Nas comidas típicas, Mário de Andrade buscava a essência do Brasil

Pesquisas do escritor modernista sobre alimentação são tema de evento on-line da USP, que acontece no dia 29

Por Juliana Alves

 

Um dos grandes nomes da Semana da Arte Moderna de 1922, Mário de Andrade (1893-1945) esteve presente em saraus de poesia, nos teatros, nas universidades e também em restaurantes. O escritor tinha um lado gourmet, gostava muito de comer e beber e sua atração pela culinária brasileira ultrapassava os cinco sentidos, transformando-se em objeto de estudo. É disso que vai tratar o seminário virtual Fome Estomacal de Brasil: Mário de Andrade e a Cozinha Brasileira, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que acontece no dia 29 de junho, às 15h30, com transmissão pelo canal do IEB no Youtube. O evento terá como foco as pesquisas gastronômicas do escritor, que se relacionam com aspectos históricos e culturais do Brasil no século 20.

“Fome física, fome estomacal de Brasil agora”, escreveu Mário de Andrade em uma carta ao amigo Câmara Cascudo. Essa fome se referia à vontade visceral de conhecer e “mastigar” o Brasil, com suas tradições e seus costumes, com as influências estrangeiras formando a mistura essencial brasileira. A organizadora do seminário, Viviane Aguiar, doutoranda em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, destaca que será apresentada essa “mastigação” de Mário de Andrade por meio de sua coleção de cardápios, um dos itens do acervo do escritor preservado no IEB. Além disso, serão abordados os usos literários que Mário fez dos pratos brasileiros em duas obras, o clássico Macunaíma e o inacabado O Banquete, publicado postumamente.



Cardápio presente no arquivo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP – Foto: Divulgação/Arquivo IEB

 menu do diner, que distingue a homenageada como "Madame" e designa em francês todas as iguarias de sal – sopa, peixe, massa leve recheada (vol au vent) com recheio de fígado de gansos desafortunados, peru à brasileira, presunto de York, salada –; as sobremesas – bolo batizado com o nome do amigo distante, o poeta franco-suíço Blaise Cendrars, salada de frutas e sorvete. As bebidas são champanhe e licores, estes, assim como o café, para fechar o ágape que confraterniza os modernistas de São Paulo e seus mecenas, no ano da publicação de Pau Brasil, de Oswald de Andrade. O nome "Mario de Andrade", a tinta preta, no alto, indica a organização dos convivas à mesa; o apuro gráfico do cardápio; a mansão da avenida Paulista que tem por nome "Villa Fortunata" e se mostra em fotografia trabalhada pelo estúdio Stern, de Paris, testemunham o vínculo de certos representantes da elite social e econômica com a renovação das artes e das letras.


O Banquete é uma obra que desperta o interesse da antropóloga Claude Guy Papavero, que pesquisa etnografias da alimentação brasileira e será uma das palestrantes do evento do IEB. “Essa obra contrapõe diferentes pontos de vista relativos à produção musical brasileira discutidos durante um banquete, reunindo pessoas que lidavam com a música”, relata a antropóloga. Ela explica que o autor, inspirado no Banquete de Platão, que mostra uma competição de oratória em torno do tema do amor discutido após uma refeição, utilizou as reações de cada convidado perante cada prato para explicitar divergências entre seus pontos de vista. “O fato de Mário de Andrade não terminar uma obra interrompida pela morte não nos impediu de perceber a sensibilidade do escritor quanto às implicações culturais da alimentação”, diz Claude Papavero.

Nota-se esse interesse do escritor pela gastronomia brasileira no arquivo que Viviane Aguiar encontrou no IEB: receitas manuscritas e datilografadas, recortes de jornal e fichas de estudo com referências a livros de culinária e a trechos relacionados à alimentação retirados de diversas obras. “Ele se interessava em estudar sobre esses temas porque os compreendia como um aspecto da cultura brasileira, assim como o era a música, por exemplo”, comenta a Viviane. “Para Mário, conhecer e estudar as comidas das diversas regiões brasileiras, buscando as similaridades entre elas, era uma maneira de conhecer aquela que seria a essência do Brasil, que o tornaria único e capaz de ocupar seu lugar entre as nações modernas.”

