Faz-se caruru de preceito por Vilson Caetano |
Foi-se o tempo em que pagar promessa aos santos gêmeos era complicado. Em setembro, mês dedicado aos "meninos", como costumam ser chamados os santos Cosme e Damião, multiplicam-se, sobretudo nas redes sociais, anúncios de empresas especializadas em organização de festas e buffet, oferecendo "caruru completo".
A expressão, estranha à gastronomia, é própria das cozinhas rituais, também chamado de "caruru de preceito". Preceitos desenrolados longe dos olhares curiosos, iniciados desde a escolha dos ingredientes na feira, observados durante a preparação e, por fim, no momento do oferecimento a "dois dois".Já há algum tempo venho insistido que o caruru de Cosme e Damião tem se apresentado aos pesquisadores da cultura afro-brasileira como uma das manifestações mais difíceis de serem etnografadas, graças à sua complexidade, riqueza e diversidade de expressões.
Não deixa de ser digno de nota, todavia, o livro do professor Vivaldo da Costa Lima, intitulado Cosme e Damião, o Culto aos Santos Gêmeos na África e no Brasil. Trata-se de um estudo detalhado, curioso e cuidadoso, semelhante a outros do velho mestre que, sem dúvida, foi o maior estudioso dos de-comer da Bahia e dos de-comer dos santos do candomblé.
No gosto de todos
Diferente de algumas poucas comidas que ficaram restritas à cozinha sacrificial dos terreiros, o caruru é um exemplo de iguaria que "caiu no gosto de todos". Pelo menos em Salvador, independente da classe social, ora por causa do nascimento de mabaços, designação quimbundo para os gêmeos; ora por causa do culto a São Cosme e Damião, médicos evocados no catolicismo popular a todo momento.
Ou mesmo pela presença do quiabo inteiro, hoje desaparecido da maioria das panelas de caruru, caído aleatoriamente no prato de um dos convidados que se obrigava a oferecer um novo caruru a Cosme e Damião. Quiabo comido às pressas pela pessoa escolhida pelos santos, cujo comer nunca passava despercebido pelos olhares dos comensais no entorno. O jeito mesmo era mandar fazer um caruru!
Era, pois, nesta ocasião, que se podia "contratar", ou melhor, chamar alguém para fazer. Assim, sempre se valia de cozinheiras, tidas como verdadeiras fadas do dendê, parafraseando Sodré Viana, que não apenas colocavam as mãos, mas o corpo inteiro nas comidas que preparavam.
Modos de fazer
E os modos de fazer o caruru? Outro desafio para quem transita no promissor campo da alimentação e cultura. Manuel Querino limitou-se informar que poderia ser feito com quiabo ou outras folhas, que depois de cozidas em água, acrescentaria-se a cebola, o sal, o camarão, a pimenta malagueta seca, ou mesmo a garoupa, ou o peixe assado, ou a carne de charque e finalmente o azeite de cheiro.
Já registrei também carurus de quiabo apenas temperados com cebola, camarão e azeite de dendê. Bem como carurus que "pegam todos os temperos" como os do Recôncavo (camarão, amendoim, castanha, alho, cebola, coentro, hortelã, gengibre, alfavaca, quioiô e farinha de mandioca para engrossar). Este último, acompanhado apenas de arroz branco e frango.
Não vamos entrar no mérito das preparações de carurus ofertadas pelas indústrias alimentícias especializadas em produtos semi prontos da culinária afro-brasileira.
Comida e sexo
Um diferencial no preparo desta iguaria é a maior ou menor tolerância à substância viscosa, chamada de baba, que o quiabo libera durante o cozimento, que a antiga metáfora "comida e sexo" não tardou a ressignificar, dizendo: com baba é mais gostoso, ou com baba é bom porque escorrega.
E como esquecer os carurus grã-finos, servidos em sofisticados espaços, caracterizados por criativas releituras e soluções curiosas? Sem deixar de falar de pessoas que nas redes sociais apelam: "Aceito convite para comer caruru".
Paralelo a isso, é inegável as modificações pelas quais passam os rituais que envolvem o caruru, a exemplo do desaparecimento da "mesa de sete meninos", que pode ser interpretado a partir do lugar que a comensalidade ocupa nas sociedades modernas. A mesa é um símbolo que "desapareceu" há algum tempo e algumas pessoas nem se deram conta.
Antes de nos perguntarmos se os "meninos" aceitam ou não "caruru de encomenda", melhor refletir sobre a afirmação de Vicent Thomas, de que "a cozinha é uma linguagem que se deve saber interpretar para melhor compreender os costumes de um povo".
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