Investigação: A ideia de doçaria conventual "é um mito"



Tese de doutoramento (de 700 páginas) defende que na realidade se deveria falar apenas em doçaria tradicional ou histórica portuguesa.

DN/Lusa

Um investigador da Universidade de Coimbra concluiu, numa tese de doutoramento, que a ideia de "doçaria conventual" é um mito construído, defendendo que se deveria falar apenas em doçaria tradicional ou histórica portuguesa.

"[A ideia de doçaria conventual] é um mito criado. Os conventos também faziam doces, como toda a gente fazia. É um facto histórico que os doces feitos nos conventos circulavam fora dos conventos e com alguma valorização social por serem feitos naqueles lugares. Agora, que eles eram completamente diferentes do que existia cá fora? Não. Que eles eram secretos? Não. [...] Deveríamos falar em doçaria tradicional portuguesa ou, num conceito mais académico, doçaria histórica portuguesa", afirma à agência Lusa o docente e investigador João Pedro Gomes, que defendeu, em dezembro, na Universidade de Coimbra, a tese "A doçaria portuguesa -- Origens de um património alimentar".

Ao longo da obra com cerca de 700 páginas, o investigador discorre sobre as origens do património doceiro nacional, centrando-se entre o século XV e XVIII, onde considera estarem as bases da doçaria tradicional que ainda hoje prevalece, com algum espaço dedicado às dinâmicas que levaram à criação do conceito de doçaria conventual.

Em Portugal, a doçaria começa a desenvolver-se a partir do século XV, acompanhando o ritmo de produção de açúcar pelo país, que, no final do século XVI, se torna o principal produtor mundial.

Ainda no século XV, com a valorização da componente visual nas mesas dos nobres, o açúcar ganha protagonismo, por todas as suas possibilidades de brilhar nesse campo, ao ser manipulado em diferentes pontos.
Depois da "infância da doçaria", no século XV, em que surge o queijo e o leite no doce (os "manjares de leite" com massas assadas ou fritas e recheadas), passa-se para a "adolescência da doçaria", que se acredita ter começado na segunda metade do século XVI, com "a febre pelos doces feitos de ovos" e em que a "doçaria começa a ser usada e abusada nas mesas", ao ponto de levar D. Sebastião a pedir às pessoas para não comerem doces.

"Aí, a gema é feita para tudo. São feitas folhas de gema para montar bolos, fazem-se ovos mexidos com açúcar e surgem aquilo que hoje chamamos de cornucópias, que eram chamados de canudos de ovos e que era exatamente um canudo de massa frita com ovos mexidos doces", aclara o investigador.
longo da sua tese, que aponta para o século XIX como altura em que se reforça o mito.

Com a extinção das ordens religiosas, as freiras vivem cada vez mais de esmolas e fazem-se valer dos doces para terem algum tipo de rendimento.

Ao mesmo tempo, alguns dos mosteiros passam a ter também funções educativas nas comunidades, onde meninas "passam a aprender o trabalho doméstico, a escrever e a ler e, obviamente, aprendem também a fazer doces", afirma o investigador.

Em conversa com a Lusa, João Pedro Gomes admite que os conventos poderão ter tido algum papel na passagem de informação de receitas, mas volta a vincar que essa prática era comum na sociedade -- o secretismo em torno do receituário é algo mais contemporâneo.

Nesse mesmo período, marcado pelo romantismo e pelo confronto entre liberais e não liberais em Portugal, há uma faixa conservadora da sociedade que se revê num passado perdido, que ajuda também a "balancear" a doçaria dos conventos.

A obra que será "a pedra de toque de toda a gente que formula a ideia de doçaria conventual" é um livro de receitas assinado pela abadessa do Mosteiro de Santa Clara de Évora, do início do século XVIII.

Esse manuscrito deixa "dúvidas académicas" a João Pedro Gomes, por usar elementos da cultura material como "chávena ou colher de sopa", quando na altura usava-se "xícara" e apenas "colher, porque ainda não havia o conceito de colher de sopa".

Ao longo do tempo, a ideia foi-se cimentando na sociedade portuguesa.

Entre os mitos, surge a ideia de que as freiras usariam as claras para engomar os seus hábitos e que terá sido pelo excesso de gemas que terão surgido os doces ricos em ovos.

"É uma historieta. Não temos qualquer prova escrita de que a roupa era engomada com claras e a única prova de como se engomava a roupa surge num manuscrito em árabe, na Península Ibérica, que faz referência ao uso de amido de trigo para engomar a roupa", refere.

No meio de histórias e mitos, as pastelarias fazem valer-se da própria ideia de doçaria conventual para vender e comercializar doces, associando-lhes uma história, que muitas vezes não tem qualquer documento que a suporte, constata.

Há vários exemplos que contradizem aquilo que é o conhecimento popular: o pastel de nata não é de Belém (vem de França e originalmente em Portugal tinha pinhões) e a receita mais antiga que se conhece de sericaia é do Porto.

"Seria mais interessante valorizar a história de cada doce, porque todos têm uma história, que não tem de ser necessariamente antiga ou vinda de um convento", vinca João Pedro Gomes.

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