A Tiquira já era conhecida dos povos nativos
Receitas e fungos usados na produção da tiquira variam desde o século XVII
Descritas por viajantes desde o século XVII, as bebidas fermentadas de amido do norte do Brasil estavam associadas a um único modo de produção: o acréscimo da saliva, que contém amilase, à massa da mandioca mastigada pelos povos nativos e depois deixada em um recipiente para fermentar. Amilase é uma enzima que decompõe o amido.
Em 1994, o botânico norte-americano Terry Henkel, da Universidade Estadual de Humboldt, nos Estados Unidos, percorreu as aldeias dos povos Wai Wai e Wapisiana na Guiana e identificou outro método. Como detalhado em um artigo publicado em março de 2004 na Economic Botany, os indígenas cobriam a massa de mandioca com folhas de pau-pólvora (Trema micrantha), sobre as quais cresciam fungos do gênero Rhizopus, também aptos a digerir o amido; depois de alguns dias as folhas com o bolor branco eram trituradas e acrescentadas à massa.
O ecólogo italiano Alessandro Barghini circulou mais nas terras indígenas. Entre os anos 1970 e 2010, como consultor de projetos de eletrificação rural, ele conta que conheceu os Ticuna, Yanomami, Macuxi e outros grupos da Amazônia. “Os visitantes tinham de tomar os fermentados para serem aceitos”, conta. Uma das bebidas produzidas geralmente com saliva era o tarubá, leitoso – não fermentado e depois destilado, como a tiquira – ainda produzido no Maranhão, Alagoas e Piauí.
“As bebidas produzidas com fermentos locais poderiam levar os aromas e sabores da Amazônia para outras regiões”, sugere Barghini. “Precisamos valorizar o conhecimento tradicional.” Em um artigo publicado em novembro de 2022 no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas, ele relata ter encontrado 43 receitas de fermentação de mandioca para a produção de tiquira e tarubá – as primeiras descrições são de 1667, de jesuítas. Os povos que produzem as bebidas hoje encontram-se na Nicarágua e norte da América do Sul (Colômbia, Venezuela, Guianas, Suriname, Equador, Peru e Brasil). Os fungos identificados são A. niger e A. oryzae, Neurospora crassa e N. sitophila, Paecilomyces sp. e Penicillium porpurogenum, além de Rhizopus.
“Esses estudos trazem perspectivas interessantes sobre o estudo da alimentação indígena”, comenta o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). “Sei de grupos que ainda fazem caxiri e caiçuma [outras bebidas fermentadas, mas não destiladas, à base de mandioca] ou chicha [com milho], como os Tikuna no alto Solimões, os Macuxi em Roraima, os Palikur no Oiapoque e os Tupari em Rondônia. Os ingredientes mudam, mas o princípio é o mesmo.”
Artigos científicos
ALMEIDA, R. M. et al. Aguardente de mandioca tiquira: Um potencial de Indicação Geográfica para o estado do Maranhão. Cadernos de Prospecção. v. 16, n. 5, p. 1728-41. 1° jul. 2023.
BARGHINI, A. Novos dados sobre a fermentação amilolítica na Amazônia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas. v. 17, n. 2. 14 nov. 2022.
HENKEL, T. W. Manufacturing procedures and microbiological aspects of Parakari, a novel fermented beverage of the wapisiana amerindians of Guyana. Economic Botany. v. 58, p. 25-37. mar. 2004.
LIMA, T. T. M. et al. Traditional Brazilian fermented foods: Cultural and technological aspects. Journal of Ethnic Foods. v. 9, 35, p. 1-15. 2 set. 2022.
SOUZA, I. de et al. Cassava biomass transformation by Aspergillus oryzae. Journal of Agricultural Science. v. 8, p. 37. ago. 2016.
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