Um mergulho na arte dos trançados, a grande expressão cultural e antropológica dos povos do Mapuera, no Pará

É provável que você tenha em casa algum cesto ou outro tipo de artefato trançado com fibras vegetais. Ou pelo menos já os viu em restaurantes, vitrines de lojas ou feiras. Mas provavelmente você não prestou muita atenção neles, nem parou para pensar que o trançado de fibras vegetais para elaboração de artefatos é uma das tecnologias mais antigas e resilientes da humanidade.

É como se os trançados fossem invisíveis. Eu mesmo mal os percebia no meu dia a dia. Mas, após minha primeira experiência junto aos povos situados no Rio Mapuera (também conhecidos como Wai Wai), no noroeste do estado do Pará, em 2011, observei a importância dessas tecnologias perecíveis no cotidiano, convivendo ao lado de diversos bens industrializados.

Os trançados me encantaram por sua beleza e onipresença em diversas esferas das vidas dessas pessoas: nas atividades de caça, na lida com o roçado, no preparo de alimentos e bebidas, nas festas, no conforto do lar, na produção de outros artefatos e no culto religioso.

Cestos-cargueiros, abanos, peneiras, coadores, tipitis, trançados para preparar e servir alimentos, cestos para guardar itens pessoais, diferentes armadilhas, cestos elaborados rapidamente na mata para carregar frutos e caça, vestimentas para festas, portas e esteiras trançadas, maracás e outros utensílios povoam as aldeias. Atualmente, há inclusive a produção de artefatos tradicionais (bandejas e cestos) e novos (porta-smartphones), para a venda nas cidades, elaborados a partir de fibras habilidosamente trançadas com complexos padrões gráficos.

Depois de estudar os trançados para minha tese de doutorado, ganhadora do Prêmio Capes de Tese na área de Antropologia/Arqueologia e do Grande Prêmio Capes de Tese do colegiado de Humanidades, eu os vejo em vários lugares. Percebo agora que a invisibilização que os cerca também ecoa dentro da arqueologia e da etnoarqueologia, que investiram pouco em estudos sobre os trançados e demais tecnologias perecíveis.

Em função da natureza das fibras vegetais e do nosso clima tropical, é difícil encontrar testemunhos arqueológicos diretos de trançados. Mas não é impossível, há estudos sobre essas fontes. Algumas razões para a invisibilização intelectual dos trançados podem ser melhor compreendidas se considerarmos que, a depender da perspectiva teórica, é necessário encontrar objetos arqueológicos sobreviventes para provar cientificamente sua presença e antiguidade.

Pensar trançados como objetos significa pensá-los enquanto fato consumado, pronto e acabado. É privilegiar a forma “intacta” de um único momento produtivo que permaneceu até hoje. Tal visão é distinta do entendimento indígena de que trançados são corpos transformados a partir de outros corpos.

Pessoas vegetais transformadas em trançados

Se há uma dificuldade de encontrarmos testemunhos arqueológicos desses artefatos, a antiguidade deles está fora de questionamento para os povos do Mapuera. Em variações das histórias de um tempo muito antigo, esses povos surgiram depois que seu criador, Mawary, adquiriu diversos trançados e outros itens para conseguir uma esposa.

Os trançados estavam potencialmente debaixo d’água em forma corporal de diferentes seres aquáticos. Se tornaram de fato trançados após serem pescados pelo criador. Essas narrativas, além de mostrar que é impossível pensar esses povos sem a presença desses artefatos ancestrais, realça algo de suma importância: os trançados são corpos que emergem por ações técnicas.

Uma concepção que ressalta movimento e fluxos de transformação de sujeitos, e não de objetos. Nessa ótica, a ancestralidade dos trançados não está vinculada a testemunhos sobreviventes no registro arqueológico, mas advém de uma continuação, desde os tempos originários, de uma relação social e política - ou melhor, cosmopolítica - entre diferentes tipos de pessoas, que têm seus corpos transformados.

