Paladar: na pespectiva nativa de Luis da Câmara Cascudo

Seus escritos etnográficos, em sua maioria elaborados ainda na primeira metade do século XX, de certa maneira anteciparam os estudos antropológicos  que floresceram no Brasil nos anos 70 e cujo foco era a vida cotidiana. 

Ao tempo em que escrevia seus estudos emográficos sobre comidas, bebidas, gestos, palavrões, jangadas, redes-de-dormir e outros aspectos da vida cotidiana brasileira,tais temas não eram considerados objetos relevantes para cientistas sociais sérios e responsáveis.

José Reginaldo Santos Gonçalves se propôs discutir algumas categorias culinárias no contexto da cultura popular brasileira, tal como são representadas nos estudos do etnógrafo e folclorista Luis da Câmara Cascudo, a partir de uma leitura de seus textos, alguns problemas e hipóteses eventualmente úteis para um entendimento dos sistemas culinários no Brasil. 

Na perspectiva de Castro, um sistema de alimentaçâo funciona para alimentar as pessoas, para satisfazer as necessidades biológicas de uma determinada populaçao. Argumentando nos termos de uma concepção "estratigráfica" de cultura, fundada em relações funcionais entre os níveis biológico, psicológico, social e cultural (Geerrz, 1973: 37), Castro entende a fome como uma necessidade biológica a ser satisfeita, de modo mais ou menos bem-sucedido, pelas instituições sociais, econômicas e políticas. 

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Para Câmara Cascudo, o "paladar" é determinado por padrões, regras e proibições culturais. 

Mais que isso, segundo ele, o paladar é um elemento poderoso e permanente na delimiração das preferências alimentares humanas, e esrá profundamente enraizado em normas culturais. 
Diz Cascudo (1983[1963]: 26-7): 
"A escolha de nossos alimentos diários está intimamente ligada a um complexo cultural inflexível. 
O nosso menu está sujeira a fronteiras intransponíveis, riscadas pelo costume de milênios". 
Assim, o paladar não pode ser facilmente modificado por políticas públicas fundadas no argumento médico de que determinados alimentos oferecem um maior valor nutritivo.
Para Cascudo (1 983 [1963]: 1 9): 
"é indispensável ter em conta o fator supremo e decisivo do paladar.
Para o povo, não há argumento probante, técnico, convincente, contra o paladar. .. ". 
Modificações do paladar, argumenta, dependerão da mesma fonte de sua formação: o tempo. 
Qualquer sociedade ou cultura humana elabora alguma forma de distinção entre a fome e o paladar. 
E importante, no entanto, focalizar a natureza da relação entre essas categorias. 
No caso dos escritos de Cascudo, e particularmente das categorias neles expressas, o paladar desempenha uma função dominante, enquanto a fome, uma função subordinada. 
Em tal perspectiva, são as regras culturais e as trocas sociais que definem a natureza humana, e nao as necessidades biológicas. 
Um sistema alimentar funciona não exclusivamente para satisfazer 
essas necessidades, mas para expressar um paladar cultural e historicamente formado.
Como uma necessidade natural, a fome vem a ser satisfeita por qualquer 
tipo de alimento, do mesmo modo que a sede é satisfeita pela água. 
Mas o paladar está associado a modalidades distintas de comidas e bebidas. 
Mais que isso, está associado a formas específicas e particulares de preparação, apresentação e consumo.
Por intermédio do paladar, os indivíduos e grupos distinguem-se, opõem-se
a outros indivíduos e grupos. 
Por essa razão, o paladar situa-se no centro mesmo das identidades individuais e coletivas. 
Nesse sentido, tanto o "paladar" quanto a "fome" podem ser pensados 
como categorias mutuamente opostas, como princípios estruturais por meio dos quais as relações sociais e os conceitos de natureza humana são culturalmente organizados.
Se tomamos como ponto de partida uma ou outra dessas categorias, chegamos a compreensões diferentes do que sejam a sociedade e a cultura e, basicamente,
do que seja a natureza humana. 
Se nossa reflexão estiver baseada na 
"fome" como uma necessidade natural (como fala por exemplo, Josué de Castro), a sociedade será concebida como uma "coleção de indivíduos", e a cultura, como um conjunto de instrumentos por meio dos quais a natureza humana, supostamente 
fraca e dependente, poderá e deverá ser compensada. 
Nessa perspectiva, a natureza 
humana tende a ser entendida em termos biológicos. 
Vale lembrar, nesse momento, o que antropólogos como Mary Douglas têm assinalado: fome não é falta de comida, 
mas ausência de relações sociais e culturais (Douglas, 1975 e 1982). 
Entretanto, se tomamos o "paladar" como uma norma cultural, a sociedade
humana vem a ser entendida como um domínio simbólico constituído por 
relações e diferenças. 
E este é o sentido da perspectiva de Cascudo sobre a alimentação.
Em seus escritos, a alimentação existe na cultura e na história, e não 
fundamentalmente na natureza. 
Desse ponto de vista, a natureza humana é concebida como formada cultural e historicamente. 
Por meio dos alimentos, indivíduos
e coletividades fazem conexões e estabelecem distinções de natureza social e cultural. 
A alimentação, assim, como já foi sugerido, não é apenas "boa para 
comer". 
A categoria "paladar" (em oposição explícita e implícita a "fome") atravessa
o conjunto das reflexões de Cascudo sobre comidas e bebidas. 
Mais do que uma perspectiva teórica construída em termos estritamente acadêmicos, a concepção
de Cascudo expressa uma visão corrente sobre o tema no cotidiano da sociedade brasileira. 
Em outras palavras, assume-se no cotidiano que os alimentos funcionam basicamente para expressar e celebrar diferentes espécies de relações 
sociais e culturais, eles desempenham diversas funções, mas não exclusiva ou 
principalmente aquela de alimentar ou satisfazer a fome como necessidade natural.

