Candomblé e comida, uma relação inseparável

Por Eva Cristina Freitas

O Candomblé não existiria sem a comida, pois ela é o elemento de comunicação entre humanos e deuses quando é ofertada como oferenda ao orixá, e essa ligação entre os mundos material e espiritual deve seguir tradições ancestrais, principalmente na preparação dos alimentos.

Para muitas das religiões, comida é bênção divina. Algumas proíbem certas comidas, enquanto permitem outras. O Judaísmo e o Islamismo, por exemplo, concordam que carne de porco é ‘suja’ e não pode ser ingerida. Os Hindus consideram as vacas animais sagrados, enquanto os Católicos não podem comer carne vermelha durante a Quaresma. Refeições e jejuns marcam rituais comemorativos, e mesmo que a conexão entre religião e comida varie de religião para religião, em uma coisa todas concordam: comida é importante e tem significado.


“Nós (Deus) derramamos água abundantemente e causamos a abertura do solo. Nós provocamos o crescimento do grão e vinhedos, plantas comestíveis, oliveiras, tamareiras, jardins cheios de folhagem, frutas e ervas, tudo para vocês e seus animais aproveitarem.” (Alcorão)


“E então Deus disse, ‘Contemplem, Eu dei a vocês cada semente de planta que existe na superfície da terra, e cada árvore que dá fruta; será comida para vocês e para cada animal na terra e para cada pássaro no céu e para cada coisa que se mova na terra e há vida, Eu dei toda a planta verde para a comida’, e assim foi.” (Bíblia)


As duas passagens acima, tiradas do Alcorão e da Bíblia, apresentam a comida como algo sagrado, oferecido e dado por Deus. Já o Candomblé considera a comida uma energia (axé) palpável, que deve ser oferecida aos orixás para se alcançar os pedidos feitos, mas também para agradecimento e iniciação na religião.


O Candomblé 

Os cultos africanos que chegaram no Brasil tinham em comum o uso de comida em seus rituais em forma de oferenda e sacrifícios, e o Candomblé manteve esse costume.

As práticas culinárias da religião, seus ingredientes e pratos são uma prova real de que a mobilidade de comida acontece essencialmente quando é um elemento importante da dieta, medicina ou religião das pessoas que estão se mudando. A diáspora, nesse caso a Bahia, tinha características similares às dos países do oeste africano de onde vieram os negros escravizados, facilitando, assim, a perpetuação de tradições que viajaram com as etnias que chegaram ao Brasil. Essas tradições, em conjunto com as tradições da população indígena nativa, e também a direção dada pelos Jesuítas que estavam no país no mesmo período, fizeram nascer a nova religião do Candomblé.

A comida faz parte de todos os rituais e cerimônias da religião afro-brasileira, e tem dimensões sagradas e profanas ao mesmo tempo. Não existe diferença entre as comidas usadas no dia a dia da cozinha baiana e aquelas usadas nas cozinhas de terreiro, mas por meio de um ritual de preparação, o corriqueiro torna-se sagrado, e essa comida é então denominada ‘comida de santo’.

Cada orixá tem sua comida favorita, e no dia em que um orixá é celebrado, as pessoas comem essa comida. Mesmo que alguns pratos mudem, certos temperos, técnicas e ingredientes de comida de santo ainda permanecerão, e esses são azeite de dendê, camarão seco, quiabo, feijão, cebola, coco, farinha de mandioca, milho, aipim e pimentas.

O abará, o acaçá, o caruru, a farofa e o manjar são comidas oferecidas aos orixás. O acarajé, a mais famosa delas, é uma das preferidas do orixá Iansã. Feito de feijão fradinho moído, batido posteriormente com cebola ralada, água e sal, e frito em azeite de dendê, é finalizado com recheio de vatapá, caruru, salada, pimenta e camarão. Mesmo sendo vendido num contexto profano pelas ruas de Salvador, o acarajé ainda é considerado, pelas baianas, comida sagrada.


A culinária baiana

Quando o Brasil era colônia portuguesa, os negros escravizados eram a única fonte de força de trabalho, e as cozinhas eram um dos locais onde eles trabalhavam.

A cultura africana levou à mesa dos colonizadores mais do que pimenta malagueta, quiabo e azeite de dendê, ela levou adaptações da comida sagrada dos orixás. Segundo a pesquisadora Arany Santana, da Casa do Benin, as escravas realçavam o sabor dos pratos colocando dendê em quase tudo, desde as moquecas até a galinha de xinxim. O azeite que sobrava virava farofa pura ou misturada com banana da terra frita. Usando leite de coco, elas temperavam ensopados, moquecas e escabeches. O bagaço do coco virava cocada branca ou preta, quando misturada com melaço de cana. O caldo que sobrava do cozido português podia, ainda, ser misturado com a farinha de mandioca dos índios e virar um suculento pirão.

A comida do Candomblé tornou-se parte da culinária baiana, e muitos dos seus pratos são consumidos diariamente pela população local e pelos turistas que passam pelo estado anualmente. Aquilo que é considerado meramente gastronomia regional da Bahia por alguns, é sagrado para outros, que acreditam que a comida os aproxima de seus deuses. Mas, mais do que isso, ela os mantém próximos de seus ancestrais.


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