Encontro da Lusofonia discute os desafios da cooperação em tempos de pandemia.

O que NOS une é maior e mais forte de que o que nos SEPARA!

O encontro, que contará com a presença do Ministro das Comunidades de Cabo Verde, Eng.º Jorge Santos, da Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas, Dra. Berta Nunes e do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação de Portugal, Dr. Francisco André, abordará práticas de desenvolvimento local a partir da experiência dos parceiros, a complementaridade das geminações com a cooperação LEADER e o futuro da cooperação, designadamente no âmbito das políticas europeias e nacionais.

Consulte o programa em anexo.

A participação é gratuita, basta ligar-se ao direto através  de:

https://www.youtube.com/channel/UCsavOmP20Rb878Yg6s7rUwg

LUSOFONIA

Ao todo, nove países fazem parte do chamado mundo lusófono, adjetivo que classifica os países que têm o português como língua oficial ou dominante. Veja só quais são eles: Brasil, Portugal, Angola, Timor-Leste, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Guiné Equatorial: países linguisticamente unidos.

Com ampla diversidade cultural, países lusófonos africanos carecem de atenção do Brasil

Apesar de violência praticada pela colonização, países de língua portuguesa da África se destacam culturalmente

A gastronomia, a literatura, os vestuários: formas de cultura que chamam atenção em países como Moçambique, Angola e Cabo Verde 

Por: Gabriel Araújo, Ligia Andrade, Lígia de Castro, Maria Eduarda Nogueira e Thaislane Xavier

Ouro, diamante, especiarias… durante séculos, as riquezas de territórios da África e do Brasil foram alvos do colonialismo europeu, que buscava explorá-los ao máximo, por cada aspecto possível de valor econômico. 

As marcas deixadas ainda são evidentes, mesmo tanto tempo depois – em comum ao Brasil, seis nações da África adotaram a língua portuguesa como idioma oficial, em detrimento às suas linguagens de origem. Mesmo assim, o desenvolvimento cultural próprio de cada um desses países consegue, aos poucos, encontrar seu lugar ao sol. Para isso, porém, carece da atenção primordial de um primo mais rico, porém não menos afetado: o Brasil.

Buscando explorar justamente os intercâmbios culturais estabelecidos entre as antigas colônias lusófonas e os países na atualidade, pesquisadores da Universidade de São Paulo mergulham na conexão multicultural entre Brasil, Cabo Verde, Angola e Moçambique – três dos países de colonização lusa no continente africano (os outros são Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Guiné Equatorial). E as relações construídas, embora o povo brasileiro ainda as entenda limitadamente, são muito mais profundas do que se pode imaginar, mostrando que, acima de tudo, é um dever do brasileiro compreender cada vez mais seus coirmãos do oeste, exatamente do outro lado do Atlântico.

Antes, porém, de se entender mais sobre aspectos da cultura de cada um dos países selecionados, faz-se necessário passear pela história geral de cada um, para verificar como se estabeleceram tais relações. Passo a passo, as conexões ficam mais clarividentes e, ao final, captar aspectos culturais diversos advindos de históricos profundamente semelhantes demonstra-se fundamental ao intelecto tupiniquim.

Cabo Verde, Moçambique e Angola através dos séculos

Os séculos 15 e 16 foram marcados pelas chamadas Grandes Navegações. Realizadas na transição entre Idade Média e Idade Moderna, elas trouxeram mudanças drásticas para o modo de funcionar de muitas economias e sociedades: iniciou-se a era mercantilista – muito ligada às relações entre colônias e metrópoles, ao absolutismo, e à escravidão.

Para tanto, empreendimentos atlânticos foram lançados por diversos países europeus com o intuito de expandir comércios e obter ouro, especiarias e mão de obra escrava de territórios africanos, asiáticos, e, mais tarde, de americanos. Portugal foi pioneiro nesse processo. Não só era uma das grandes potências da época, como havia feito um belo aprimoramento de suas técnicas de navegação ao longo dos anos. Ele direcionou, como explica a docente pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), Marina de Mello e Souza, vários investimentos para empreendimentos como esse, e acabou sendo um dos Estados a conquistar mais terras nessa disputa.

