Livro analisa biodiversidade de plantas brasileiras e seu papel na dieta

Organizada por professores da UFRN e da UFPE, obra traz a composição de plantas comestíveis dos biomas nacionais e sua importância para uma alimentação saudável e sustentável.


Brasil é um país megadiverso conhecido por sua biodiversidade e cultura, no entanto, ainda é surpreendente o pouco conhecimento que se tem sobre a biodiversidade nacional a respeito de plantas locais alimentícias como taioba, cumaru, pequi, bacuri, pitomba, jenipapo, entre tantas outras. 

O livro Local Food Plants of Brazil (‘Plantas alimentícias locais do Brasil’, em tradução livre) busca justamente ajudar a cobrir essa lacuna de informações, trazendo novos dados sobre a composição nutricional dessas plantas, práticas culinárias e a relação entre humanos e plantas locais comestíveis, além de mostrar seu papel na diversificação da dieta do brasileiro.

Publicado pela editora Springer, o livro foi organizado pelos professores Michelle Jacob, do departamento de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Ulysses Paulino de Albuquerque, do departamento de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). São 21 capítulos apresentando o trabalho de pesquisadores do Brasil e estrangeiros sobre a biodiversidade das plantas locais brasileiras e seu papel em dietas sustentáveis e saudáveis. A proposta é oferecer mais informações sobre a composição nutricional das chamadas PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais) e informar como é possível inseri-las como diversificação na dieta dos brasileiros, inclusive nas escolas.

Este capítulo tratará da memória cultural da culinária sob a perspectiva da etnobiologia histórica, alguns aspectos envolvidos no consumo alimentar serão apontados como parte da construção cultural particular das regiões do território brasileiro.

A construção da cozinha criativa estará focada ao longo da história.

Em seguida, o capítulo se concentrará em algumas espécies alimentares de plantas apresentadas descritas em registros anteriores da flora brasileira. As ideias serão apresentadas de forma a desenvolver uma discussão em que as plantas alimentícias brasileiras relatadas em documentos anteriores nos apontem sua permanência ao longo da história.

Para tanto, serão apresentadas imersões em algumas das histórias do processo de coleta de alimentos na natureza. Assim, este capítulo levará o leitor à memória preservada em documentos históricos produzidos ao longo do processo brasileiro de ocupação do seu território. Por fim, serão comentados exemplos de informações históricas como forma de apoiar a segurança alimentar para o futuro da humanidade a partir de um conjunto de espécies alimentares que transcende séculos.

1 Memória Cultural da Culinária no Brasil O princípio do processo de cultivo de espécies de plantas pode envolver vários mitos e lendas em diferentes culturas humanas. Temos a comunidade com suas tradições mitológicas em torno das origens das culturas indígenas e locais, e, ao mesmo tempo, lidamos com a prática do intercâmbio biológico por meio da circulação de espécies botânicas resultantes de viagens intercontinentais realizadas por inúmeros personagens históricos do ser humano. civilização. Se considerarmos apenas dois marcos históricos, poderíamos afirmar que, desde o século XIII, encontramos relatos de Marco Polo sobre suas viagens e descrições de uma ilha onde havia pimenta, noz-moscada, além de outras especiarias que ainda podem ser encontradas em. os dias atuais em todo o mundo (Pereira 1922; Balick e Cox1996), e quando analisamos as viagens de descoberta das Américas, também podemos situar ao longo do tempo alguns fatos que marcaram a forma como a humanidade foi identificando a questão de como se alimentar, quais seriam as fontes de proteínas, vitaminas e minerais. No entanto, certamente muitas trocas entre diferentes etnias já haviam ocorrido em períodos anteriores à existência e ação de Marco Polo. Especificamente, falando sobre o território brasileiro, engloba múltiplas experiências comunitárias tecidas ao longo dos séculos de convivência entre seus povos originários e outros habitantes de diferentes regiões de origem. Cada uma de suas cinco regiões (Sul, Sudeste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste) contribui de forma específica na alimentação dos brasileiros. A partir de uma pesquisa minuciosa e detalhada das tradições locais relacionadas à alimentação e da busca por receitas de família, podemos perceber como a culinária brasileira é variada e rica em sabores. Com ingredientes trazidos de outras partes do mundo e com os próprios de cada região brasileira, uma história da culinária local e, em um contexto mais amplo, uma identidade alimentar nacional foi forjada. É uma história que foi tecida com a recombinação de ingredientes da Europa, de onde vieram os ovos, o leite e a farinha de trigo ( Triticum aestivum L.), junto com o que o Brasil ofereceu de espécies alimentares como o milho ( Zea mays L.), açúcar de campos de cana-de-açúcar ( Saccharum officinarum L.), farinha de mandioca ( Manihot esculenta Crantz) e inúmeras frutas consideradas exóticas. 

