COZINHEIRO: PROFISSÃO OU VOCAÇÃO? UM OLHAR SOBRE A REGULAMENTAÇÃO NO BRASIL E O EXEMPLO DA FRANÇA

Essa regulamentação garantiria direitos trabalhistas específicos, valorização da carreira, condições dignas de trabalho, além de normas de formação e atuação mais claras.

Hoje, embora existam cursos técnicos e superiores na área, a profissão de cozinheiro ainda não é regulamentada por lei federal, o que dificulta o acesso a benefícios trabalhistas específicos e contribui para a precarização e informalidade no setor, principalmente entre cozinheiros(as) populares e periféricos.

REGULAMENTAÇÃO NA FRANÇA 

A França, país símbolo da alta cozinha mundial, reconheceu oficialmente a profissão de cozinheiro em 1946, após o fim da Segunda Guerra Mundial. 

A regulamentação integrou os cozinheiros à Convenção Coletiva da Hotelaria e Restauração, estabelecendo direitos trabalhistas, padrões de formação e hierarquia profissional — do commis ao chef de cuisine. Mais que burocracia, a medida foi uma afirmação do valor da cozinha como ofício, cultura e motor da economia nacional.

Nos Estados Unidos, a profissão de cozinheiro não é regulamentada por lei federal como em alguns países europeus. Lá, o exercício da profissão é livre, mas existe uma estrutura sólida de certificações profissionais e formações técnicas que conferem legitimidade e status ao cozinheiro no mercado.

A American Culinary Federation (ACF), fundada em 1929, é a principal entidade responsável por certificar cozinheiros e chefs nos EUA. Ela criou, ao longo do século XX, um sistema de certificação profissional (como o Certified Executive Chef ou Certified Sous Chef) que funciona como uma referência nacional de competência e experiência, embora não seja obrigatória por lei.

Ou seja, não houve uma regulamentação legal única como um marco oficial, mas sim uma construção institucional através de credenciamento profissional, educação técnica e valorização pelo mercado.

No Brasil, por outro lado, a profissão de cozinheiro ainda não é regulamentada por lei federal. Embora haja projetos de lei tramitando desde a década de 1990 — como o PL 5.638/2009 —, nenhum foi aprovado até hoje. Isso significa que, na prática, qualquer pessoa pode se apresentar como cozinheiro(a), sem que haja exigências mínimas de formação, jornada definida ou reconhecimento legal das suas atribuições.

No caso brasileiro, regulamentar a profissão de cozinheiro seria benéfico, desde que a regulamentação seja construída com e para os profissionais da base, respeitando a diversidade da culinária brasileira — das cozinhas populares e tradicionais às técnicas mais contemporâneas.

Por que regulamentar?

Valorização profissional:

A regulamentação traria reconhecimento legal ao trabalho do cozinheiro, garantindo direitos trabalhistas específicos, salários mínimos por categoria e condições mais dignas de trabalho.

Proteção contra precarização:

Sem regulamentação, cozinheiros são frequentemente tratados como mão de obra informal, sujeitos a jornadas exaustivas, baixos salários e nenhuma proteção previdenciária.

Educação e formação:

A regulamentação poderia estimular a criação de currículos técnicos alinhados com as realidades do país (inclusive das cozinhas de terreiro, quilombola, caipira, ribeirinha etc.), ampliando o acesso a formações de qualidade.

Diferenciação no mercado:

Assim como nos EUA com as certificações da ACF, uma regulamentação pode incluir níveis de certificação que valorizem o tempo de experiência, os saberes tradicionais e as competências adquiridas fora das escolas formais.

Quais os riscos?

Elitização e exclusão dos saberes populares:

Se for construída apenas com foco em modelos europeus ou acadêmicos, a regulamentação pode excluir cozinheiros de tradição oral e de territórios onde o conhecimento passa de geração em geração.

Burocratização e perda da diversidade:

O excesso de exigências formais pode engessar uma profissão historicamente marcada pela diversidade regional, afetiva e criativa.