Assim, se faz importante a compreensão a respeito dos demais países que, como o Brasil, receberam a colonização portuguesa. A África possui seis destes e, embora boa parte do povo tupiniquim dê pouca atenção a eles, as riquezas socioculturais de cada um merecem um olhar mais aprofundado. Com base especialmente em trabalhos desenvolvidos na Universidade de São Paulo, aqui vêm à tona três deles: Cabo Verde, Moçambique e Angola.

A República do Cabo Verde é um país localizado na África Central, em um arquipélago de dez ilhas. Sua língua oficial é o português, por uma razão simples: em meados do século 15, foi um desses territórios ocupados por Portugal em uma de suas expedições marítimas comerciais. Marina de Mello explica que essas ilhas eram desabitadas antes dos portugueses tomarem-nas e levarem africanos para lá. Segundo ela, ali ocorreu “a formação de uma sociedade mestiça, ou crioula, desde o início da sua história”.

A docente do departamento de Letras da FFLCH Simone Caputo Gomes explica que esses mestiços tiveram uma ascensão social ao longo dos anos. “Os portugueses começaram a conviver com as mulheres africanas, e formaram famílias. Esses mulatos tiveram grande importância na cultura cabo-verdiana, porque ocuparam uma posição inédita: a de uma elite culta e endinheirada mulata, que tinha direito inclusive a heranças.”

Usado como ponto estratégico em relação ao tráfico de escravos e de mercadorias, o território de Cabo Verde foi muito visado à lógica mercantilista até o fim do século 19. Nesse período, Portugal receberia ordens da Inglaterra (sua parceira econômica) de que a mão de obra escrava não mais fosse traficada. Com o tempo, assim, o arquipélago foi perdendo seu caráter estratégico. Foi apenas durante o século 20, entretanto, que o país de fato clamou por sua independência e conseguiu esse status, em 5 de julho de 1975, sem ter de passar por uma guerra.

A República de Angola está localizada na costa ocidental da África. Segundo Marina de Mello, essa região foi assim chamada pelos portugueses porque os povos que a habitavam no fim do século 15 eram governados por um “ngola” (um título de chefia). As várias etnias que viviam ali eram, em grande parte, do macro grupo banto, e, embora tenham passado a conviver com os portugueses desde o século 15, esse contato só se tornou de fato recorrente muitos anos mais tarde. Conforme explica Marina, Angola foi “construída a partir da conquista militar lusitana na primeira metade do século 17, mas só ganhou as feições de uma colônia portuguesa no final do século 19”. Foi durante esse século 19 que várias expedições portuguesas foram lançadas a esse território com o intuito de penetrar o interior do país e conquistar o domínio desses espaços.

No século 20, esse domínio português sobre Angola de fato se intensificou. Mas não foi assim tão duradouro. As guerras de independência logo vieram, na segunda metade do século, e foram bastante turbulentas. As frentes principais de luta:  Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), e União Nacional para Independência Total de Angola (Unita). A independência foi conquistada em 11 de novembro de 1975, mas os conflitos pela tomada de poder continuaram desde então.

A República de Moçambique localiza-se na costa oriental do continente africano. Contornando o sul da África e chegando ao oceano Índico, os portugueses também se estabeleceram nessa região que viria a ser chamada de Moçambique. Segundo Marina, ali era comercializado ouro, mas também eram presentes diversos outros produtos como peles, plumas, essências aromáticas e até mesmo marfim. A história de ocupação dessa região teve algumas semelhanças com a de Angola: Moçambique também era, a princípio, “uma pequena região controlada pelos portugueses, aliados a povos locais, e só no final do século 19 teve seus limites atuais definidos”.