Assim, nesta gastronomia nacional, os pratos eram comumente compostos por uma mistura da criatividade de pessoas dedicadas ao preparo de alimentos que elaboravam o arranjo de preparações a partir de ingredientes não só da Europa e territórios com os quais mantinham relações comerciais, como Oriente Médio e Extremo Oriente, assim como com os de origem indígena, mas também compôs as adaptações culinárias aqueles ingredientes típicos dos hábitos alimentares dos povos africanos. O tempo do descobrimento do Brasil e os séculos seguintes compreenderam também o período das trocas alimentares que iam e vinham pelas rotas das grandes navegações (Medeiros 2018) Assim, o caju do Brasil foi para Goa, assim como para a África a mandioca, o milho e o amendoim ( Arachis hypogaea L.). Da África para o Brasil vieram, por exemplo, quiabo ( Hibiscus esculentus L.), inhame ( Dioscorea alata L.), erva-doce ( Pimpinella anisum L.), gengibre amarelo ( Zingiber officinale Roscoe) e melancias ( Citrullus lanatus (Thumb.) Mansf.) (Costa1983; padeiro1968; Balick e Cox1996)


De uma forma ou de outra, ocorreu que a cultura alimentar africana imprimiu traços peculiares que estão presentes hoje. Em regiões como Salvador e em toda a região do Recôncavo Baiano (região baiana localizada no Nordeste do Brasil), essa influência foi afirmada na apreciação da degustação de três ingredientes considerados básicos para esta culinária de forte influência africana. Esses ingredientes são leite de coco ( Cocos nucifera L.), óleo de palma ( Elaeis guineensis Jacq.) E pimenta ( Capsicum spp., Piper spp. E Pimenta spp.). 

Na obra Etiópia Oriental (Leste da Etiópia), publicado em 1609, na cidade de Évora (Portugal), Frei João dos Santos descreveu o processo de obtenção do leite de coco dizendo que era extraído do coco fresco, ralado e bem lavado em duas ou três águas, e espremido entre as mãos (santos 1999[1609]). 

Desse modo, o coco ficava seco e a água em que era lavado era espessa como leite de vaca. Vejamos com mais detalhes algumas das regiões que compõem o território brasileiro em relação às suas tradições históricas sobre os modos de alimentação das populações locais. Vestígios da memória alimentar do Nordeste podem ser encontrados em obras que Gilberto Freyre (1933) nos deixou. A forma de alimentação foi registada por esta socióloga, o que nos leva a compreender que no passado e ainda nos dias de hoje a gastronomia desta região conjuga extremos no seu cardápio. Então, isso significa que os ingredientes mais regionais ao lado dos internacionais são servidos como elementos da dieta nordestina tanto nos alimentos mais rústicos quanto nos refinados.

Em reportagem sobre José dos Santos Torres sobre o cardápio de seu hotel em Pernambuco (Nordeste do Brasil), Freyre destaca que neste espaço foram servidas diversas iguarias brasileiras e europeias. O folclorista Luís da Camara Cascudo (1983) percorria o interior dessa região e observava o cardápio servido em cada momento do dia, assim como fazia o médico Antônio da Silva Mello (1946, 1964) que viajou pelo interior de Pernambuco na década de 1940 para suas pesquisas sobre nutrição.

A breve estada dos franceses no Maranhão (nordeste do Brasil) durante o século XVII pôde ser registrada em detalhes pelo padre capuchinho Claude D'Abbeville, em sua obra História da Missão dos padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas . Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas), de 1614 (D'Abbeville1874[1614]). O Padre D'Abbeville passou apenas 4 meses no Brasil e nos deixou o relato da degustação que teve inúmeras frutas e raízes da região. No Maranhão, frutas como bacuri ( Platonia insignis Mart.), Jacama ( Annona muricata L.), cupuaçu ( Theobroma grandiflorum (Willd. Ex Spreng.) K. Schum.) E jenipapo ( Genipa americana L.) aparecem como sobremesa frutas nos menus. 

