Decolonizando o Chique

Por Stefano Nunes
Assim que nos sentamos à mesa começam as performatividades de classe, largamente ditadas por regras europeias: usar talheres, não colocar os cotovelos sobre a mesa, limpar a boca antes de beber, não falar com a boca cheia, não fazer barulho enquanto se come. Regras perceptíveis também ao que está sendo servido; por vezes é possível identificar a classe social da família olhando seu cardápio. Macarrão com salsicha, estrogonofe de frango, maionese temperada, quiche Lorraine, penne all’amatriciana, frittata di patate. 

Os ingredientes desses pratos não são particularmente inacessíveis, e às vezes são até os mesmos. Onde está essa mágica de transformar um prato em “chique”, “coisa de restaurante de rico”, ou que reduz um prato delicioso a comida de pobre?

Quando visitei amigos na Rússia, estava em Moscou, num restaurante georgiano, e pedimos uma garrafa de vinho georgiano, de uma uva georgiana, a saperavi. Uma vez o vinho provado e aprovado pela pessoa julgada ser a figura patriarcal da mesa (performatividades burguesas muitas vezes se fincam em gênero), dou uma olhada no rótulo: “Château Mukhrani – Saperavi supérieur – Grand Vin de Géorgie”. O vinho teria continuado sendo o mesmo vinho com qualquer outro nome, outra etiqueta, outro idioma. Porém, sem apresentar-se em francês, mesmo na capital da Rússia, onde nem latino é o alfabeto, o vinho teria sido relegado a ser mais um vinho vindo de uma região menos “nobre”, cujos vinhos são desconhecidos pelo público. A etiqueta poderia ter sido feita em inglês ou espanhol, duas línguas bem mais faladas pelo mundo, ou em russo, se era esse o mercado alvo, mas não, quando se trata de vinho - e muitas vezes do resto da ideia que temos de gastronomia “chique” - a lingua franca par excellence é o Francês.

Desde a codificação de regras de étiquette por Luís XIV, sua adoção por outras cortes da Europa - e subsequentemente do Novo Mundo - e igualmente pela burguesia aspirante à “alta sociedade”, até a adoção da “alta gastronomia” francesa e a chegada da Nouvelle Cuisine ao Brasil, quem tem nos dado as cartas do que é chique de comer são os franceses.
Assim, até hoje vivemos com aberrações gustativas que não fazem sentido nenhum sendo servidas em cidades fincadas no Cerrado ou escondidas na Mata Atlântica. Sim, estou olhando pra você, entrecôte chateaubriand com molho gorgonzola, filet mignon com alguma absurdidade como risoto de brie, ou sei lá.
Precisamos urgentemente ressignificar o que é bom; onde estão nossos parâmetros de sabor? Restaurantes “tradicionais” Brasil afora continuam servindo pratos cafonas que vêm sendo servidos desde os anos 60. 
Certamente, os rigores comportamentais da pequena burguesia e sua necessidade de parecer mais sofisticado que a pessoa que a está servindo, sem necessariamente sê-lo, cristalizam nossos menus, e batalhões de novos chefs se gabam de conseguir fazer mousse de salmão, steak tartare e aioli de trufas brancas.
Ainda não temos parâmetros brasileiros do que é, efetivamente, delicioso e nosso.
Continuamos olhando para o pequi como uma coisa esquisita, espinhuda, com gosto forte, mas para trufas como “um gosto adquirido”. Nos derretemos de amores por receitas cheias de manteiga e leite, a omelete perfeita do Jacques Pépin, crispy de presunto “tipo” parma com risoto de aspargos, insalata caprese com tomates branquelos e muçarela sem gosto oriunda de uma pobre vaca curitibana.
Por que forçamos tanto a barra para não sermos nós? E por que sermos brasileiros, brasilienses, goianos, caiçaras, baianos, capixabas, caiapó, guarani, guajajara, manauara não é “chique” suficiente para justificar a busca que as pessoas têm por parecerem sofisticadas?
Existe coisa mais sofisticada que o processo que leva até uma tapioca? Admiramos os mexicanos por nixtamalizar seu milho, preservar tradições herdadas dos Tlaxcaltecas mas não conseguimos enxergar a tapioca como algo mais do que um lanchinho da roça. O que dizer do cuscuz, que quando é marroquino, é maravilhoso, é iguaria, é digno de abrir aquele vinho, e quando é brasileiro é “esqueci de ir ao mercado então vai cuscuz mesmo”.
Pagamos caro por um croissant tão murcho quanto difícil de pronunciar, tomamos afogatto com sorvete de baunilha e espresso brasileiro torrado na Itália, como se não tivéssemos como fazer infinitos sorbets de jabuticaba, cagaita, cajuzinho do cerrado, umbu, mangaba, graviola, cupuaçu, maria pretinha, milho verde, pitanga. Meu reino por um sorbet de pitanga. Quer saber? Me serve um picolé de pitanga que fico mais feliz que com qualquer petit gâteau.

É necessário que, além de reconsiderarmos nossos ingredientes como dignos participantes de refeições sofisticadas, que sejam abolidas tantas barreiras de performatividade de classe que continuam ditando o que pode ou não ser considerado “chique”, sem que nos voltemos às mesmas antigas fórmulas de gourmetização, europeização e burguesificação dos nossos alimentos preferidos.

Gostaria que algum dia servissem tapioca com ovas de tambaqui com o mesmo brilho no olho que servem caviar com blinis. Será smetana mais chique que açaí? Será que para isso é necessário que seja servido em um restaurante caro, a própria cristalização da exclusão alimentar? Será que o tacacá não tem apelo suficiente para carregar sozinho o marco do “chique”, ou ele deve ser servido acompanhado de um Saint Émilion Grand Cru?
A sofisticação de um prato se encontra em sua essência, nos ingredientes, nas técnicas, na história? Ou, como acontece com tantas outras formas de arte, no olhar do grande Outro?

Imagens:
Nick Walker
Marcos Paulo Prado
Jonathan Borba
João Marcelo Martins
Ricardo Bacelar
Thiago Falcão

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