As expedições portuguesas também estiveram presentes durante o século 19 e 20 nesse país, principalmente depois da Conferência de Berlim. O processo de junção de várias etnias em uma mesma fronteira, segundo a historiadora, foi violento e acabou resultando, mais tarde, nas várias guerras civis que sacudiram ambos os países. “Guerras civis eclodiram após as guerras de libertação do jugo português, nas quais houve a instrumentalização de diferenças étnicas por parte de facções políticas e interesses econômicos internacionais que se confrontaram no contexto das guerras civis de Angola e Moçambique”. No caso das guerras de independência e guerras civis de Moçambique, os movimentos a entrarem em conflito foram a anticomunista Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), e a marxista Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). A independência foi de fato conquistada em 25 de junho de 1975, pouco antes da angolana.

As religiões predominantes

A cultura de Portugal está muito presente em vários aspectos sociais de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Mesmo atualmente, percebe-se influência gritante dos lusitanos na literatura, na culinária, nas músicas e na língua de cada um desses países africanos.

As religiões são exemplo forte disso. Na verdade, um olhar sobre os dados recentes chega a surpreender: a maioria da população dos três países é católica. Em Cabo Verde, estima-se que 87% da população seja católica; em Angola, segundo o censo de 2014, são 41%; e em Moçambique, segundo o censo de 2017, são 27,2%.

A historiadora Marina de Mello Souza, que também é especialista em religiosidades africanas, explica que a introdução do cristianismo pelos portugueses ocorreu de formas diversas conforme a religião já praticada pelas diferentes etnias, e a época em que se deu tal introdução. “Os ensinamentos cristãos foram geralmente entendidos a partir da lógica das formas de pensamento e das religiões locais, havendo a criação de novas formações religiosas.”

E não só o cristianismo é forte nesses países. 

A influência do islamismo e do judaísmo é especialmente grande em Moçambique, correspondendo respectivamente a 18,9% e 15,6% da população local (segundo censo de 2017). Já em Angola, 38% da população é protestante (censo de 2014).

As religiões chamadas ‘tradicionais’, presentes nessas áreas mesmo antes de os portugueses chegarem, já não são mais maioria, portanto, em nenhum dos países analisados — embora continuem sendo praticadas por alguns setores da sociedade.

Sobre essas religiões tribais, Marina explica que cada etnia mantém a sua própria, mas há alguns elementos comuns a muitas delas de origem na África subsaariana: “há uma crença na existência de uma esfera da existência visível (dos homens em sua vida cotidiana); e na existência de outra invisível (dos mortos, dos espíritos e das divindades), sendo que as duas esferas estão continuamente conectadas”. 

As entidades dessa esfera invisível, e os ritos realizados para contatá-la podem ser diferentes de religião para religião.

Marina ainda diz que a capacidade de incorporar novidades sem abrir mão das tradições é uma característica das culturas africanas subsaarianas: “Há uma soma de práticas e de crenças e não a substituição das antigas pelas novas”. No Brasil, isso também é muito visível, uma vez que várias religiões relacionadas ao Candomblé se mantiveram ao longo dos anos, e vários antigos praticantes, quando foram convertidos ao catolicismo, trouxeram elementos de suas religiões para essa nova prática forçada.

Gastronomia: aspecto comum em países lusófonos

Com tantas semelhanças entre os países de colonização portuguesa não há dúvidas de que esse intercâmbio também chegou ao âmbito gastronômico. Moçambique, Angola, Cabo Verde e Brasil têm pratos típicos parecidos, mas com nomes e adaptações feitas em cada país.

Conhecido em Moçambique como Abóbora com Coco, o doce de abóbora faz sucesso no país africano, assim como no Brasil. O modo de preparo não se diferencia nos dois locais e os ingredientes podem variar de acordo com o gosto pessoal do cozinheiro. Mas resumidamente água, coco ralado, abóbora, açúcar e cravos da índia fazem o prato.

Outro prato comum aos dois países é o Bolo de Mandioca. A grande diferença está no modo de preparo entre os dois: em solo moçambicano o número de preparos é maior e os processos são mais delicados, enquanto no Brasil em geral se faz de forma simples usando um liquidificador.

