A grande dama da botânica

Orientadora de estudantes mesmo antes de cursar biologia, Graziela Barroso descreveu 132 novas espécies de plantas.

Por @DaniloAlbergaria

Mesmo com os estudantes preferindo as flores mais vistosas e maiores, ela insistia: “Mesmo a menor flor tem características admiráveis. Ponha-a na lupa e verá como ela é maravilhosa”.

Sul-mato-grossense de Corumbá, também chamada de “a grande dama da botânica”, ela formou centenas de pesquisadores em programas de pós-graduação de universidades do Rio de Janeiro, no Recife, em Campinas e em Brasília. Como pesquisadora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), identificou 11 novos gêneros e 132 novas espécies de plantas, principalmente em famílias de sua especialidade, como Asteraceae, da qual fazem parte o girassol, a margarida e a alface, e Myrtaceae, à qual pertencem a goiaba, a pitanga e a jabuticaba.

“Ao longo de sua carreira, identificar uma planta foi um trabalho muito mais árduo do que hoje, pois era necessário fazer muita pesquisa bibliográfica em bibliotecas e herbários”, explica o botânico Marcelo da Costa Souza, coordenador do Jardim Botânico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Nos últimos anos, o acesso a acervos digitais do Brasil e de outros países torna esse trabalho incomparavelmente mais rápido.

Ela também publicou 65 artigos científicos e escreveu livros fundamentais para ensino e pesquisa de sistemática – ou classificação – de plantas. Uma de suas obras, Sistemática de angiospermas do Brasil (Livros Técnicos e Científicos/Edusp), publicada em três volumes entre 1978 e 1986, tornou-se referência internacional.

Mesmo com a aposentadoria compulsória, em 1982, ela não parou de pesquisar, ensinar e orientar estudantes. Aos 87 anos, em 1999, ela publicou outro livro, Frutos e sementes – Morfologia aplicada à sistemática de dicotiledôneas (Editora UFV), em coautoria com Marli Pires Morim e Carmen Lúcia Ichaso, do JBRJ, e Ariane Luna Peixoto, da UFRRJ. Os herbários para os quais identificou plantas ajudaram a mapear espécies ameaçadas de extinção e a preservar as áreas em que se encontravam.

Com os alunos

“Ela foi a maior formadora de recursos humanos da área no Brasil no século XX”, afirma Morim. Barroso era “dona Graziela” para muitos ou “tia Graziela” para os pupilos mais carinhosos. A expressão familiar mostra a natureza da formação mais do que técnica e científica que ela proporcionava aos estudantes.

Peixoto, que fez o doutorado sob sua orientação, conta que Barroso não separava a orientação da pesquisa e a orientação de vida para seus alunos. “Dona Graziela tinha uma visão holística da formação dos estudantes. Ela via a pesquisa como parte da vida, sem dissociar a dimensão profissional da familiar e pessoal.”

Souza lembra-se de que ela não o apresentava a colegas como “meu estudante” ou “meu orientando”. Era “meu filho”. Ela o orientou enquanto chegava aos 90 anos. “Mesmo com tanta experiência, era humilde e percebia que tinha de continuar estudando sempre”, ele diz.

Seu acolhimento aos estudantes podia resvalar no sentimento maternal, mas não deixava de ser exigente. Morim não se esquece do dia em que ela lhe disse: “Orientador não é babá”.

Barroso alimentava nos estudantes o comprometimento com o trabalho e os inspirava a pesquisar. “Você tem o fogo sagrado da pesquisa”, ela disse para o então iniciante Pirani, depois de assistir a um dos primeiros seminários do jovem botânico na pós-graduação da USP no começo da década de 1980. Pirani conta que Barroso transmitia aos alunos o carinho e o fascínio pelo material estudado.

A devoção à botânica, evidente nas salas de aula e nos herbários, transbordava nas viagens de campo. Peixoto estava com ela, em Goiás, quando finalmente encontraram uma espécie que procuravam, Deianira nervosa, uma erva com flores róseas. “Dona Graziela abaixou, olhou e fez um misto de poesia com oração em que descrevia com emoção as partes da planta, a luz do sol e o próprio céu, terminando numa espécie de agradecimento”, ela se recorda. Pirani reforça: “Ela falava e escrevia de maneira mais poética, com uma veia romântica, algo tolhido entre nós, cientistas, pela exigência de objetividade na descrição das plantas”.

