A COZINHA COMO PILAR DA CONVIVÊNCIA SOCIAL PODE ESTARCOM OS DIAS CONTADOS

Automatizar a produção de alimentos é diferente de automatizar qualquer outra coisa. A comida é essencial para a vida, e a forma como ela é acessada, preparada e consumida pode alterar profundamente as sociedades.

Cozinhas automatizadas não são mais apenas conceitos futuristas, como vistos em “Os Jetsons”ou "Jornada nas Estrelas". Essa tecnologia já é uma realidade em todo o mundo. Robôs já estão sendo usados para virar hambúrgueres, fritar frango, fazer pizzas, preparar sushi, montar saladas, assar pães, misturar coquetéis e muito mais. 

A IA pode criar receitas com base na compatibilidade molecular dos ingredientes ou com o que estiver disponível na despensa. Conceitos ainda mais avançados estão sendo desenvolvidos para automatizar completamente a cozinha, inclusive em restaurantes de alta gastronomia.

Como acontece com toda nova tecnologia, os primeiros a adotar as cozinhas inteligentes são os restaurantes e outras empresas, que têm maior capacidade de investimento. Com o tempo, os preços devem cair, permitindo que cheguem aos lares, o que pode transformar tanto a dinâmica familiar quanto a social.

Mas a tecnologia de alimentos pode realmente mudar a sociedade? Sim, basta pensar no impacto significativo que o forno micro-ondas teve. De repente, tornou-se possível preparar uma refeição rápida para uma única pessoa, o que pode ser vantajoso, mas também um fator de disrupção social.

A conveniência pode transformar o ato de comer, de uma experiência comunitária, cultural e criativa, em um ato puramente utilitário de sobrevivência – impactando relações, tradições, a forma como as pessoas trabalham, a arte de cozinhar e outros aspectos da vida cotidiana para milhões de pessoas.

Por exemplo, imagine como seria a vida sem o micro-ondas. Em vez de comer em sua mesa de trabalho durante o almoço, talvez fosse necessário sair, conversar com outras pessoas e aproveitar uma pausa no expediente.

A conveniência pode ter um custo elevado, por isso é importante refletir sobre os possíveis impactos éticos e sociais que essas tecnologias emergentes podem trazer, especialmente em um aspecto tão humano e cultural como a alimentação, que está profundamente enraizado no nosso dia a dia.

Minha equipe na Universidade Estadual Politécnica da Califórnia está conduzindo o que acreditamos ser o primeiro estudo sobre os impactos que cozinhas com inteligência artificial e robôs cozinheiros podem ter em diferentes sociedades e culturas ao redor do mundo. Identificamos três grandes áreas de benefícios e riscos a serem analisadas.

CRIADORES E CONSUMIDORES

Cozinhas equipadas com IA trazem benefícios como permitir que chefs sejam mais criativos e eliminar tarefas repetitivas e tediosas, como descascar batatas. Essa tecnologia pode liberar tempo. Não precisar cozinhar significa poder passar mais tempo com a família ou focar em tarefas mais urgentes.

Para uma alimentação personalizada, a inteligência artificial pode atender a uma infinidade de dietas especiais, alergias e preferências sob demanda.

No entanto, também há riscos para o bem-estar. Cozinhar pode ser uma atividade terapêutica, proporcionando oportunidades para expressar gratidão, aprender, ser criativo, comunicar-se, explorar, expressar-se, crescer, tornar-se independente e ganhar confiança – tudo isso pode se perder se ninguém mais precisar cozinhar.

COMUNIDADE E CULTURAS

A inteligência artificial pode contribuir para a criatividade, criando apresentações elaboradas e novas receitas que respeitem o espírito de uma cultura. Assim como a IA e a robótica ajudam a produzir novos conhecimentos científicos, elas podem aprofundar nossa compreensão das propriedades dos ingredientes, suas interações e técnicas culinárias, incluindo novos métodos.

Mas há riscos para a cultura. Por exemplo, a inteligência artificial pode distorcer receitas e métodos tradicionais, já que tende a estereotipar – simplificando ou padronizando detalhes e distinções culturais.

Esse viés pode levar à redução da diversidade nos tipos de culinária produzidos por IA e cozinheiros robôs. Os desenvolvedores de tecnologia podem se tornar os guardiões da inovação culinária, se as limitações de suas máquinas levarem à homogeneização das cozinhas e da criatividade, como a estranha semelhança entre as imagens geradas por inteligência artificial em diferentes aplicativos.

Além disso, pense nos seus restaurantes e pratos favoritos. Como suas peculiaridades podem mudar com cozinhas automatizadas? Sua experiência gastronômica seria prejudicada se você soubesse que quem está cozinhando para você não é um amigos ou familiar, mas sim um robô?

A esperança com a tecnologia é que mais empregos sejam criados do que perdidos. Mesmo que haja um ganho líquido de empregos, os números escondem o impacto nas vidas das pessoas.

Muita gente na indústria de serviços alimentícios – uma das ocupações mais populares em qualquer economia – pode se ver incapaz de aprender novas habilidades para um trabalho diferente. Nem todos podem ser desenvolvedores de IA ou técnicos de robótica, e supervisionar um robô pode não ser um trabalho melhor do que cozinhar.

SEGURANÇA E RESPONSABILIDADE

Como os humanos são uma das principais fontes de contaminação e transmissão de doenças, cozinheiros robôs podem melhorar a segurança alimentar. Cortes precisos e outras automações podem reduzir o desperdício de alimentos, e receitas geradas por IA podem otimizar o uso dos ingredientes. Refeições personalizadas podem ser benéficas para a nutrição e a saúde.

Nem todos podem ser desenvolvedores de IA, e supervisionar um robô pode não ser um trabalho melhor do que cozinhar.

Mas a tecnologia ainda tem um longo caminho pela frente, então não está claro se esses benefícios serão plenamente alcançados. Doenças transmitidas por alimentos são uma incógnita.

Será que a IA e os robôs serão capazes de cheirar, saborear ou sentir o frescor de um ingrediente ou a falta dele e realizar outras verificações de segurança?

A segurança física também é uma questão. É essencial garantir que um chef robô não corte, queime ou machuque alguém acidentalmente devido a uma falha na visão computacional ou outro erro.

Chatbots de inteligência artificial já aconselharam pessoas a comer pedras, cola, gasolina e cogumelos venenosos, então não é exagero pensar que as receitas geradas por IA também podem conter falhas.

Dado o papel fundamental que a alimentação desempenha, as tecnologias alimentares ajudam a moldar a sociedade. A cozinha ocupa um lugar especial nos lares, bairros e culturas. Por isso, interromper essa respeitável instituição exige um planejamento cuidadoso para maximizar os benefícios e minimizar os riscos.

Este artigo foi publicado no “The Conversation” e reproduzido sob licença Creative Common. Leia o artigo original.

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