Em Cabo Verde, o pirão e o grogue (um destilado de cana de açúcar muito parecido com a nossa cachaça) formariam uma bela dupla para os famosos “pirões” feitos em várias cidades brasileiras para comemorar o nascimento de uma criança. O prato é feito com caldo quente, que pode ir de frango à bacon, e farinha, com a cachaça ou com o grogue são feitos licores caseiros que compõem festas nos interiores brasileiros.

Angola também possui duas grandes paixões em comum com o Brasil: a moqueca e a cocada. A primeira é um cozido, geralmente de peixe, cuja origem remontaria à peixada trazida pelos portugueses, à qual os africanos teriam acrescentado ingredientes da sua tradição culinária. A cocada é um doce à base de coco e sua receita pode variar de acordo com cada país.

Os quatro países têm, de maneira geral, vários pratos em comum que se adaptam de acordo com a cultura local, mas sem sombra de dúvidas o mais famoso que está presente em todos eles é a feijoada. O nome é dado ao guisado de feijão, normalmente feito com carne e acompanhado de arroz, presente em países lusófonos. Sua origem foi no norte de Portugal. Hoje em dia constitui um dos pratos mais típicos das cozinhas portuguesas, com as versões à transmontana, à poveira, portuguesa, à brasileira, à moda do Ibo e cachupa.


Literatura: fenômeno plural

A literatura é um dos fenômenos culturais mais representativos de um povo. Em nações anteriormente colonizadas, as obras têm ainda mais impacto. Moçambique, Angola e Cabo Verde têm um elemento em comum: receberam a influência da literatura brasileira, com destaque para Jorge Amado.

Essa admiração pelo escritor baiano ia na contramão daquilo que acontecia no Brasil, já que suas obras não eram valorizadas pela Academia por conterem muita “sensualidade”. É interessante notar que foi justamente isso que aproximou o escritor dos países africanos. Em especial Cabo Verde. “Os cabo-verdianos tiveram uma sintonia muito grande com o Brasil”, diz Simone Caputo.

As terras tupiniquins serviram de inspiração não só literária para a ilha africana, mas também política. O Brasil já tinha conquistado sua independência, assim, ele se torna referência, como um “irmão ex-colonizado”. “Os olhos de Cabo Verde vão se deslocar de Portugal para o Brasil, num determinado momento da história da literatura”, explica a docente.

A afinidade entre os dois territórios tem raízes na Geografia também. Isso porque as ilhas de Cabo Verde ficam no deserto do Sahel, ao sul do Saara, o que as torna extremamente agrestes, assim como o sertão brasileiro. “Os autores cabo-verdianos, sobretudo aqueles que compõem a primeira geração da década de 1930, vão falar muito da seca e da proximidade entre as culturas de Cabo Verde e do nordeste brasileiro”, comenta Simone.

Embora tenham em comum a colonização portuguesa, todos esses quatro países lidaram de forma diferente com o domínio da Coroa. Essa diferença é notável quando se analisa a literatura angolana. Marcadas pela resistência anti-colonial, as primeiras manifestações literárias no país se diferenciam muito do Romantismo brasileiro, por exemplo. Para Tania Macêdo, também professora na FFLCH, a principal diferença entre as duas literaturas é justamente a afirmação da independência.

Mas há também semelhanças e aproximações, como comenta Tania. “A aproximação da literatura brasileira se deu na mesma medida do afastamento de uma certa literatura portuguesa de exaltação do colonialismo”. A primeira fase da literatura angolana foi influenciada por essa aproximação. Os autores dos anos 50 e 60 foram ávidos consumidores das obras brasileiras, como aquelas de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e, é claro, Jorge Amado.

A partir da independência, Angola conseguiu explorar novas temáticas e gêneros literários, não atrelados à resistência contra Portugal. Um dos novos gêneros foi o infanto-juvenil, que era praticamente inexistente no país. “O que tinha era literatura infanto-juvenil para crianças brancas. O público negro não era um público previsto pelos colonialistas”, diz Tania. A formação da União dos Escritores Angolanos foi de suma importância para que os autores da época pudessem ter uma rede de apoio.

