Nouvelle cuisine: autonomia dos chefs e destradicionalização do campo gastronômico

"A nouvelle cuisine é tão lindamente disposta nos pratos que você sabe que os dedos de alguém andaram por tudo."
A ironia fina da norte americana Julia Child, sobre o que se chamou de revolução gastronômica dos 70 do século passado.

O movimento libertou os chefs permitindo a criação de novos estilos ou formas de cozinhar ( cozinha de assinatura , cozinha de fusão, etc.). Foi assim que o chef ficou conhecido pelos clientes e, assim, se tornou um artista de culinária.

Essa tendência culinária nasceu na França por volta de 1970 , tendo inicialmente uma preocupação com dietética.


O “mago do fogão”, Bocuse foi o primeiro a se tornar grife e estrela da cozinha globalizada, tendo recebido, aos 85 anos, em New York, o prêmio de “chef do Século”, concedido pelo prestigioso Culinary Institute of América, que o nomeou como "o mais emblemático chef de todos os tempos".

Ao se ouvir a frase preferida de Bocuse: “Todas as manhãs (...) vou ao mercado...” editada no prefácio do seu livro “La Cuisine de Marché", não fica difícil entender a filosofia que o levou a revolução iniciada nos anos 50 na culinárioa francesa, criando a nouvelle cuisine, que se espalhou mundo a fora e se incorporou definitivamente ao dia-a-dia das pessoas nos quatro cantos do planeta, de maneira sutil e irreversível, mudando hábitos alimentares e alterando a cultura gastronômica em muitos lugares.

Na realidade o embrião da nouvelle cuisine, teve início com o chefe Fernand Point, no restaurante de sua propriedade, o La Pyramide, um 3 estrelas instalado na pequena cidade de Vienne, próxima a Lyon, que se tornou a meca da alta gastronomia.

Point, que jamais publicou um livro de culinária, foi mentor de expoentes da culinária e somente admitia o uso de ingredientes frescos, preparados na hora, em sua cozinha, jamais admitindo que pratos fossem preparados de um dia para outro.
Christian Millau e Henri Gault

O movimento foi iniciado por dois críticos famosos da época, Christian Millau e Henri Gault (criadores do mais importante guia gastronômico, Gault-Millau).

Novelle Cuisine, na livre tradução, nova cozinha.
Na história se traduz como o  movimento que surgiu na França, em idos de 1970 como um levante contra a cozinha clássica francesa. Encabeçado por nomes de peso como os chefs Paul Bocuse, Michel Guérard, Pierre Troisgros e Roger Vergé.
Todos defendiam a bandeira de uma cozinha mais leve em contra partida aos molhos pesados e condimentados tão característicos nos pratos da cozinha tradicional.

Entre os nomes ilustres que marcaram tal mudança gastronômica temos: Paul Bocuse, Pierre Troisgros (pai do chef francês mais que carioca Claude Troisgros), Alain Chapel, Louis Outhier, Raymond Thuilier.

Esse movimento foi uma tendência seguida por vários chefs europeus (principalmente franceses).

Gault Millau delineou, em 1973 os 10 mandamentos da Novelle Cuisine, que seriam as bases para uma nova gastronomia.

1- A culinária é uma arte criativa na qual o chef e o “jantar” estão em diálogo.
A comida é o meio principal para este diálogo, mas todos os aspectos sensoriais da experiência gastronômica, também devem contribuir para isto.

2- Regras culinárias convenções e tradições devem ser entendidas, porém elas não devem desautorizar ou impedir a criação de novos pratos.

3- A criatividade culinária quando quebra regras e tradições, cria uma forma poderosa de fazer o comensal pensar em uma experiência gastronômica.

4- Comensais tem expectativas em relação à comida a ser servida, umas explícitas, outras não. Surpreendermos com comidas que desafiam suas expectativas, é como outra maneira de envolve-los intelectualmente. Isso inclui colocar sabores familiares em formas não ortodoxas ou vice versa.

5- Além da surpresa, muitas outras emoções, reações sentimentos e pensamentos podem ser provocados pela cozinha modernista, entre eles a fantasia, a sátira e a nostalgia.
O repertório do chef modernista não é apenas sabor e textura, é também a gama de reações emocionais e intelectuais que o alimento pode inspirar nos comensais.

6- Criatividade, invenção e inovação são intrínsecos ao papel do chef modernista. Porém quando se utilizar ideias ou know how de outros chefs, devemos sempre creditá-los.

7- Ciência e tecnologia são fontes que podem ser utilizadas na criação de novos pratos ou técnicas culinárias, porém, são estes os meios, não o objetivo final.

