O bruxo e a comida, Machado de Assis e a culinária.

Uma vertente pouco cometada do nosso maior escritor, foi sua crítica mordaz aos costumes alimentares da sua época, as afetações gastronômicas afrancesadas de um Rio que transitava entre suas contradições.

Morador do morro do Livramento (bairro da Saúde), vendedor de balas na infância, tipógrafo aos 17 anos, Joaquim Maria Machado de Assis foi um vencedor: poeta, aos 16 anos publicou seu primeiro trabalho, ensaísta, teatrólogo, cronista, alcançou o reconhecimento do público através de contos e romances.

No século XIX jornalismo e literatura andavam de mãos dadas: jornais e revistas da moda começavam a dedicar boa parte de suas páginas à família, através de ensinamentos religiosos, culinária, moda europeia e boa dose de novelas, também chamadas de “folhetins”.
Da mesma forma que Gustave Flaubert e Honoré de Balzac em Paris, Machado de Assis destacava-se no jornalismo do Rio de Janeiro escrevendo sobre mulheres e para mulheres; amores, ciúmes, frustrações, e até mesmo adultério e prostituição – temas pouco comuns na literatura brasileira do século XIX – eram abordados por Machado de Assis com delicadeza e profundidade em um verdadeiro trabalho de análise da alma feminina, precursor a Freud(1856/1939).
A doença provavelmente foi a maior responsável por boa parte de seu radical e incurável pessimismo.

Era apaixonado por doces.
Uma prova é uma de suas declarações: “O princípio social do Rio de Janeiro é o doce de coco e a compota de marmelo”. Machado adorava tomar chá nas tradicionais confeitarias cariocas da época (Castelões, Ouvidor, Pascoal), consideradas templo de luxo do Rio e frequentadas por políticos e literatos.
O cardápio dessas confeitarias incluía éclairs de chocolate, baba ao rum, madeleines, brioches, pasteis de nata.

“Embalde alguns fiéis cidadãos vão ao Castelões, às quatro horas da tarde, absorver duas ou três mães-bentas, excelente processo para abrir a vontade de jantar. Embalde um partido eclético se lança ao uso do pastel de carne com açúcar, conciliando assim, num só bocado, o jantar e a sobremesa. Embalde as confeitarias continuam a comemorar a morte de Jesus, na quinta-feira santa, armando-se das mais vermelhas sanefas, encarapitando os mais belos cartuchos de bombons, que em algum tempo se chamaram confeitos, recebendo enfim um povo ávido de misturar balas de chocolate com as lágrimas de Sião. 
Eram, e são esforços generosos; mas a corrupção dos tempos não permite fazê-los gerar alguma coisa útil. 
A grande maioria acode às urgências do estômago com o sanduíche, não menos peregrino que o bife cru, e não menos sórdido; ou com o croquete, estrangeirice do mesmo quilate; e a decadência e a morte do doce parecem inevitáveis.”

“A vida, por exemplo, comparada a um banquete é ideia felicíssima. Cada um de nós tem ali o seu lugar; uns retiram-se logo depois da sopa, outros do coup du milieu, não raros vão até a sobremesa…” (Machado de Assis, A Gazeta de Notícias, 1894)

Uma de suas questões principais era o questionamento quanto ao uso demasiado de expressões francesas nos cardápios e a influência da culinária daquele país na vida da elite brasileira.
Naquela época, os cardápios eram listados inteiramente em francês, sem tradução.

“Nunca comi croquettes, por mais que me digam que são boas, só por causa do nome francês. Tenho comido e comerei filet de boeuf, é certo, mas com restrição mental de estar comendo lombo de vaca. Nem tudo, porém, se presta a restrições; não poderei fazer o mesmo com as bouchées de dames, por exemplo, porque bocados de senhoras dá ideia de antropofagia, pelo equívoco da palavra”.

“Machado era sóbrio ao se alimentar”, diz Rosa Belluzzo, especialista em Antropologia Cultural e História da Alimentação. “Mesmo porque era muito doente e isso o limitava para comer. De todo modo, homem de seu tempo, acompanhava as transformações do Rio naquela época e isso incluía os hábitos alimentares.”

