O NEOLIBERALISMO E A GASTRONOMIA: ENTRE A EXALTAÇÃO DO CHEF E A INVISIBILISAÇÃO DA CULTURA ALIMENTAR COLETIVA

O modelo neoliberal, ao priorizar a lógica do lucro, da eficiência e da competição, tem impactado profundamente o campo da alimentação — não apenas na produção e distribuição de alimentos, mas também na forma como a culinária é entendida, praticada e representada. 

A gastronomia, nesse contexto, vira palco de disputas simbólicas que revelam muito sobre as estruturas de poder que sustentam esse sistema.

Sob o neoliberalismo, a figura do chef torna-se central. Não qualquer chef, mas aquele que se apresenta como empreendedor de si, criador genial e marca pessoal. A cozinha vira palco de performance individual, muitas vezes desvinculada das comunidades, dos territórios e das práticas coletivas que a nutrem.

Essa lógica transforma pratos populares em produtos gourmetizados, esvaziando-os de contexto e os tornando inacessíveis para os próprios grupos que os criaram.

A defesa do neoliberalismo por parte de alguns chefs vai além da economia: é também uma estética, uma política de reconhecimento que rejeita a complexidade das culturas alimentares tradicionais. 

Ao invés de enxergar a alimentação como um campo dinâmico, relacional e ancestral — onde tempo, território, afeto e memória se entrelaçam — esses profissionais optam por uma visão tecnicista, onde inovação e sofisticação se tornam mais importantes do que pertencimento e história.

Nesse modelo, saberes ancestrais são tratados como “curiosidades” ou “ingredientes exóticos”, e não como epistemologias legítimas. Mestras de cozinha, quilombolas, ribeirinhas, indígenas, lavradoras — que são as guardiãs da cultura alimentar — são frequentemente invisibilizadas ou cooptadas, sem reconhecimento real de sua contribuição.

Enquanto isso, a mídia e os circuitos da alta gastronomia reforçam esse imaginário neoliberal, premiando os que “inovam” com insumos de origem comunitária sem necessariamente devolver nada a essas comunidades. A comida vira produto, o cozinheiro vira celebridade, e a coletividade vira pano de fundo decorativo.

Esse cenário exige um outro olhar: um que recoloque a comida no centro da vida e não do mercado; que reconheça os alimentos como expressões de identidade e resistência, e não apenas como insumo de luxo. Reivindicar uma culinária enraizada nas relações comunitárias e na ancestralidade é também um ato de enfrentamento ao neoliberalismo — é cozinhar contra a maré da homogeneização e da exclusão.

O FATOR COLONIAL

O Papel das Universidades de Gastronomia: Educação Colonial sob a Lógica do Mercado

Nesse contexto de mercantilização da alimentação, as universidades de gastronomia ocupam um lugar estratégico — não como espaços de questionamento ou reconstrução crítica, mas como reprodutoras de uma lógica colonizada e elitista do que se entende por saber culinário. Em vez de fomentar o diálogo com os territórios, com os saberes tradicionais e com os povos que alimentam esse país há séculos, grande parte dessas instituições perpetua um currículo eurocentrado, que exalta a técnica francesa, a precisão italiana ou a “sofisticação” asiática como ápices do conhecimento gastronômico.

A formação gastronômica torna-se, assim, uma ferramenta de domesticação. Ensina-se a cortar cebola do “jeito certo”, mas não se fala sobre a história do pilão, sobre o gesto de ralar coco na mão, sobre a oralidade como método legítimo de transmissão do saber. Ignora-se o valor das cozinhas populares — muitas vezes chamadas depreciativamente de “comida simples” — e se celebra a repetição exata de técnicas que nasceram em contextos históricos e sociais completamente distintos dos nossos.

Além disso, essas universidades são desenhadas para formar indivíduos prontos para o mercado e não para o território. Ensinam a vender um prato, mas não a entender a cadeia produtiva que o antecede. Treinam profissionais para agradar paladares eurocêntricos, mas não para dialogar com agricultores, feirantes, quilombolas ou povos originários. Assim, contribuem para o apagamento de tudo o que não cabe na moldura do “refinado”, reforçando uma lógica em que a comida vira espetáculo e a cultura, insumo.

Ao invés de se abrirem ao conhecimento das mestras de terreiro, das cozinheiras de festa, dos saberes enraizados em tempos não-lineares e corpos invisibilizados, essas instituições frequentemente preferem importar chefs internacionais para masterclasses, reafirmando o racismo estrutural e a colonialidade do saber. São espaços onde o "bom gosto" está atrelado à branquitude, ao controle técnico e ao capital — não à ancestralidade, ao afeto ou à justiça alimentar.

Dessa forma, a universidade de gastronomia, que poderia ser um espaço de insurgência e reinvenção, torna-se um dispositivo de manutenção da ordem neoliberal: forma chefs que competem entre si, que constroem marcas individuais, que buscam notoriedade, e que muitas vezes não sabem dialogar com o chão que pisam.

Alimento não é produto. Cultura alimentar não é espetáculo.

É preciso reverter a lógica.

Alimento não é produto. É vínculo, é história, é território.

Cultura alimentar não é espetáculo. É prática viva, é celebração, é sobrevivência.

Enquanto o neoliberalismo transforma tudo em mercadoria — da terra ao tempo, do corpo ao gosto — a cultura alimentar resiste. Nos quintais, nos terreiros, nas feiras, nas cozinhas de fundo de casa, nas mãos de quem cozinha para curar. Onde o fogo é lento, o tempo é outro, e o saber não cabe em diploma nem em vitrine.

Precisamos romper com essa lógica que transforma o ato de alimentar em performance individual, e resgatar a dimensão coletiva, comunitária, ancestral do comer. Cozinhar não é servir ao mercado, é servir à vida. Alimentar alguém é um gesto político, espiritual, afetivo. É memória em movimento.

E esse é o chamado: construir outros paradigmas, onde o saber das mestras seja tratado como ciência; onde a oralidade seja documento; onde o roçado valha mais do que a grife; onde os cheiros e os sons da comida tenham mais importância do que o silêncio das cozinhas de vidro.

Chegou a hora de reconectar o alimento com a terra, com o corpo, com a cultura, com o povo.

Chegou a hora de reconhecer que não é possível falar em justiça social sem falar em justiça alimentar.

Chegou a hora de recusar a estetização da fome e do racismo nos palcos da alta gastronomia.

Seguimos com as mãos na terra e as panelas no fogo.

Cozinhando futuros que não cabem nos moldes.

Porque comida de verdade é aquela que alimenta o corpo e a dignidade.


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