8- Devemos avaliar os ingredientes e os fundamentos da culinária, ingredientes como trufas e foie gras tem o mesmo peso dos demais ingredientes.

9- Ingredientes originários da ciência e tecnologia dos alimentos, como os hidrocóloides, enzimas etc., são ferramentas poderosas, sem as quais, seria impossível preparar alguns pratos.

10- Chefs e comensais devem ser sensíveis às condições sob as quais os alimentos são plantados, colhidos ou abatidos.
Sempre que possível devemos procurar por fontes sustentáveis e ecologicamente corretas.

Nouvelle cuisine: autonomia dos chefs e destradicionalização do campo gastronômico

O motor das transformações impostas pela Nouvelle cuisine foi a expansão da autonomia individual no interior do campo gastronômico, a partir da construção de novos discursos, que induziram os atores a abandonarem a lógica institucional dominante por novas lógicas e papéis (Rao; Monin; Durand, 2003).
Essa mudança de operação levou à erosão da hegemonia da cozinha tradicional francesa.

O surgimento da Nouvelle cuisine é um exemplo perfeito do que Anthony Giddens designa de "Reflexividade Institucional6 (Giddens, 2002), que faz com que todo conhecimento novo produzido sobre a estrutura social tenda a alterar substancialmente, e de forma imprevisível, sua dinâmica.
As contínuas informações sobre a realidade social, em lugar de reforçar os mecanismos de controle, como se previa, derivaram num movimento de instabilidade. “A produção de conhecimento sistemático sobre a vida social torna-se integrante da reprodução do sistema, deslocando a vida social da fixidez da tradição” (Giddens, 1991, p. 59).
A nova corrente não foi impulsionada por um chefe de cozinha, mas por dois críticos, Gault e Millau, responsáveis por um dos guias gastronômicos de maior prestígio, que lançaram, em 1973, um desafio pela renovação e modernização da culinária, propondo alguns novos mandamentos que atacavam os pilares da tradição gastronômica francesa.

Começaram desvinculando a alta gastronomia do mundo do luxo, à qual estava associada, minimizando a importância dos cenários requintados e dos produtos caros, para enfatizar o talento do chef.
Em março de 1973, sob o título de À l’ouest du nouveau, anunciam uma transformação na geografia gourmande de Paris, chamando atenção para uma nova geração de chefs que despontava na periferia da cidade,7 praticando uma cozinha inventiva, com um cardápio reduzido, instituindo um novo estilo baseado na simplicidade.
Alguns meses depois, em outubro, publicam outro artigo formulando o que passaram a designar como os dez mandamentos da Nouvelle Cuisine.
Entre eles, constavam: a defesa de uma gastronomia mais leve; a valorização dos produtos frescos disponíveis no mercado; a utilização de novas técnicas e tecnologias; a abolição de anacronismos, como os temperos pesados e os cozimentos excessivos, resíduos de épocas em que as cozinhas não dispunham de sistemas de refrigeração (Rambourg, 2010).

A adesão entusiasmada de um grupo de chefes gerou uma verdadeira revolução, promovendo uma nova maneira de fazer cozinha: não mais a partir da tradição, mas de um projeto ligado a um conceito de gastronomia concebido a partir dos estilos de vida, das tecnologias, do estudo das novas possibilidades das tradições e dos ingredientes, mas, sobretudo, das novas demandas da sociedade de consumo (Franco, 2006; Rambourg, 2010; Suaudeau, 2007).

A proposta se difundiu rapidamente para os Estados Unidos, para países do Oriente Médio e de outras partes da Ásia.
O entusiasmo pelo exotismo, pela experimentação e pela invenção estreitou as colaborações, intensificou o processo de trocas, promovendo o fortalecimento de uma nova prática: as hibridações.
Nesse quesito, um destaque foi a forte influência da cozinha japonesa sobre a cozinha ocidental, modificando as técnicas de cozimento, a maneira de lidar com os produtos, o serviço nos restaurantes e a estética dos pratos (Rambourg, 2010).

A gastronomia francesa, pautada por regras rígidas e a observância de algumas práticas e ingredientes locais, havia se transformado num anacronismo.
A partir de então, efetiva-se o processo de sua destradicionalização, com a dissolução de seu caráter local e sua reconfiguração numa formulação global (Giddens, 1991, 1997).
A Nouvelle Cuisine é a primeira de uma série das correntes que irão constituir o campo de debates em torno do qual se organiza o novo modo de operação da gastronomia na globalização cultural (Crane, 2012).

DA GASTRONOMIA FRANCEÀ GASTRONOMIA GLOBAL: hibridismos e identidades inventadas

Maria Lúcia Bueno

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