamadas pelos Yoómbe de palmeiras phúútú. O termo da língua kiyombe é empregado, guardando as variações de grafia, também em outras línguas bantu. Ele pode fazer referência a Europa, aos estrangeiros, aos brancos e aos portugueses. Mas, neste caso, o termo é utilizado para qualificar palmeiras trazidas pelos belgas, externas ao conjunto de humanos, não humanos e espíritos que compõem a floresta do Mayombe. Hoje em dia, as plantações de palmeiras phúútú estão praticamente desativadas, seus frutos só são extraídos ocasionalmente para serem usados para algum fim coletivo, como para o preparo da comida em casamentos e funerais.

A elaboração cotidiana de óleo de palma que é vendida em feiras locais da região se baseia sobretudo na extração de frutos das palmeiras chamadas de yóómbe pelos habitantes das aldeias. Elas estão situadas em parcelas de terras individuais (herdadas, compradas ou alugadas), mas não estão dispostas em plantações. Espalham-se de acordo com a ação humana da reprodução de pequenos roçados junto ao cultivado dos alimentos.


RESUMO DA PESQUISA

Trata-se de uma etnografia que englobou 11 meses. Nas duas primeiras fases, a pesquisa foi realizada na cidade de Matadi, localizada à beira do Rio Congo, na província do Kongo Central. Dediquei-me ao aprendizado de duas línguas bantu, Lingala e Kiyombe, o que me permitiu conversar com as pessoas nos fluxos de suas atividades cotidianas e evitar diálogos mediados por intérpretes e/ou pelo idioma colonial (o francês). Morei em casas dos familiares de um refugiado congolês que foi meu aluno de português no Rio de Janeiro. Eles constituíram uma rede de apoio e me abriram muitas portas no trabalho de campo. Analisei o comércio de óleo de palma na área urbana, que, assim como outras atividades nas feiras, é marcado pela intensa participação de vendedoras mulheres. Algumas delas se dirigem semanalmente para comprar galões de óleo de palma na floresta do Mayombe que depois revendem em Matadi.


Na terceira e mais longa fase de campo, eu residi numa aldeia do Mayombe, que faz parte de um agrupamento de sete aldeias com cerca de 1.500 pessoas. Os agrupamentos são as principais organizações tradicionais da República Democrática do Congo, estão vinculados às chefias estabelecidas durante o período colonial belga e mantêm ainda hoje funções administrativas locais. Em geral, as aldeias são compostas por casas, nas quais moram um casal com seus filhos e/ou sobrinhos. As casas estão ligadas a terras, onde há roçados e palmeiras. Os homens cortam os frutos do alto da palmeira, as mulheres e crianças ajudam a catá-los. A maior parte dos frutos cortados das palmeiras é levada para as máquinas feitas pelos próprios habitantes com troncos de madeira e um cilindro de ferro chamadas waksi. Estas são operadas com a força dos corpos masculinos que giram seu eixo principal para que o óleo seja extraído da polpa dos frutos.


Boa parte dos dados apresentados na tese são resultado também da minha participação em universos masculinos da aldeia porque a elaboração e venda dos galões de óleo são responsabilidades dos homens. Também acompanhei bastante mulheres e crianças quando elas catavam frutos e preparavam comida. Participar de ambos os espaços, feminino e masculino, foi um privilégio permitido pelo meu lugar como branca e estrangeira. A minha presença também atualizou memórias coletivas sobre o passado do tráfico transatlântico de africanos escravizados. Ela acionou relações de poder historicamente constituídas e cotidianamente vivenciadas. Os sujeitos deste encontro etnográfico (eu e os Yoómbe) pertencemos a localidades vinculadas e determinadas também por tal comércio. A região do Congo-Angola foi das que mais forneceu africanos para o Brasil, direcionados principalmente para o porto do Rio de Janeiro para abastecer a economia cafeeira em expansão.


QUAIS FORAM AS CONCLUSÕES?

A tese mostrou como a exploração colonial transformou a relação entre os Yoómbe e a palmeira. A comoditização do óleo de palma produziu novas modulações nas aldeias do Mayombe.


Primeiro, teve impacto nas relações de gênero. Os frutos da palmeira passaram a ter também um destino masculino. Não mais direcionados apenas para as panelas na cozinha, eles foram levados para as waksi que se multiplicaram no Mayombe na segunda metade do século 20. A mudança da técnica para extração do óleo da polpa dos frutos permitiu o aumento da produção local para abastecer as casas das cidades, também fortaleceu o domínio masculino sobre os frutos e sobre o óleo.


