A bebida sagrada que esquenta as memórias de Pedro Nava

O crambambali pulsa no coração geográfico de Minas Gerais, a terra do escritor

Por Daniel de Mesquita Benevides.

Sorte nossa que existiu Pedro Nava.

Tudo em seus livros de memórias é saboroso. E há de tudo nos seis volumes, inclusive o impensável. Literatura, política, família, costumes, história, amores, biologia, culinária. E, como lembrou o grande tradutor Eduardo Brandão, reflexões sobre bebidas tradicionais.

A prosaica batida, por exemplo, ganha ares etéreos em "Baú de Ossos" , o livro de estreia: "é o aperitivo feito com pinga, limão e açúcar, a clara facultativa posta em neve, o gelo contado, pesado e medido e o gênio que transforma esses elementos pobres na bebida altiva e já simbólica, que não pode ter gosto nem cheiro da cachaça, do limão, do açúcar ou do ovo que nela entraram e passaram por mutação. "


A quantidade do açúcar, por sua vez, é questão da importância máxima, colocada como sinestesia: "Compor com o açúcar é como compor com a nota musical ou a cor, pois uma e outra variam e se desfiguram, configuram ou transfiguram os outros filhos e os outros tons que lhes são aproximam ou avizinham.


"É preciso, segundo o autor, favorecer a sintese do gosto. Para isso, cada ingrediente carrega uma significação que extrapola o imediato. A dosagem das coisas se espelha no equilíbrio caloroso das palavras. E é na extensa paleta de paladares que surgem as mais variadas madeleines.


Na noite de São João , uma moqueada, feita de abóbora, com seu "cheiro de cana queimada e gosto ainda mais profundo que o das castanhas", traz uma revelação etílica, de tempos imemoriais: "Comia-se no fim das festas de junho bebendo crambambali e cantando até cair ao pé das brasas que morriam. "


O crambambali é uma bebida sagrada, explica, que pulsa no coração geográfico de Minas. Mais que um quentão, um incêndio, já que seu preparo exige destreza em pirotecnia. Nava conta que Manuel Bandeira se entusiasmou tanto com aquelas sensações alumiadas que espalhou a boa nova pelos jornais.


Já o casal de intelectuais Eugênia e Álvaro Moreyra adotou a poção em suas disputadas recepções. Conheceram a mistura num texto do historiador Teixeira Soares, publicado em 1930, na revista Movimento Brasileiro.


Nele, Soares foi sobre o explorador Richard Francis Burton , tradutor de Camões, das Mil e Uma Noites e do Kama Sutra , que esteve no Brasil em amostra do século 19. Figura byroniana, Burton percorreu as terras altas de Minas e todo o vale do São Francisco. Passou também pelo Rio, Petrópolis e Juiz de Fora de Nava. Ficou encantado com o que viu e chegou a propor a poligâmia como forma de povoar mais rapidamente o país.

Ao se deparar com o crambambali, "um brulé nativo ", não poupou elogios e elizu os brindes em versos, cantados a altos brados. Sua receita, como aparece em "Explorações das Terras Altas do Brasil", acrescenta uma garrafa de vinho do porto à cachaça em fogo.

Variações desse tipo são comuns. Na Polônia havia desde o século 16 o licor de cereja krambambuli. Uma bebida nacional de Belarus é uma krambambula, vodca com mel e especiarias. Palavras com origem provável num termo do alemão castiço, significando zimbro, elemento fundamental do gim.

Nessa ciranda genealógica, reencontramos Pedro Nava: "Gosto de saber quem está na minha mão (...) no meu gesto, na minha palavra." Sabemos com ele.

Crambambuli (receita de Pedro Nava)

"Uma travessa cheia de pinga, rodelas de limão, lascas de canela e rapadura. Toca-se fogo na cachaça e deixa-se esquentar bastante. Apagar, grosso e servir em canequinhas de gomo de bambu."


Fonte: Folha de São Paulo 

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