Imposição de um único modelo de sucesso:

A imposição de diplomas ou títulos pode invalidar trajetórias valiosas de cozinheiros populares, mestras da culinária ancestral e profissionais autodidatas.

Conclusão:

O Brasil precisa sim de uma regulamentação pensada desde a base, que reconheça a pluralidade de saberes culinários do país. Isso exigirá mobilização dos próprios cozinheiros, articulação com movimentos sociais, sindicatos, associações e instituições de ensino. O silêncio da categoria até hoje é um entrave, mas também um sinal de que a pauta precisa ser construída com mais escuta, mais afeto e mais consciência política.

Impasses e Impedimentos

A ausência de regulamentação no Brasil é reflexo de múltiplos fatores:

Desvalorização histórica das ocupações manuais e de cuidado, geralmente associadas à figura feminina e negra.

Fragmentação da categoria, onde muitos profissionais atuam de forma informal ou autônoma, sem vínculos coletivos.

Falta de sindicatos ativos e representativos em muitos estados, o que enfraquece a pressão política.

Romantização do trabalho na cozinha, que transforma a dureza da labuta em “paixão pela gastronomia”, mascarando jornadas exaustivas, baixos salários e ausência de direitos.

Falta Mobilização ou Falta de Espaço para Mobilizar?

Apesar dos crescentes cursos de gastronomia, programas de TV e chefs-celebridade, os cozinheiros da base — os que cortam, limpam, refogam e montam pratos em cozinhas de escolas, restaurantes populares e pequenos comércios — seguem invisíveis.

Há uma elite que se beneficia do prestígio da culinária, mas a base permanece sem voz. 

A mobilização é rara e esparsa, não porque os profissionais não desejem seus direitos, mas porque sobrevivem em realidades precárias, sem tempo ou recursos para articulação política.

Por que lutar pela regulamentação da profissão de cozinheiro no Brasil?

No Brasil, quem cozinha profissionalmente segue, em muitos casos, sem reconhecimento legal, sem garantias trabalhistas específicas, e com pouca valorização social. Ainda que a cozinha movimente bilhões, empregue milhares e seja pilar da nossa cultura, a profissão de cozinheiro segue à margem da lei — invisibilizada, precarizada, naturalizada como "trabalho informal".

Enquanto países como a França regulamentaram a profissão de cozinheiro ainda em 1946, com direitos garantidos e respeito à formação técnica e cultural, o Brasil segue sem um marco legal que reconheça a complexidade, a diversidade e a importância desse ofício.

Lutar pela regulamentação é lutar por dignidade.

Regulamentar não é engessar a profissão, nem excluir saberes populares ou caminhos não acadêmicos. Pelo contrário: é assegurar que qualquer pessoa que viva da cozinha — seja num restaurante renomado, num terreiro, num quilombo, num botequim de esquina ou numa barraca de feira — tenha direito a uma jornada justa, piso salarial, acesso à formação continuada, saúde, segurança e aposentadoria.

É reconhecer que cozinhar é trabalho, é técnica, é cultura, é política.

Caminhos possíveis

Mobilização da categoria: É preciso que cozinheiros, auxiliares, merendeiras, quituteiras, mestres e mestras de tradição se reconheçam como parte de uma mesma classe trabalhadora.

Criação de um projeto de lei participativo: A regulamentação deve ser construída com escuta ampla e envolvimento de entidades da culinária, da cultura alimentar e das cozinhas tradicionais.

Alianças com movimentos sociais e instituições de ensino: Para garantir que a regulamentação contemple tanto os saberes acadêmicos quanto os populares.

Campanhas públicas de valorização: Mostrar para a sociedade o valor do trabalho de quem cozinha, sua complexidade e seu impacto na saúde, na educação e na cultura do país.

Não basta amar cozinhar — é preciso lutar para que cozinhar seja um caminho digno de vida.

A regulamentação é um passo fundamental para que a cozinha brasileira seja não apenas celebrada, mas também respeitada.



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