Barroso só pôde se dedicar à botânica a partir dos 30 anos. Ela se casou aos 16 com o agrônomo Liberato Joaquim Barroso (1900-1949) e tiveram dois filhos: Mirtila, que se tornou artista plástica, e Manfredo, que foi piloto de avião.

Com os filhos na adolescência, ela decidiu estudar botânica, incentivada pelo marido, seu primeiro e maior professor na área, segundo ela própria. Liberato trabalhava no Jardim Botânico do Rio de Janeiro e lá ela virou estagiária. Alguns anos depois, em 1946, foi a primeira mulher a prestar concurso público para pesquisar na instituição. Ficou em segundo lugar.


Barroso continuou a estudar sistemática botânica no Jardim Botânico até que o marido morreu, quando ela tinha 37 anos. Mesmo sem instrução formal na área, ela orientava estudantes e estagiários da instituição. “Ela contava que sofria discriminação por ser mulher. Diziam que o lugar dela era em casa, não pesquisando”, comenta Souza.

Aos 47 anos, entrou na faculdade. Logo em seguida, em 1960, Manfredo morreu quando o DC-3 da Varig do qual era o comandante se acidentou numa decolagem malsucedida. Apesar de devastada pela perda do filho, ela se formou em biologia na antiga Universidade do Estado da Guanabara, atual Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Já reconhecida como pesquisadora e educadora, ela obteve o título de doutora aos 61 anos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 1973. Antes disso, havia orientado estudantes e montado o Departamento de Botânica da Universidade de Brasília (UnB).​

De 1966 a 1969, como professora da UnB, testemunhou perseguições do governo militar a professores. Em agosto de 1968, militares invadiram a universidade e prenderam alunos e funcionários. “Ela contava que pegou uma bandeira nacional e abraçou alguns estudantes com ela, tentando protegê-los durante a invasão. Depois, foi visitar os alunos na cadeia”, afirma Morim.

Barroso escreveu cartas de apelo pela liberação dos estudantes para o reitor da universidade e a Presidência da República. Também protestou contra a demissão sumária de professores. Mais tarde alertou para o desmatamento causado pela construção da Transamazônica. Vista pelo governo como comunista e adversária do regime, foi impedida de entrar no Jardim Botânico do Rio de Janeiro por três meses, em 1974, quando o então presidente Ernesto Geisel (1907-1996) ocupou um dos prédios como residência.

“Dona Graziela era apartidária, mas firme no exercício da cidadania”, esclarece Morim. O botânico britânico Simon Mayo, do Jardim Botânico Real de Kew, em Londres, ressaltou a fibra de Barroso em um depoimento gravado em 2012: “Ela tinha coragem de se impor, mesmo quando era muito difícil defender a ciência. Muito quieta e simpática, ela era aço por dentro”.

Depois da UnB, Barroso voltou ao JBRJ, trabalhou com sistemática, morfologia e taxonomia (classificação) de plantas, tornando-se uma das maiores estudiosas de espécies de plantas do país. Deu cursos em programas de pós-graduação da Unicamp, da Universidade Federal de Pernambuco, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entre outros. Era consultada por pesquisadores de todo o país para ajudar na identificação e catalogação de espécies.

Em sua homenagem, os colegas botânicos batizaram quatro gêneros e 83 espécies de plantas, como as árvores caiapiá-da-cana (Dorstenia grazielae), maria-preta (Diatenopteryx grazielae) e pata-de-vaca (Bauhinia grazielae) descritas por ex-alunos ou colegas de outros países. Em 1999, foi premiada com uma das maiores honrarias da área, a medalha Millennium Botany Award, oferecida pelo Congresso Internacional de Botânica, nos Estados Unidos.


Já perto dos 90 anos, ainda ia uma ou duas vezes por semana ao Jardim Botânico. Sua visão começou a falhar. “Eu a ajudava a ver as plantas no microscópio e descrevia o que estava observando”, conta Souza, o último botânico que ela orientou. “Marcelo se tornou os olhos da dona Graziela e foi muito importante nesse último momento dela”, avalia o ecólogo Luis Fernando Tavares de Menezes, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que foi quem a apresentou a Souza. “Ela ficava muito angustiada por não conseguir enxergar os detalhes das plantas.”

Barroso morreu aos 91 anos, depois de ser eleita na Academia Brasileira de Ciências (não chegou a tomar posse). Pouco antes, ela foi hospitalizada com problemas pulmonares. Peixoto a visitou e saiu do hospital com um recado para Souza: “Dona Graziela falou para não esquecer de identificar o material que está debaixo da bancada”.


Fonte: Jornal da USP 

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