Além disso, a comoditização do óleo de palma conduziu à modificação do universo monetário plural do vilarejo. Os galões de óleo se tornaram dinheiros presentes nas relações cotidianas, diferenciando-se de outras moedas (como o vinho de palma, o engradado de cerveja, o galo, entre outros) por não ser empregado para transações referentes às alianças matrimoniais ou às penalizações estabelecidas pelos chefes.


Uma terceira transformação estudada na tese faz referência à relação com a terra. O interesse europeu no óleo de palma contribuiu para que a extração dos frutos passasse a depender da posse ou do aluguel de uma terra. Hoje em dia, as parcelas são chamadas pelos nomes próprios dos seus donos e os seus limites são marcados por riachos e árvores. Elas são valorizadas pela quantidade e qualidade das palmeiras. Assim, a comoditização dos frutos e do óleo motivou uma comoditização das palmeiras e, por consequência, da terra. Mas, além das parcelas individuais, nas aldeias do Mayombe há áreas da floresta que são coletivas e sagradas, onde atividades extrativas e de cultivo do solo estão interditadas. Além disso, embora as palmeiras e os frutos extraídos não sejam coletivizados, a elaboração do óleo de palma é coletiva, baseada em relações familiares, de vizinhança e de amizade.


Embora o óleo de palma tenha se tornado dinheiro, foi importante identificar o que o dinheiro significa naquele contexto social e o que a sua circulação revela. Quando o óleo é colocado em galões de 25 litros, ele se torna um produto que pode ser vendido nas cidades, se inserindo em circuitos de dívidas e empréstimos. As pessoas emprestam dinheiro na forma de galões de óleo, ou guardam galões como modo de poupar. Também pegam frequentemente dinheiro uns com os outros (na forma de galões) de outras pessoas para conseguirem sustentar as suas famílias. Isso não significa que o dinheiro circule e seja compartilhado de maneira harmônica e sem conflitos. A circulação de dinheiro não é regulada por instituições e documentos, mas sim por uma moralidade e por relações de confiança que podem ser, por vezes, quebradas.


QUEM DEVERIA CONHECER OS SEUS RESULTADOS?

A pesquisa pode interessar pessoas que trabalhem com questões ecológicas, efeitos globais das monoculturas e povos que habitam outras florestas do planeta. Este estudo mostra como a destruição de florestas e a expansão da monocultura está inserida em relações coloniais que operam num plano local, no cotidiano de pessoas do Mayombe. O trabalho mostra como a crítica ambiental precisa ser também uma crítica colonial, que denuncie como a exploração do meio ambiente esteve vinculada à exploração de outros povos, de seus modos de vida e culturas. Os povos da floresta do Mayombe, como aqueles da floresta amazônica, ensinam-nos outras maneiras de habitar o mundo, que se baseiam na aliança com seres não humanos e com espíritos, bem como com moralidades relativas ao “saber viver”, estar e morar com outros.

Embora o óleo de palma tenha se tornado dinheiro, foi importante identificar o que o dinheiro significa naquele contexto social e o que a sua circulação revela. Quando o óleo é colocado em galões de 25 litros, ele se torna um produto que pode ser vendido nas cidades, se inserindo em circuitos de dívidas e empréstimos. As pessoas emprestam dinheiro na forma de galões de óleo, ou guardam galões como modo de poupar. Também pegam frequentemente dinheiro uns com os outros (na forma de galões) de outras pessoas para conseguirem sustentar as suas famílias. Isso não significa que o dinheiro circule e seja compartilhado de maneira harmônica e sem conflitos. A circulação de dinheiro não é regulada por instituições e documentos, mas sim por uma moralidade e por relações de confiança que podem ser, por vezes, quebradas.


QUEM DEVERIA CONHECER OS SEUS RESULTADOS?

A pesquisa pode interessar pessoas que trabalhem com questões ecológicas, efeitos globais das monoculturas e povos que habitam outras florestas do planeta. Este estudo mostra como a destruição de florestas e a expansão da monocultura está inserida em relações coloniais que operam num plano local, no cotidiano de pessoas do Mayombe. O trabalho mostra como a crítica ambiental precisa ser também uma crítica colonial, que denuncie como a exploração do meio ambiente esteve vinculada à exploração de outros povos, de seus modos de vida e culturas. Os povos da floresta do Mayombe, como aqueles da floresta amazônica, ensinam-nos outras maneiras de habitar o mundo, que se baseiam na aliança com seres não humanos e com espíritos, bem como com moralidades relativas ao “saber viver”, estar e morar com outros.


Link para matéria: https://pp.nexojornal.com.br/academico/2022/O-que-o-%C3%B3leo-de-palma-revela-sobre-coloniza%C3%A7%C3%A3o-e-o-mercado-global

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