Sistemas culilltírios brasileiros 

Como um conjunto de práticas e representações, os "sistemas culinários" estão intimamente integrados a determinadas cosmologias, unindo a pessoa, a sociedade e o universo, e identificando a posição e o comportamento do ser humano nessa totalidade. 
As preferências alimentares, os modos de cozinhar, as formas de apresentação dos alimentos, as maneiras de mesa, as categorias de paladar ou gosto, todos esses elementos inter-relacionados compõem um código cultural por meio do qual mediações sociais e simbólicas são realizadas entre os seres humanos e o universo. 
Como estágios em um longo e complexo processo, esse sistema opera uma importante transformação simbólica da natureza à cultura,da fome ao paladar, do alimento à comida, e da comida às refeições, assim como opera mediações não menos importantes entre distintos domínios sociais e culturais.
Se os escritos de Cascudo sobre comidas e bebidas forem lidos sob a ótica 
definida pelo conceito de "sistema culinário" (Mahias, 1991), perceberemos que as formas descritas de aquisição, preparação, apresentação e consumo de comidas e bebidas são termos sistematicamente inter-relacionados, ainda que não explicitamente.

Na verdade, Cascudo nos traz uma percepção nativa daquilo que 
poderíamos chamar de "sistema culinário" popular brasileiro. Baseado em pesquisas
bibliográficas e de arquivos e em sua memória e experiência biográfica, 
Cascudo descreve as preferências brasileiras tradicionais por determinadas co midas e bebidas, assim como os meios específicos de as preparar, servir e consumir.
A perspectiva de Cascudo é historicamente orientada, e seu foco descritivo
está voltado para um Brasil "tradicional", que teria existido em sua inteireza
até fins do século XlX. Um Brasil do passado (o "Brasil Velho"), mas ainda assim existindo na forma de "sobrevivências" ainda ativas em diversas modalidades da chamada cultura popular contemporânea no mundo rural e urbano. Suas fontes são textos de viajantes dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX; textos literários nacionais e estrangeiros de períodos históricos diversos; e especialmente sua experiência biográfica como membro da elite nordestina brasileira, na condição de um etnógrafo nativo. 
Como etnógrafo, Cascudo costumava entrevistar exescravos, ex-proprietários de escravos, cozinheiras, seus próprios empregados e empregadas domésticas, membros de sua família (especialmente as mulheres), cozinheiros de restaurantes, pescadores e toda sorte de pessoas envolvidas direta ou indiretamente com atividades culinárias (Cascudo, 1983 [1963]).
Num estilo não muito distante de James Frazer, Cascudo reúne um conjunto de dados históricos e etnográficos relati vos ao Brasil e a outras partes do mundo. 
Ali vemos um vasto acúmulo de informaçôes sobre diferentes elementos
ou aspectos do sistema culinário brasileiro: formas de escolha, aquisição,
preparação, apresentação e consumo de determinados alimentos e bebidas,
maneiras de mesa, categorias de paladar, modos de lidar com os restos de
comida etc. 
No nível mais consciente e explícito da organização de seu pensamento,
ele ordena esses dados em uma seqüência histórica que se estende do Brasil tradicional ao Brasil que lhe é contemporâneo, ou seja, do século XVI ao
século XX. 
No entanto, meu ponto é que os escritos etnográficos de Cascudo sobre comidas e bebidas tendem a se configurar de modo muito mais rentável, do ponto de vista descritivo e analítico, se os lemos, não em termos dessa seqüência evolucionária, mas de um modo sistemático e sincrônico. Neste sentido, o Brasil tradicional e o Brasil moderno não são apenas dois momentos numa seqüência histórica, mas dois modos distintos de interpretar a vida social e cultural do Brasil contemporâneo. 

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