O ACARAJÉ E A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA

 Por Florismar Menezes Borges

No Brasil, no século 19, grupos compostos por africanos escravos, libertos e crioulos, começaram a se organizar com o objetivo de cultuar coletivamente seus ancestrais, deuses africanos. Organiza-se, então, o Candomblé como um sistema harmonioso de representação religiosa coletiva e simbólica, onde a união da dança, musica, cânticos, iniciação, sacrifício e a oferenda se transformam na pura expressão da religiosidade africana, em território brasileiro.

Esses deuses africanos, comumente conhecidos como orixás, lembra Bastide, na África, faziam parte de clãs, antepassados que após a morte tornaram-se deuses, mas ao mesmo tempo constituíam forças da natureza, adorados não só pelos seus descendentes, como por todos aqueles que necessitam de ajuda. Ele explica que ao cruzar o Atlântico, recriados, os deuses africanos foram organizados da seguinte forma: “não são mais deuses de clãs; são deuses de confrarias religiosas especializadas. Perdem, pois, seus caracteres de chefes de linhagens; aparecem daí por diante, unicamente, como personificações da tempestade, da guerra, do vento, do arco-íris etc”.(BASTIDE, 2001, 154)

Essa reunião coletiva só foi possível pelo fato dos africanos mais velhos, sacerdotes, conhecedores dos mitos e ritos do seu povo, terem conservado na memória suas práticas religiosas, sendo assim, possível transmiti-las ao grupo.

Grupos religiosos iniciáticos, que agregavam escravos, libertos e crioulos( que assim eram chamados os negros já nascidos no Brasil) de diferentes origens étnicas, reunidos sob um modelo ideológico bem definido e marcantemente etnocêntrico, em que predominavam os valores simbólicos expressivos e doutrinários dos grupos fon e ioruba, chamados na Bahia, de jejes e nagôs (LIMA, 2006,322)

Cascudo (CASCUDO,2004) comenta sobre a influencia dos diversos grupos étnicos na fixação de um cardápio africano no Brasil, particularmente em Salvador:

Ter-se-ia verificado na cidade de Salvador uma concentração negra mais homogênea, mais intima e possibilitadora da defesa das velhas comidas africanas que em outras paisagens.Seria ao redor dos candomblés, do culto jejê-nagô, que a cozinha pôde manter elementos primários de sua sobrevivência. Creio que esse processo de coesão religiosa já ocorreria no século 19 (CASCUDO, 2004,824)

Assim, os deuses da África - orixás, nagôs, vuduns, jejes e inquices- outra vez, puderam ser reverenciados, com direito a “saciar sua fome” com suas comidas prediletas.


Nesse tempo foram recriadas muitas das comidas cotidianas dos homens e dos santos.Pois que o santo come o que os homens comem.E as comidas mais elaboradas das festas, das celebrações votivas.Esse foi o tempo do cozinheiro e da cozinheira escravos, reproduzindo o cardápio basicamente, mas já substituindo, trocando ingredientes, colorindo ensopados como o vermelho do dendê, inventando as moquecas, usando o inhame, a banana cozida, recriando caruru, o vatapá. (LIMA,2006,322)

A recriação desse cardápio, facilitada por causa do intenso comércio existente entre as duas Costas, a brasileira e a africana (Verger,1999) possibilitou que muitos produtos fossem trazidos da África, e incorporados a dieta dos africanos e daqueles que aqui moravam. Nas cerimônias religiosas dedicadas aos deuses é “indispensável o banquete ritual, com comidas que a antiguidade tornou sagradas”(CASCUDO, 2004,.825).Assim era o banquete dos deuses: requintado. 
A simplicidade é apenas aparente como explica Costa Lima: “Elaboradas, requintadas na forma, no ordenamento do preparo, ou na simplicidade aparente prescrito pelo mito. Vez que atrás de cada oferenda alimentar, está o mito que a prescreve pelas praticas divinatórias” (LIMA, 2006,323)

São através das oferendas, dos ritos e dos cânticos que os homens demonstram e reforçam sua fé nos Orixás e se auto identificam. Os Orixás, divindades do candomblé ligadas às forças da natureza e a aspectos da vida humana, assim como os homens, têm seus gostos e preferências. Muito mais que relacionada a um sistema nutricional, a comida é também chamada de Axé do Orixá, indispensável para a conservação da vida. Em comentários tecidos por Lody “O ato de comer e beber no Candomblé transcende a ação biológica e se constitui na principal maneira de renovar e estabelecer o axé” (LODY,1998,17).Assim, é através do alimento que essa ação se concretiza. È por meio dela que o vinculo entre os Deuses e os
Homens se perpetua e se solidifica. Sendo os deuses “grandes comilões” (BASTIDE, 2001) é natural que sejam exigentes em relação à sua alimentação. Os alimentos preparados para os deuses devem ser abundantes, coloridos e precisam corresponder ao paladar de cada Orixá.

A cozinha dos Deuses se transformou em cozinha baiana. E isso porque as cozinheiras empregadas pelos brasileiros nas casas dos senhores e nos sobrados eram, em geral, filhas dos deuses. Assim, elas enriqueceram a cozinha europeia com os pratos mais apetitosos e deliciosos, para todos aqueles que sabem apreciar a boa mesa. (BASTIDE, 2001, 333)

Os “presentes” não são oferecidos de qualquer forma, nem em qualquer lugar. São nos pejis, altares sagrados, onde as comidas são ofertadas aos deuses, respeitando sempre seus gostos, preferências e também seus tabus. Querino (1988) definiu o peji como “espaço que domina o santo”(QUERINO,1988,38).