Trançados são vegetais metamorfoseados por habilidosas mãos humanas. A perspectiva de pensar vegetais de modo pragmático, como plantas úteis, enquanto recursos passivos para a produção de objetos, equivale a conceber viventes enquanto simples matéria-prima, tornando artificial aquilo que é orgânico.

Isso é radicalmente diferente do conhecimento indígena empírico de que os vegetais são pessoas, com corpos e personalidades específicas, que interagem nas relações com os humanos. Vegetais podem ter pés, joelhos, pernas, costelas, nariz e até verrugas.

Uma relação de respeito e ajuda mútua

Meus interlocutores me ensinaram que é preciso compreender quem são os vegetais antes de serem feitos em trançados. Ao ir nos lugares em que determinadas plantas habitam, aprendi sobre o que elas gostam, quem são seus pais, filhos, primos e donos. Aprendi quem pode ser cortada, o que é preciso fazer para cortá-las e como se relacionar com elas ao longo da manufatura e após a mudança de suas vidas enquanto seres trançados. Trançar é a desconstituição de corpos vegetais para a constituição de corpos trançados.

Os arumãs (Ischnosiphon spp.), que estão entre as mais de 20 variedades de vegetais usadas para compor os trançados, são bravos. Eles cortam as mãos das pessoas para as conquistarem. É o jeito deles, que não facilitarão sua manipulação caso sejam maltratados e insultados. Além disso, por terem donos que se manifestam como ventanias ou cobras para nos afugentar, essas pessoas vegetais impõem certas regras para interagirmos com elas.

Artesãos experientes relataram que as plantas permitem serem trançadas para ajudar os humanos e que, mesmo nessa nova fase de suas vidas, elas precisam ser bem tratadas para não se vingarem. Há até experiências de artesãos que conversaram em sonhos com alguns desses vegetais e seus aliados. E, para todas as etapas de relação, é preciso muito conhecimento técnico, dedicação e habilidade.

Em contrapartida, os humanos cuidam dos lugares em que os vegetais habitam, não cortam qualquer vegetal e muito menos os cortam e manipulam de qualquer forma. Cada ser envolvido nessa trama cosmopolítica é transformado e atua de modo a possibilitar a existência e perpetuação do outro. Bons artesãos também têm os seus corpos transformados, mas isso já é outra história. Aqui, interessa ressaltar que, nessa relação, humanos preservam os vegetais e os vegetais preservam os humanos. Há troca e reciprocidade para benefícios mútuos.

Comunhão e transformação contínua

Os vegetais feitos em trançados carregam em si parte de seu jeito e potências e, com seus novos corpos específicos, apresentam comportamentos próprios. Uma peneira, por exemplo, tem perna, rosto, pintura de rosto, brincos e outros elementos que a caracterizam corporalmente. Sua aptidão de peneirar - isto é, de cortar elementos sólidos postos sobre elas - afeta tudo aquilo que é posto sobre seu rosto. Assim, é preciso ter cuidado ao interagir com ela.

Para os povos do Mapuera, interessa viver bem junto a diversos seres, dentre eles os trançados. Isso ajuda a compreender a persistência dessa tecnologia na vida indígena, ao lado de celulares, televisores e outros itens corriqueiros em nossas vidas, que hoje estão presentes com muito mais frequência também entre os Wai Wai.

No estudo de artefatos atuais, junto aos mantidos em museus desde o início do século XX, verifiquei uma enorme diversidade de técnicas e de formas de trançados. Notei mudanças históricas, abandonos e inovações. Penso que a continuidade da vida com os trançados é uma legítima tecnologia para a manutenção das florestas. Assim como nós, trançados nascem, se desenvolvem, envelhecem e retornam para a terra num contínuo ciclo.

E isso é apenas uma pequena parte das tramas dessa tecnologia, cuja existência, quando vista em detalhes, nos conduz para múltiplos tempos, povos e regiões, levando-nos a perceber a beleza da vida em comunhão e contínua transformação de diferentes pessoas.

Fonte: The Conversation Brasil

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