Entre Europa e Brasil, entre sabores, cores e letras, Bate&Leva com Eveline de Abreu.

Com um pé no norte de Portugal, outro na Bahia, o Bate&Leva, de hoje, é com Eveline de Abreu. Nossa entrevistada fala da escrita, como sendo o seu ofício sem ossos, e das escapadas até à cozinha, quando a saudade de casa bate forte. 

Ter morado a cinco passos da bela Avignon, na Provence (sul da França) e, desde 2017, em Guimarães, onde nasceu Portugal, certamente explica o gosto apurado e seu cuidado com a alimentação. 

E, graças às facilidades das novas tecnologias, ela dá aulas para capacitação em produção textual a alunos espalhados nos quatro cantos, para o que desenvolveu uma metodologia de ensino sem trauma ou sofrimento. Redatora de profissão, Eveline é especialista em avaliação de conteúdo, tanto para as necessidades de comunicação do mundo virtual como as do mundo em carne e osso. 

 Em alto e bom som, ela declara não passar sem arroz, mas “tem que ser do bom, feito com folhinha de louro, salpicado de alho fumé e regado com fios de azeite, um luxo, se enfeitado com farinha de grãos de ibisco, semente de linhaça e gergelim torrado”. E cita boas referências culinárias da Bahia e de outros lugares. “Tenho memória afetivo-gustativa de gente boa no tacho e na colher de pau, como Caroline Vanruytem, do Riad Dar Azaouia, em Assilah, Marrocos, e você. Nunca vou me esquecer de um peixe na folha de bananeira, acompanhado de arroz fumegante e branquinho com um purê de banana-da-terra que você fez há mil anos, bem antes do seu restaurante Maria Mata Mouro.”

Alicio Charoth- Provocação: vatapá ou caviar? 

EVELINE DE ABREU- Vatapá, vatapá e vatapá. Disparado!

AC- Se pudesse sentar à mesa com Eveline de Abreu, o que lhe perguntaria? 

EA- O que ela quer comer (risos). 

AC- Cite algumas peculiaridades do seu trabalho. 

EA- Escrevo, antes de viver de escrever. E desenvolvi uma metodologia voltada para o aprendizado da escrita sem trauma, nem sofrimento. Tem funcionado. Reeditei, em versão virtual, o curso Texto&Contexto | Incubadora de Escritores, que atende a todo tipo de interesse e necessidade, porque escrever é um ato único e sólido, que se presta à qualquer circunstância.

AC- Que te faz brilhar os olhos com seu trabalho? 

EA- Vou dar um exemplo: imagine você que tenho uma aluna na Irlanda, a paraense Vera Duncan, escrevendo o romance familiar, a maestra e doutoranda teuto-brasileira Andrea Huguenin, sobre a musicologia feminista, e a artista plástica baiana Cecília Menezes. Nossas aulas me transportam para as suas história, para um mundo que não me pertence. Os olhos também brilham ao ver os alunos que já alçaram voo lembrarem-se ainda de mim. É a sensação mais próxima da eternidade que conheço. 

AC- Outro dia, li uma matéria falando dos restaurantes no Brasil, que fazem comida de outros países, como a França, e escrevem os títulos de pratos no seu cardápio de forma errada. Que conselho você daria para estes empresários? 

EA- Que é mais fácil, barato e imediato eu fazer a revisão (risos). 

AC- Acha que o mercado cresceu e as pessoas estão mais conscientes do que seja uma boa alimentação? 

EA- Penso que você esteja falando de alimentação saudável. A informação circula mais. E, com ela, verdades e lendas. Por este lado, é muito legal. Por outro, e por trás, há tudo o que nos querem fazer acreditar como bom, porque é interesse de uma sociedade supermedicalizada, com seus laboratórios farmacêuticos aliados à indústria dietética e à da beleza.

AC-Sempre falo na minha página, Sossego da Flora (https://sossegodaflora.blogspot.com/), da importância de dar nome aos pratos que as pessoas criam, o que acaba sendo uma referência cultural e social. Que acha?

EA- Ainda bem que você traz para este âmbito o que eu penso para todo o resto: nomear é digno e bonito. Os nomes arrastam para a história as coisas feitas pelos seres, engendrando, assim, as referências culturais e sociais. Vamos, sim, batizar os pratos! 

 AC-- Na Bahia, precisamente no Recôncavo, temos um patrimônio que são os fumeiros, uma técnica desenvolvida ali, há séculos, mas proibidos pela saúde pública e a polícia do estado. Acha que se deve promover a inserção deste patrimônio, ou simplesmente punir, levando à extinção este bem gastronômico? 

EA- Se é um caso de cuidado com a saúde pública, que se intervenha com medidas saneadoras e não demolidoras do patrimônio. Onde já se viu! Os modos de cozinhar ou preservar os alimentos também servem para pensar. Está aí o Claude Lévi-Strauss que não me deixa mentir em O Cru e o Cozido, um livro bom de prestar atenção! 

 AC- Você está vivendo fora do Brasil há muitos anos, passou uma década na França, país que mais soube divulgar a própria gastronomia. O Brasil está vendendo melhor sua imagem no quesito culinária?

