José de Souza Martins: A deplorável satanização do quilombo Cafundó
Escolas do país têm adotado a criativa orientação de visitar e conhecer o que os historiadores europeus chamam de lugares da memória, marcos históricos e antropológicos da identidade do povo
Foi parar na polícia o questionamento de uma visita pedagógica ao quilombo Cafundó, no dia 18 de agosto, de adolescentes do 7º ano, acompanhados de professores, de uma escola pública de Salto de Pirapora (SP).
A mãe de um aluno, que não participou da visita, viu na internet fotos do lugar e inseriu na rede um protesto, definindo o quilombo como verdadeira macumbaria. Certamente não é o caso de afirmar, perguntando, como faz o pai da atual onda de intolerância social e cultural no Brasil: “E daí?”.
Não é o caso, porque a ocorrência expressa a extrema gravidade de tudo que a ocorrência significa e acarreta como violação da liberdade pedagógica dos docentes em relação ao teor, aos temas e às técnicas de ensino que adotam, com base em programas oficiais.
Especialmente num país como o nosso, que vem sendo afogado na ignorância crescente difundida e imposta pela intolerância das minorias obscurantistas. Quanto mais ignorante for o povo em relação ao que somos como sociedade da diversidade democrática, mais fácil será, como vimos no período governamental terminado em 31 de dezembro, tutelar o país como sociedade carneiril, condenada a bajular os donos do poder e a bater-lhes continência.
Escolas do país têm adotado a criativa orientação de visitar e conhecer o que os historiadores europeus chamam de lugares da memória, marcos históricos e antropológicos da identidade do povo para nos reconhecermos como membros e protagonistas responsáveis pela sociedade em que vivemos.
O Colégio de Aplicação da Universidade de São Paulo promove visitas educativas de seus alunos à aldeia guarani do Jaraguá para que ali passem o dia, conheçam os costumes dos indígenas, seu modo de viver, seus alimentos, suas ideias, sua cultura, sua língua. Um modo de reconhecerem sua própria humanidade na humanidade do indígena que os acolhe e lhes ensina o que sabem. O saber como um privilégio e uma revelação, um legado às novas gerações.
A história dos pretos do Cafundó é particularmente significativa. Foi uma descoberta dos anos 1970, quando um jornalista a revelou. Tratava-se do pequeno remanescente de um dos últimos grupos de escravos trazidos da África para o Brasil, clandestinamente, depois da lei de 1850 que, tardiamente, proibira o tráfico negreiro. O grupo ainda falava e fala fragmentos de uma língua africana. A notícia atraiu a atenção do professor Zeferino Vaz, professor, reitor e fundador da Unicamp - a Universidade Estadual de Campinas.
Ele sugeriu a um dos professores de antropologia da instituição, Peter Fry, especialista em nossas populações originárias da África, que se associou a outro professor da escola, Carlos Vogt, linguista e poeta. Ambos são autores de obras respeitadas e referenciais.
O estudo do grupo levou anos. A língua é a quimbundo, do grupo linguístico Bantu, situado em largo território da região subsaariana. Zumbi dos Palmares era originário de um desses grupos. Bantu quer dizer gente, humano, portanto o oposto do personificado pelo ato da mulher que fez a denúncia contra a escola. Gente que tem muito a ensinar aos que perfilham concepções autoritárias e intolerantes.
O grupo original do Cafundó, em rigor, já não pratica uma religiosidade própria e original. São majoritariamente católicos e evangélicos e residualmente praticantes da umbanda em relação aos quais é difícil falar em macumba ou macumbaria, uma inovação vocabular de quem não só desconhece o assunto, mas é hostil a um grupo humano como aquele, não porque o conheça, mas justamente porque o desconhece e não quer conhecê-lo. Coisas de pessoas que querem o país inteiro só para elas, que querem vetar e proibir a diversidade cultural da formação das novas gerações.
A umbanda nasceu no Brasil como resposta adaptativa à repressão policial contra os cultos africanos, confinando em práticas ocultas e mutiladas a devoção aos orixás, especialmente a referência a Exu, que abre caminho e tem precedência nos ritos. Acompanhei na roça, em região não muito distante do Cafundó, uma procissão de São Sebastião precedida por São Benedito, para que não chovesse e não se perturbasse a festa do santo branco. Era Exu disfarçado, o abridor de caminhos.
Segundo Peter Fry e Carlos Vogt, a língua africana mutilada, que ainda se fala no Cafundó, a cupópia, do quimbundo kupupia, falar, é uma língua usada para conversação exclusivamente entre os membros da comunidade para conversa entre eles, o bate-papo deles.
A deplorável satanização do quilombo Cafundó é na verdade expressão da mais deplorável ainda presunção de muitos neste país de que têm o direito de intrometer-se na educação das novas gerações, de meter o nariz na educação dos filhos dos outros.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).
Fonte: Valor Econômico
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