Era uma vez um pais chamado Cocanha

O país da Cocanha que intitula esse texto é um país mitológico conhecido e criado durante a Idade Média. 
Nesta terra fictícia não havia trabalho, o alimento era abundante, casas eram feitas de pães e doces, o vinho nunca terminava, os rios de vinho e leite, as colinas de queijo, aliás, queijo “chovia” do céu.
O País da Cocanha, ou Cocagne, foi retratado pelos pintores Pieter Brueghel, Jacob Jordaens e Hieronymus Bosch, expostos hoje no Museu do Louvre em Paris. 
 Pieter Bruegel traz para sua alegoria uma terra de fartura e prazeres, na qual se encontram: um camponês, um clérigo (ou acadêmico) e um cavaleiro (ou soldado), representantes de diferentes classes. 
Cansados de tanto comer, eles se deitam debaixo da árvore da fartura, representada por um tronco, no qual está inserida uma tábua de madeira (mesa) cheia de guloseimas, e em cujos galhos há pães. 
À esquerda, um nobre vestindo uma armadura de cavaleiro medieval, descansa debaixo de uma tenda coberta por empadões e tortas, mas está de olho no pombo assado a voar, que, infelizmente, foi removido acidentalmente durante o trabalho de restauração da obra. 
E mais ao fundo, em segundo plano à direita, outro personagem cava um túnel numa montanha de pudim. 

Os personagens, com suas formas adiposas, são dispostos, pelo pintor, debaixo da árvore da fartura, como se eles fossem os raios de uma roda, numa alusão ao ciclo formado pela roda, que não tem fim, pois assim também funciona a gula, pois deixa a pessoa sempre insatisfeita.
 Em volta deles circulam petiscos: um ovo cozido com duas pernas traz uma faca dentro de si; um frango assado deita-se numa bandeja sobre uma toalha branca, formando o quarto raio da roda; um leitão, cortado em seu dorso, traz uma faca de cabo preto enfiada em sua pele; e de uma roda de queijo, à esquerda, próxima ao refúgio do nobre, já foi retirada uma parte. 

Sobre a mesa estão dispostas inúmeras iguarias, e os jarros virados dão a entender que os personagens já comeram até não mais se aguentarem de pé. Salsichas enroladas, à esquerda, delimitam parte da área próxima ao abismo.

  Um despenhadeiro leva a um mar sereno, na parte superior da tela, onde são vistas duas embarcações, o que também pode ser uma referência àqueles que, por não abrirem mão dos vícios, jamais encontram tranquilidade na vida, como a vista abaixo.  
O País da Cocanha, de Pieter Bruegel

Para os amantes da gastronomia, dos gostos e das artes sejam elas o “bem comer” ou o “bem beber”, desenvolveram-se denominações específicas para rotular uma distinção no conhecimento de cada um. Isso mesmo, se você come ou bebe, querendo ou não, está ranqueado numa hierarquia não regulada e nem regulamentada na qual é possível se medalhar ou ser medalhado pela sociedade. 


"Há um país pra lá da Alemanha, abundante de todos os bens, ao qual chamamos Cocanha, onde cada um, sem nada fazer, pode ir viver quando quiser; e ter roupa sem precisar de dinheiro, sempre que quiser; sem suar, nem sofrer, tem-se o que quiser. Aqueles que amam o trabalho, renegam esse lugar. Molengas e preguiçosos ali são bem-vindos e, é certo, se sentirão muito bem entretidos. Acreditarão que estão no paraíso terrestre e, por nada, desejarão trocar de lugar. Não há onde estar melhor e sem sofrimento, tão somente para desfrutar, rir, beber e comer." 

O cardápio é grande e pode representar amadores ou profissionais da alimentação.
Vamos às denominações e suas especificidades:  
Glutão
O Glutão é o mais fácil de definir, sendo o aspecto gordo, sujo, desarrumado e descontrolado que era a imagem retratada por pintores da Renascença a mesma que se tem hoje. Glutão é aquele que come muito sem necessariamente apreciar o que come. Dificilmente encontraremos quem assuma sua glutonaria.
Gourmet
O Gourmet, para o lexicógrafo francês Antoine Furetiére (Dictionnaire Universel 1960), é o precursor do Enólogo, que é o especialista em vinhos. Já o Friand, seria o que chamamos de Gourmet, “aquele que ama os bocados delicados e temperados”. Mas há um porém, Friand seria a palavra empregada aos nobres e bem nascidos e Coteau, o termo para o amante da gastronomia que não tenha tido o privilégio de um belo berço.
Os ingleses se recusavam a usar termos em francês e tentaram incessantemente emplacar seu sinônimo para Gourmet, que seria Epicure, mas não tiveram sucesso. Gourmand
Gourmand é o termo para o amante da boa comida. 
Grimond de la Reyniére tentou manter e enobrecer essa palavra, mas ela foi naturalmente substituída por Gastrônomo, que hoje também pode ser encontrado como Gastrólogo. 
Hoje o Gastrônomo é um profissional com graduação em universidades, cujas especialidades estudadas, todas relacionadas à gastronomia, passam pela história, sociologia, nutrição, práticas de cozinha, dentre outras. Ainda não é uma profissão regulamentada, mas já se caminha para isso. Teologastro
Teologastro, termo muito representado na época do iluminismo e representado pelos sacerdotes que pregavam a privação e a abstinência alcoólica, mas cujos ventres gigantescos não escondiam sua verdadeira vocação. 
Chef 
Chef é o profissional de cozinha, invariavelmente cozinheiro, que pode ser egresso dos cursos de Gastronomia, e que, após anos de experiência, acumulam conhecimentos suficientes para ser o administrador de uma cozinha e sua brigada. 
Chef não é status e não deve ser denegrido com o mau uso da palavra.
Gourmandise
O termo Gourmandise, que alguns usam para rotular nobremente seu amor pala Gastronomia, era utilizado na Idade média, por volta de 1400, para denominar a gula, palavra que ainda hoje é conhecida (por motivos óbvios), mas que sofreu inflexões desde a sua origem nos primeiros tempos do cristianismo e suas comunidades monásticas orientais dos séculos III e IV.
A Gourmandise tinha uma conotação extremamente negativa, até diabólica pelo prisma papal e vinha a qualificar um vício horrível que era de comer além do necessário para se alimentar. Vale lembrar que naquela época de penúria, pragas e escassez, alimentar-se era dividir por dez um naco de pão ázimo.
Com o passar do tempo a palavra Gourmandise torna-se sinônimo de guloseima e a invenção de novas palavras, como Gastronomia(1801) e Gastrônomo(1802), que soavam elitistas no vocabulário europeu, contribuíram para o esquecimento do que representava comer muito. Gastronomia significava a arte de comer bem e Gastrônomo, o amante da boa comida. Devido ao sufixo nomos, evoca-se para esse a noção de ciência e de conhecimento. 
Para o historiador Florent Quellier, com gastronomia não se brinca, e ele faz definições dos termos Glutão, Gourmand e Gastrônomo, sendo o primeiro um desvio de comportamento, um defeito. 
O segundo representa uma alegria de viver instintiva, primitiva.
Já o Gastrônomo, simboliza um aprendizado sério, uma educação. Nos tempos de hoje “a linha” é tênue em tudo que falamos e qualquer posição que tomamos. 
Assim como, também é tênue nossa classificação, mas para Quellier, o prazer pela boa vida, pela comida regional e pelo conhecimento são caminhos atualmente percorridos para assegurar novamente à gula uma legitimidade social. 

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