EA- Não posso falar pelo todo. Na Provence, incluindo a Côte d'Azur, os poucos restaurantes brasileiros, ao contrário dos asiáticos e magrebinos, serviam uma má comida, o que dá lugar a pensar que são apenas negócios malfeitos e sem alma. Por outro lado, há muitos produtos do Brasil. Eu, quando quero e preciso, faço e como em casa, dividindo a mesa, porque tenho orgulho de apresentar a nossa culinária. E, pelo estômago, ainda mato a saudade do Brasil. 

 AC- Como fazer para conscientizar as pessoas da importância dos orgânicos? 

EA- Eu compro, consumo e dou o exemplo (risos). Às vezes, faço pequenas preleções à mesa a respeito do assunto.

AC- As preferências alimentares são uma das principais bases da identidade cultural. Como vê este momento, onde muitos dos nossos famosos chefs valorizam e prestigiam pratos e produtos locais? 

EA- Vejo com alegria. A independência do Brasil é um grito dado aos poucos. Não é tarefa rápida desvencilhar-se da mentalidade secular e pesada do colonialismo. O que os anos 20 foram ou pretenderam ser para as artes é o que tem acontecido em nossos dias com a culinária, que deixa de se encastelar nos cânones de outras culturas e se reconhece igualmente deliciosa na mandioca, no leite de coco e no dendê. 

 AC- Qual a importância da nossa culinária como atrativo turístico? 

EA- A culinária é cara a toda e qualquer cultura. Eis uma regra da qual não conheço exceção. Particularmente, no caso do Brasil, falemos em culinárias, por sua gigantesca extensão territorial. Ela tem valor de patrimônio, portanto, de atrativo turístico, tanto quanto a arquitetura urbana, monumentos, arte sacra. Razão de sobra para ser cuidada, conservada, preservada.

AC- Vivendo num país, onde a culinária tradicional é tão reconhecida e movimenta o setor do turismo, e sendo uma das nossas matrizes gastronômicas, o que podemos aprender com a experiência portuguesa para a preservação destes saberes?

EA- Objeto de estudo e pesquisa, a culinária traduz modos e costumes. O ponto nevrálgico é o que cada país faz com a sua. Portugal se orgulha da própria história e, portanto, preserva, irrepreensivelmente, os signos do próprio passado – o que inclui a culinária. No dia que o Brasil compreender que o contemporâneo pode conviver harmoniosamente com o passado e que é bonito preservá-lo, certamente vai haver consequências felizes sobre a preservação da nossa culinária, herdeira da portuguesa, com certeza.

AC- Como a difusão dos saberes, técnicas e fazeres tradicionais, podem ajudar a preservar o nosso patrimônio culinário?

EA- Com educação doméstica, com educação formal e, sobretudo, por meio de campanhas maciças. Você se lembra da forte campanha para o uso do cinto de segurança? É desse jeitinho aí: até nos convercermos de como é bonito o que temos e o que somos.

 AC- Você tem uma receita bacana, de acordo com seu conceito gastronômico?

EA- Para provar que as letras também passeiam pela cozinha, pincei este fragmento de Cozinhando no Exílio – de ler e comer, projeto de um livro que ainda vou botar pra andar, assim que soprar bom vento. 

“PATO GENTE-FINA, uma receita que bem poderia ser com galinha, peru ou coelho. 

 De qualquer um, prefiro as carnes tenras, as mais escuras, porque não botam dificuldade na hora de absorver o tempero. Que deve ser o de base: sal, alho, cebola, pimenta-do-reino. Tudo misturado, esfregue na carne e leve-a à panela para um refogado ligeiro, numa modestíssima quantidade de óleo de coco. Antes de começar a pregar no fundo, junte a água de cozimento em quantidade pouca e tomate pelado espremido entre os dedos. Salpique uma mistura feita de tomilho, orégano, sálvia, alecrim e manjericão desidratados (ervas-da-provence em versão simplificada) para perfumar. Reduzir o caldo e retificar o gosto. 

 Desfie a carne cozida no sentido da fibra, em lascas não muito finas – lembre-se de quando cozinhar uma carne, congelar o que sobrar do caldo em cubas de gelo e utilizar esse concentrado para temperar outros pratos.

 Purê, sim. Mas de macaxeira, mandioca, aipim. Leve a raiz à fervura com casca e tudo, pois, cozida, não dá trabalho para descascar. Triture com vontade, salgue, bote uma gema de ovo e um tantinho de leite para aveludar, mas nunca amolecer – a consistência deve ser firme.

 Unte o recipiente e, nele, deite uma camada do purê outra do pato desfiado e mais uma do purê. Espalhe queijo gruyère moído cobrindo toda a superfície. Leve ao forno, só para derreter, só até dourar. Atenção para não deixar o queijo esturricar. 

O Pato Gente-Fina é autossuficiente. Mas eu sou brasileira e gosto de contrastes, de complementos. Por isso, fiz brócolis al dente no vapor, regado de azeite de oliva e alho cru picadinho, para acompanhar este prato.

 Perfeito cavalheiro, não oferece resistência, ao ceder lugar à galinha, ao peru e ao coelho. Um exemplo de pato. Em tempo: o Pato Gente-Fina é primo-irmão do Hachis-Parmentier francês.”

AC- E para falar com você sobre seus cursos? 

AC- E para falar com você sobre seus cursos? 

EA- Pelo WhatsApp (+33) 695 308 016 e pelo e-mail, textoecontexto.tec@gmail.com.

AC- Beijo e obrigado pelo carinho, Eveline!

EA- Beijo e obrigada, também, Alicio. O carinho por você é das antigas!


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