Sabe-se que das cozinhas dos terreiros saem saborosas iguarias. São elas muitas vezes que atraem para as festas públicas um número considerável de pessoas, sem nenhuma ligação com a religião, apenas com intuito de comer. Num tom de reprovação Bastide comentou o fato:

Nas cerimônias públicas, a consagração e a ritualização da refeição são menores. “Muitos profanos, de fato, frequentam os candomblés apenas por gulodice, e conhecemos alguns que sabem onde se come o melhor ximxim de galinha, o melhor caruru etc. E isso não deixa de apresentar inconvenientes” (BASTIDE, 2001,336)

Abordadas as questões gerais, passemos agora para o acarajé. Como se sabe, o bolinho de feijão é comida ritual vinculada ao culto de Iansã, orixá do corpo perfeito, que rege o fogo, ventos, trovoadas e tempestades.Guerreira do corpo de fogo, Oiá-Iansã traduzida num dos versos do seu oriki como: “leopardo que come pimenta crua” em ioruba: “ekun ti njé ewe atá”.

Segundo Prandi (1997) a relação de Iansã com o fogo se explica pelo fato, do Orixá ter usado uma porção de Xangô:

Um dia Oiá foi enviada por Xangô às terras dos baribas.De lá ela traria uma porção mágica, cuja ingestão permitia cuspir fogo pela boca e nariz. Oiá, sempre curiosa, usou também a formula, e desde então possui o mesmo poder do marido (PRANDI,1997,178)


Iansã¹ também é considerada à senhora dos nove partos, ou nove filhos. Segundo o sacerdote, Cido de Ósum (2002) o numero nove está associado a várias passagens importantes da historia desse Orixá, por isso, oferecendo a ele nove acarajés é bem possível que se consiga maiores graças.

Os acarajés² destinados a Iansã são preparados do mesmo modo, e com a mesma receita dos bolinhos vendidos nas ruas: feijão fradinho, sal, cebola e azeite de dendê para fritura. Entretanto, em alguns terreiros mais tradicionais, como explica Costa Lima (1999), o acarajé servido ao orixá, tem adicionado à sua massa pedaços de quiabo, nesse caso, ele é denominado acarajeilá, no caso o sufixo ilá representa a palavra quiabo em iorubá.

O acarajé não é só oferecido a Iansã, outros Orixás como: Oxumaré, Ogum, Xangô, Oba e Ibeji, também o recebem como oferenda. No livro “O dono da terra, o caboclo nos Candomblés da Bahia”, Jocélio Teles dos Santos, cita que nas comemorações do Dois de Julho era comum, adeptos do Candomblé fazerem oferendas de acarajés, charutos, farofa, pipoca e outros diante do carro do caboclo, transformando-o em um verdadeiro peji. (SANTOS, 1995, 45)

Em todas as celebrações que se faz a Iansã, o acarajé está presente. Mas é no “Akara de Oyá”, que ele tem o maior destaque. O antropólogo Vilson Caetano descreveu detalhadamente a festa ocorrida no Terreiro de Candomblé Ilê Axé Yá Oxum. Os primeiros acarajés oferecidos foram para Exu e os Ancestrais, depois foi a vez do grande público:

Yansã trouxe na cabeça uma enorme panela de cobre cheia de bolinho de feijão, fritos no azeite de dendê. Enfeitando a panela, amarrada às suas asa, vinham dois laços brancos com a barra bordada em rechilieu rosa e cor de abóbora, cores do fogo, cores de Iansã ..Impressionava a todos o fato de Iansã não usar as mãos para segurar a panela de cobre que levava apenas na cabeça...mais de cem pessoas comeram do pão de Iansã neste dia...( SOUZA JUNIOR,1997,201)


De forma hierárquica, Iansã serviu primeiro os Ogãns, depois aos convidados, que em sinal de respeito receberam o acarajé com as duas mãos juntas em forma de concha.

Após compartilhar os acarajés com os convidados, o Orixá se recolheu aos seus aposentos, para voltar mais tarde e fazer a dança final. Segundo Verger a festa do “Akará de Oyá” tem ligação com o ajeré, uma cerimônia africana na qual é testada a veracidade da divindade. Nela, os orixás Xangô e Iansã comeram juntos mechas de algodão acesas embebidas em azeite de dendê, que representavam o acarajé.


Segundo Maria das Graça de Santana Rodrigué, no livro “ ORÍ APERÉ, O ritual das águas de Oxalá ”, Ed. Summus, SP, 2001, p. 96, na Nigéria na cidade de Ilê Ifé o acarajé representa os filhos gerados e não criados do orixá.Iansã, Mãe de eguns, Iá messan Orún, Mãe dos nove filhos mortos. O acarajé envolto no azeite de dendê é associado a feto ainda em estado de formação, envolto em sangue.


Segundo Lody (2004) os acarajés grandes e de forma arredondada são destinados ao Orixá Xangô,já os menores são oferecidos a Iansã e os pequeninos de forma bem redonda são para obás e erês. Ao contrário do que evidencia o autor o autor, por ocasião do dia 04 de dezembro, dia consagrado a Santa Bárbara que no sincretismo religioso é representada pelo orixá Iansã, encontrei sendo vendido em vários tabuleiros, acarajés de tamanho gigante, que pesavam cerca de 200 gramas, enfeitados com camarão seco.Indaguei á baiana qual a finalidade daqueles acarajés, ela respondeu que eram feitos por encomendas, para serem ofertados a Iansã.

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