A mesa na obra
“Era à sobremesa; ninguém já pensava em comer. No intervalo das glosas, corria um burburinho alegre, um palavrear de estômagos satisfeitos; os olhos moles e úmidos, ou vivos e cálidos, espreguiçavam-se ou saltitavam de uma ponta à outra da mesa, atulhada de doces e frutas, aqui o ananás em fatias, ali o melão em talhadas, as compoteiras de cristal deixando ver o doce de coco, finamente ralado, amarelo como uma gema – ou então o melado escuro e grosso, não longe do queijo e do cará. De quando em quando um riso jovial, amplo, desabotoado, um riso de família, vinha quebrar a gravidade política do banquete”. Memórias Póstumas de Brás Cubas.

“Marcela franziu a testa, cantarolou uma seguidilha, entre dentes; depois queixou-se do calor, e mandou vir um copo de aluá. Trouxe-lho a mucama, numa salva de prata, que fazia parte dos meus 11 contos”. Memórias Póstumas de Brás Cubas.

”Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce «por pirraça»; e eu tinha apenas seis anos”… Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Receitas de confeitaria
Em uma de suas crônicas, Machado de Assis comenta o lançamento de um livro de receitas de confeitaria.

“É fora de dúvida, que a literatura confeitológica sentia necessidade de mais um livro em que fossem compendiadas as novíssimas fórmulas inventadas pelo engenho humano para o fim de adoçar as amarguras deste vale de lágrimas. Tem barreiras a filosofia; a ciência política acha um limite na testa do capanga. Não está no mesmo caso a arte do arroz-doce, e acresce-lhe a vantagem de dispensar demonstrações e definições. Não se demonstra uma cocada, come-se. Comê-la é defini-la.
No meio dos graves problemas sociais cuja solução buscam os espíritos investigadores do nosso século, a publicação de um manual de confeitaria, só pode parecer vulgar a espíritos vulgares; na realidade, é um fenômeno eminentemente significativo. 
Digamos todo o nosso pensamento: é uma restauração, é a restauração do nosso princípio social.
O princípio social do Rio de Janeiro, como se sabe, é o doce de coco e a compota de marmelos. Não foi outra também a origem da nossa indústria doméstica. No século passado e no anterior, as damas, uma vez por ano, dançavam o minuete, ou viam ver correr argolinhas; mas todos os dias faziam renda e todas as semanas faziam doce; de modo que o bilro e o tacho, mais ainda do que os falcões pedreiros de Estácio de Sá, lançaram os alicerces da sociedade carioca”.

As crônicas
Nas crônicas, muitas críticas às novidades gastronômicas trazidas de fora:

“Ora qual é nossa situação há dez ou quinze anos? Há dez ou quinze anos, penetrou nos nossos hábitos um corpo estranho, o bife cru. Esse anglicismo só tolerável a uns sujeitos, como os rapazes de Oxford, que alternam os estudos com regatas, e travam do remo com as mesmas mãos que folheiam Hesíodo, esse anglicismo, além de não quadrar ao estômago fluminense, repugna aos nossos costumes e origens. Não obstante, o bife cru entrou nos hábitos da terra; bife cru for ever, tal é a divisa da recente geração”.

Crítica
Na época, teve início a difusão do hábito de comer fora nas chamadas casas de pasto, confeitarias e hotéis de luxo.
Já a República trouxe o apuro da arte culinária e a opulência em jantares, comemorações e saraus.
Machado frequentava os grandes salões e registrava tudo o que via, banquetes, preparações de cardápios, etiqueta e hábitos que estavam se refinando.

Machado era avesso aos estrangeirismos culinários. 
Usava de ironia para criticar as influências francesas e inglesas nos hábitos da elite brasileira. Registrava, assim, uma virada na história do gosto da sociedade carioca do século 19. Em sua mesa, preferia sabores da terra e a tradição.

“Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no regozijo público; entendeu oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um jantar, e tal jantar que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza, ou, quando menos, de seus ministros. 
Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria, herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às madres da Ajuda as compotas e marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas, as vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico”. Memórias Póstumas de Brás Cubas.

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