Mesmo com surgimento de novas formas de fazer literatura, o romance não perdeu sua importância e seu elemento de crítica. Essa característica, muito forte na literatura angolana, não pode ser notada em Moçambique, no entanto. A disparidade entre as duas pode ser explicada por um fenômeno demográfico: Angola é um país mais urbanizado que Moçambique. “Esse processo de urbanização deu outro ritmo à literatura angolana, inclusive à prática do romance como gênero literário. O romance na literatura moçambicana surge muito recentemente”, explica Rita Chaves, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH.

A literatura moçambicana também teve um senso de afirmação da identidade mais forte que a brasileira. “Ela nasce muito comprometida com o processo de constituição da identidade moçambicana, em confronto direto contra o senso colonial”, diz Rita. Embora o Romantismo brasileiro tenha se preocupado com a criação do “herói nacional”, o período foi pautado por fortes influências europeias ‒ vide a aproximação do nativo brasileiro com o cavaleiro medieval. A afirmação da identidade puramente brasileira na literatura pode ser vista apenas a partir do Modernismo.

Um dos problemas que enfrentam os escritores moçambicanos é que, embora falem de seu país e de seu povo, não possuem tantos leitores em seu próprio território. Isso porque uma parte pequena dos habitantes efetivamente fala português. “Os moçambicanos escrevem com a angústia de saber que seus textos não vão ser lidos pela população”, comenta Rita.

Em compensação, em outras partes do mundo ‒ o Brasil incluso ‒, há apreço por essa literatura. Um dos escritores mais célebres, Mia Couto, “procura traduzir Moçambique para um público não completamente inserido naquilo que seria a tradição moçambicana”, diz a docente. Fato curioso, e que retorna a influência de Jorge Amado nas ex-colônias africanas, é que o irmão mais velho de Mia Couto chama-se Fernando Amado e seu irmão mais novo, Jorge.

A literatura brasileira se faz presente não só nos nomes da família de Mia Couto, mas também no fato de que ler escritores do Brasil ajudou na formação dos escritores de Moçambique.

[Maria Eduarda Nogueira e Lígia de Castro]

A importância da ciência e intelectualidade africana em língua portuguesa

Professor de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP, Ricardo Alexino Ferreira tem em desenvolvimento uma pesquisa sobre intelectuais de países africanos falantes da língua portuguesa. Em 2012, o professor esteve em Cabo Verde, onde já concluiu etapa de pesquisa, e agora dedica-se a mais uma conexão com o continente africano em geral: neste ano, passou cinco meses na África do Sul, principal potência econômica emergente da África, e desde o início de junho está em Angola, mais uma nação cuja língua oficial é o português, para ministrar um curso.

É exatamente de Angola, aliás, um dos principais nomes intelectuais destacados por Alexino: o do escritor Pepetela, autor de “Mayombe”, obra incluída na lista de livros obrigatórios pelo vestibular da Fuvest desde 2017. Pepetela é o primeiro africano a figurar na lista, algo que o professor valoriza, apesar da demora para que a inserção de um autor do continente na lista de um vestibular tão importante ocorresse. “As universidades brasileiras, incluindo a própria USP, ainda são muito etnocêntricas, ou seja, ainda têm muito dos pensamentos europeu e norte-americanos como referências”, diz o professor, que também atua como colunista e apresentador da Rádio USP FM, na qual comanda o programa “Diversidade em Ciência”, em áudios de artigos fornecidos à reportagem.

“Mesmo após o processo de colonização, na atualidade, as produções intelectuais, científicas, literárias dos africanos são vistas como algo menor”, completa, agora em entrevista, voltando a mencionar a limitação que é ter apenas Pepetela como autor africano na história da Fuvest. “Alguns intelectuais não-africanos se esforçam para reverter essa situação.”