Mário de Andrade: escritor tinha profundo interesse na pesquisa sobre a culinária brasileira – Foto: Divulgação

A principal influência estrangeira que forma a mistura gastronômica brasileira é a da França. Enquanto muitos intelectuais entendiam a gastronomia francesa como superior ou oposta à culinária brasileira, Mário afirmava, no artigo Tacacá com Tucupi (1939), que ambas eram combinações e, por isso, tinham o mesmo valor estético. Nas crônicas musicais que dariam origem ao livro O Banquete, também usa a estrutura de uma refeição à francesa para estruturar sua narrativa.

Essa influência francesa é discutida na dissertação de mestrado Modernistas à Mesa: a Coleção de Cardápios de Mário de Andrade (1915-1940), apresentada no IEB em favereiro de 2020 pela professora Paula de Oliveira Feliciano, que também falará no seminário. Em sua dissertação, ela analisou 22 cardápios colecionados pelo modernista. “Ao longo da história, o menu deixa de ser somente uma lista ordenada de pratos de uma refeição ou um plano de trabalho para cozinheiros para se transformar em testemunho da vida cultural, social e política de uma época”, afirma Paula, que no evento exibirá dados da dissertação.

Oliveira Feliciano, que será abordada no seminário a ser promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP no dia 29 de junho – Foto: Divulgação/Arquivo IEB

 

Ainda de acordo com Paula Feliciano, o aquivo de Mário de Andrade demonstra que as práticas culinárias francesas modelam a construção da maioria dos seus cardápios. Segundo a professora, os menus foram instrumentos marcantes para a difusão de conhecimentos culinários das potências econômicas e culturais dominantes, como a França. Símbolos dos banquetes aristocráticos até o século 19, os menus passam a figurar nas mesas burguesas como  índice de ascensão social e de civilidade. O cardápio, um impresso efêmero, figurou como um distintivo da sociabilidade das elites no século 20 também no Brasil, acrescenta Paula.

A professora conta que esses menus revelam eventos importantes na trajetória biográfica de Mário de Andrade, que testemunham momentos de sua vida pessoal, profissional, cultural e política, além de sua rede social. ela cita como exemplos um  banquete no Salão Trianon, em 1921, um almoço realizado no mesmo período em que se dava a Semana de Arte Moderna, em 1922, e o banquete de confraternização do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, promovido pelo Departamento de Cultura de São Paulo em 1937.

O interesse do escritor pela culinária como um aspecto da cultura brasileira influenciou algumas de suas ações como diretor do Departamento de Cultura de São Paulo. Viviane Aguiar explica que no período em que esteve à frente do departamento, Mário de Andrade comandou uma pesquisa sobre tabus alimentares no Estado de São Paulo, que chegou a ser apresentada no Congresso Internacional de Folclore de Paris, em 1937. Ele também acolheu a ideia de seu amigo Paulo Duarte de criar, por meio do Departamento de Cultura, um restaurante “destinado a estilizar a culinária brasileira e a fazer propaganda dos produtos e gêneros alimentícios nacionais”. A pós-doutoranda afirma que esse restaurante seria instalado em um dos saguões do então recém-remodelado Viaduto do Chá e teria um cardápio de comidas das diversas regiões brasileiras, “estilizadas”. Porém o projeto do restaurante de cozinha brasileira nunca saiu do papel. 

“Esses aspectos favorecem novos olhares sobre as relações dos escritores modernistas com a culinária, seja em termos de sociabilidade – o convívio em torno da mesa -, seja em termos de desenvolvimento de estudos que se debruçam sobre a complexa identidade brasileira, em suas diversas manifestações”, segundo o professor Marcos Moraes, do IEB, que também participará do seminário.

“O que queremos mostrar nesse seminário é que a ‘fome estomacal de Brasil’ também teve um sentido mais literal, de buscar compreender a nação por meio do que se comia e se bebia”, afirma Viviane Aguiar. Para ela, conhecer o Brasil era se permitir ser devorado por ele e pelas suas comidas de “gosto forte e inconfundível”, como o caju e o tacacá com tucupi. 

O seminário virtual Fome Estomacal de Brasil: Mário de Andrade e a Cozinha Brasileira, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, será realizado no dia 29 de junho, às 15h30, com transmissão pelo canal do IEB no Youtube. O evento é grátis, aberto ao público e sem necessidade de inscrição.







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