Cozinha baiana tradicional e PANC: "folhas" da mesma árvore!

A organização de eventos cujos objetivos propiciam a reflexão entre temas análogos é benéfico na evolução da pesquisa empírica, teorias sociais e nas ações sociais resultantes daquelas. Aqui me refiro a oportuna realização do evento intitulado “A cozinha baiana tradicional e as Plantas Alimentícias não convencionais” - de acrônimo PANC.

A colaboração que trago, resumo na ideia de que ambos os temas estão muito próximos na sua história cultural não obstante os fenômenos modernos da globalização os quais, nos seus processos, procurem nivelar as identidades, unificar hábitos de consumo etc, sob a falsa imagem de que a economia liberal propicia o acesso de tudo a todos – a velha perspectiva dos modelos fordistas. 

A recente "descoberta" e valorização das PANC parece estar associada a ações de grupos originários do meio urbano e de lideranças "nativas" interessadas em novas formas de se lidar no campo da alimentação; com a preocupante desigualdade social e, por outro lado, incentivar na preservação das formas e recursos na alimentação no contexto das populações tradicionais.

A cozinha baiana tradicional, como eu entendo, é aquela que se formou nas próprias relações observadas na formação histórica da sociedade brasileira: seus aspectos sociológicos, culturais e, sobretudo, no modelo escravagista da economia e do trabalho ou, de outra maneira, exploração da mão de obra dos negros escravizados desde o século XVI. 

Do “encontro” de hábitos e costumes portugueses, indígenas e africanos, se formou a cozinha brasileira nas suas distintas intepretações culinárias regionais. 

A Bahia construiu seu modelo baseado nesse fluxo culinário, mas particularizou-se pela forte influência da contribuição africana cuja explicação se justifica, entre outras causas, na geopolítica da economia colonial. 

A Bahia recebeu enorme contingente de negros africanos escravizados, como mostram estudos sobre a presença de pretos originários das distintas culturas do continente africano; mportante bibliografia a qual deve ser revisada em outro momento.

Planta símbolo (culturalmente) da cozinha baiana, o dendezeiro (Elaeis guineenses) logo adaptou-se ao terreno da mata atlântica brasileira; fundamental na preservação e continuidade das celebrações religiosas de matrizes africanas, especialmente no preparo de comidas votivas as quais, por extensão, se deixaram apreciar no cardápio secular cotidiano. 

Assim, o azeite de dendê, este passageiro africano, se torna item culinário para quase tudo que se faz para comer na mesa baiana tradicional e, muito particularmente, em Salvador e no seu recôncavo; mas também consumido nas chapadas, semiárido e regiões ao extremo sul do território baiano.

A cozinha baiana tradicional é dourada e verde. Sempre foi verde na taioba (Xanthosoma sagittifolium) para o preparo do efó, verde nas folhas de bananeira (Musa) para "enrolar" o abará, verde do coentro da Índia (Eryngium foetidum), diferenciando dos coentros comuns, verde dos raminhos do tomate cereja usados, assim como a folha da bananeira, para "forrar" o fundo da frigideira de barro , evitando assim que o peixe "pegue"; verde pelas mãos das cozinheiras, trazidas do continente africano, inovadoras no conhecimento de tantas plantas desconhecidas da cozinha do colonizador. Verde das folhas da abóbora (Cucurbita), legume em tudo aproveitável, inclusive a pevide, item importantíssimo no preparo do xinxim, conforme na memória culinária das velhas cozinheiras afro-baianas. Assim, a cozinha tradicional da Bahia, é PANC "desde menina". 

Plantas, muitas delas “tripulantes” de navios negreiros, escoltadas por colonizadores ou por pretos escravizados. A fauna e a flora nativa, a do Brasil indígena, juntaram-se às viajantes nos proporcionando uma rica cultura alimentar. 

É louvável um mapeamento para se observar, empiricamente, claro, o uso do azeite de dendê acompanhado de itens não convencionais (as PANC) ou “estranhos” aos modos tradicionais observados na mesa baiana da capital. 

Os vatapás à base de “fruta pão” (Artocarpus altilis ), inhames, farinha de mandioca, caruru de língua de vaca (Elephantopus scaber), entre outras PANC usadas para esse prato, comidas temperadas com alfavacas (Ocimum basilicum); as moquecas de peixes frescos ou secos e salgados acompanhadas de lascas de mamão verde ou de tiras de fruta pão; uma variada qualidade de quiabos “selvagens” conhecidos particularmente por comunidades tradicionais rurais e quilombolas. 

Hábitos que não vem de hoje, mas inventados e reinventados na cultura sob a forma de costumes, conforme a vasta bibliografia dos estudos folclóricos.

Sobre o fenômeno dos costumes, um processo dinâmico, é que o historiador inglês Eduardo Palmer Thompsom afirma: 

“a consciência e os usos costumeiros eram particularmente no século XVIII... Desde a sua origem, o estudo do folclore teve este sentido de distância implicando superioridade, de subordinação”.

Thompsom foi um historiador marxista que compreendeu a importância do Folclore na sua tradição de registro de costumes como matéria na crítica ao controle social a que estavam submetidas as classes sociais “plebeias” -  como se lê no seu livro “Costumes em comum: Estudos sobre cultura Popular tradicional”. Li a edição brasileira de 1998 editada pela Companhia das Letras.  Essa referência crítica ao Folclore como uma área importante (poucos encontram sentido no valor deste material) para o estudo dos “costumes” ou das tradições culturais das classes populares teve, no Brasil, sentido semelhante ao observado pelo historiador inglês. Por longos períodos, a bibliografia sobre esta disciplina era quase um “tabu” nos estudos sociais e culturais da vida brasileira; uma objeção feroz que não via sentido em estudar "costumes" a exemplo de contos, mitos, cantos, danças, modos de as populações rurais e as classes populares urbanas prepararem suas refeições e, muito menos, o que se botava dentro da panela. 

A própria cozinha tradicional da Bahia teve os seus primeiros registros graças aos levantamentos feitos sob a perspectiva dos “usos e costumes” populares, ainda que alguns dos seus autores venham de formação acadêmica como jornalista (Darwin Brandão, Sodré Vianna, Manuel Querino, Hildegardes Vianna, entre outros). Costumo associar os trabalhos desses autores, muitos deles originados nas primeiras décadas da República Brasileira, à uma ideologia voltada para um projeto de mapeamento da "nacionalidade brasileira". 

A semana de Arte Moderna e os Congressos Afro-brasileiros são dois exemplos de reflexões para se conhecer a cabeça do brasileiro e o que é ser brasileiro. 

Uma das minhas suposições é a de que folcloristas que registraram os costumes da alimentação na cozinha tradicional da Bahia, ainda que sem o rigor metodológico, o fizeram como resultado imediato da observação. Faltou uma etnografia concisa – a qual esses pesquisadores não tiveram, então, esse objetivo. Mas o que foi feito tem seu imenso valor, sem os quais hoje não estaríamos tentando encaminhar novas perspectivas, objetivos e ações cujo sentido maior certamente está na preservação das identidades culturais, bem como descobrir caminhos que minimizem o distanciamento social quando se fala de qualidade de vida. 

Por hora, encerro a minha contribuição a esse evento, reconhecendo que o mesmo nos estimula a pensarmos saídas diante das atuais crises na alimentação advindas de modelos de produção e consumo dos quais se esperaria um comportamento ético verdadeiro; por outro lado, refletir sobre as incertezas provocadas pela COVID-19; se tem certeza, isto sim, que as PANC terão um papel fundamental.

Ericivaldo Veiga

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