O professor ressalta que, entre os 54 países constituintes do continente africano reconhecidos pela ONU, dentre os quais seis falam português, há um sem número de intelectuais, ciência e tecnologia, reiterando a importância dos olhos brasileiros se voltarem a esses países. “Os escritores e escritoras de países africanos de língua portuguesa têm uma literatura sofisticada e narradora dos movimentos pós-colonialistas”, diz ele.

Para Alexino, portanto, grande parte dessa conexão a se estabelecer entre o Brasil e a África está na literatura dos países de língua portuguesa – e, evidentemente, não apenas com Pepetela. Ao lado dele, por exemplo, está o moçambicano Mia Couto, também indicação de vestibulares: seu “Terra Sonâmbula” já figurou na lista da Unicamp e, a partir de 2022, substitui Pepetela na Fuvest. O professor destaca que a ligação é crescente, muito em função dos vestibulares, mas ainda incipiente. “A maior parte dos brasileiros conhece muito pouco do que é produzido nos países africanos.”

A literatura infanto-juvenil, segundo o professor, teria de ser melhor explorada, especialmente pelo reconhecimento das excelentes narrativas que os povos africanos podem construir. Nesse sentido, Alexino destaca o trabalho de Marilene Pereira, jornalista e educadora brasileira que vive há três décadas em Cabo Verde e, além de desenvolver trabalho para o estímulo à literatura infanto-juvenil nesses países, produzindo obras focadas nesse público, foi tema de uma das colunas do professor na Rádio USP, intituladas “Diversidades”.

“Ela viu que, mesmo entre o público infantil cabo-verdiano, havia carência de obras literárias específicas para crianças e adolescentes, e assim ela começa a produzir várias obras para esse público”, afirma Alexino, destacando também as ilustrações dos livros, que levam traços culturais do país. “Marilene também foi apresentadora de programas infantis em televisões de Cabo Verde”, completa, mencionando ainda o trabalho da intelectual na direção do Centro Cultural Brasil-Cabo Verde.

Apesar de ter o português como língua oficial, porém, Cabo Verde é berço da língua crioula, cuja defesa Alexino reforça ser importante. Em seu contato com a reportagem, o professor destacou uma entrevista concedida por ele à TV cabo-verdiana TCV, na qual, além de trazer argumentos favoráveis à utilização do crioulo, aponta o resgate que pretende fazer da intelectualidade africana em nações de língua portuguesa, trazendo-a para o Brasil. Ele também destaca a importância da ciência para o futuro do país, um arquipélago de quatro mil km² a quase 600 km da costa da África.

Nada são flores

Vale destacar, porém, que os avanços mencionados, especialmente na literatura, são posteriores à colonização, e herdam – se muito – a linguagem comum. Alexino destaca que a colonização portuguesa é, sim, um ataque às culturas dos países africanos. A questão da língua, acrescenta o professor em entrevista, é um dos principais pontos de afronte da colonização portuguesa às nações. “Todos tiveram as suas culturas violentamente atacadas e a tentativa de anular as suas memórias através da imposição da língua portuguesa. Até hoje as línguas originais dos africanos são tidas como dialetos – ou seja, consideradas uma língua menor. Isso é muito violento”, comenta.

Os avanços de Portugal sobre os países da África estão diretamente ligados às suas riquezas minerais. Se no Brasil o ouro foi uma busca incessante dos colonizadores, em nações como Moçambique e Angola o diamante, por exemplo, motivou as ações lusitanas. “A colonização visa antes de tudo a exploração econômica e a coisificação de pessoas”, conclui Alexino.

“Temos que ver os países africanos de língua portuguesa como aqueles que tiveram seu desenvolvimento e evolução totalmente atacados. Depois de explorar ao máximo, Portugal abandona essas colônias, deixando-as à própria sorte, envoltas em guerras civis. Hoje esses países tiveram a herança portuguesa da corrupção, de governos ditatoriais e outras mazelas. Herança portuguesa, com certeza”.


– Ricardo Alexino Ferreira, professor da USP


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