Seja in natura, ou em forma de gelados, rebuçados, rebuçados em calda ou compotas, até hoje estes achados culinários de D'Abbeville são de gosto popular, demonstrando assim que certos “achados” são “eternos”. No norte do Brasil, a influência indígena foi preponderante. 
Nessa região existe um passado vivo, que se atualiza na execução de pratos como o pato no tucupi (pato feito em tucupi , caldo feito da fermentação da raiz da mandioca), os vinhos de açaí ( Euterpe oleracea Mart.) E o tacacá ( tacacá, mistura de goma de mandioca e caldo de tucupi com temperos, ervas aromáticas e camarão seco). A base culinária do Pará (estado desta região) foi criada por indígenas em tempos remotos. Além disso, produtos alimentícios da mandioca, como pirões (mingau de peixe) e beijus (farinha de mandioca), açaí ,piquiá ( Caryocar brasiliense Cambess.), pupunha ( Bactris gasipaes Kunth) e buriti ( Mauritia flexuosa Mart.) fazem parte do cardápio tradicional da região. Na Amazônia, outro estado da mesma região, são consumidas dezenas de frutas nativas, e o guaraná ( Paullinia cupana Kunth) é destaque como uma bebida que prolonga a vida.

Especificamente, falando sobre o território brasileiro, engloba múltiplas experiências comunitárias tecidas ao longo dos séculos de convivência entre seus povos originários e outros habitantes de diferentes regiões de origem. 
Cada uma de suas cinco regiões (Sul, Sudeste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste) contribui de forma específica na alimentação dos brasileiros. A partir de uma pesquisa minuciosa e detalhada das tradições locais relacionadas à alimentação e da busca por receitas de família, podemos perceber como a culinária brasileira é variada e rica em sabores.
Com ingredientes trazidos de outras partes do mundo e com os próprios de cada região brasileira, uma história da culinária local e, em um contexto mais amplo, uma identidade alimentar nacional foi forjada. É uma história que foi tecida com a recombinação de ingredientes da Europa, de onde vieram os ovos, o leite e a farinha de trigo ( Triticum aestivum L.), junto com o que o Brasil ofereceu de espécies alimentares como o milho ( Zea mays L.), açúcar de campos de cana-de-açúcar ( Saccharum officinarum L.), farinha de mandioca ( Manihot esculenta Crantz) e inúmeras frutas consideradas exóticas. 
Assim, nesta gastronomia nacional, os pratos eram comumente compostos por uma mistura da criatividade de pessoas dedicadas ao preparo de alimentos que elaboravam o arranjo de preparações a partir de ingredientes não só da Europa e territórios com os quais mantinham relações comerciais, como Oriente Médio e Extremo Oriente, assim como com os de origem indígena, mas também compôs as adaptações culinárias aqueles ingredientes típicos dos hábitos alimentares dos povos africanos.
O tempo do descobrimento do Brasil e os séculos seguintes compreenderam também o período das trocas alimentares que iam e vinham pelas rotas das grandes navegações (Medeiros 2018) Assim, o caju do Brasil foi para Goa, assim como para a África a mandioca, o milho e o amendoim ( Arachis hypogaea L.). Da África para o Brasil vieram, por exemplo, quiabo ( Hibiscus esculentus L.), inhame ( Dioscorea alata L.), erva-doce ( Pimpinella anisum L.), gengibre amarelo ( Zingiber officinale Roscoe) e melancias ( Citrullus lanatus (Thumb.) Mansf.) (Costa1983; padeiro1968; Balick e Cox1996)
De uma forma ou de outra, ocorreu que a cultura alimentar africana imprimiu traços peculiares que estão presentes hoje. Em regiões como Salvador e em toda a região do Recôncavo Baiano (região baiana localizada no Nordeste do Brasil), essa influência foi afirmada na apreciação da degustação de três ingredientes considerados básicos para esta culinária de forte influência africana. Esses ingredientes são leite de coco ( Cocos nucifera L.), óleo de palma ( Elaeis guineensis Jacq.) E pimenta ( Capsicum spp., Piper spp. E Pimenta spp.). Na obra Etiópia Oriental (Leste da Etiópia), publicado em 1609, na cidade de Évora (Portugal), Frei João dos Santos descreveu o processo de obtenção do leite de coco dizendo que era extraído do coco fresco, ralado e bem lavado em duas ou três águas, e espremido entre as mãos (santos 1999[1609]). Desse modo, o coco ficava seco e a água em que era lavado era espessa como leite de vaca.
Vestígios da memória alimentar do Nordeste podem ser encontrados em obras que Gilberto Freyre (1933) nos deixou. A forma de alimentação foi registada por esta socióloga, o que nos leva a compreender que no passado e ainda nos dias de hoje a gastronomia desta região conjuga extremos no seu cardápio. Então, isso significa que os ingredientes mais regionais ao lado dos internacionais são servidos como elementos da dieta nordestina tanto nos alimentos mais rústicos quanto nos refinados.
Em reportagem sobre José dos Santos Torres sobre o cardápio de seu hotel em Pernambuco (Nordeste do Brasil), Freyre destaca que neste espaço foram servidas diversas iguarias brasileiras e europeias. O folclorista Luís da Camara Cascudo (1983) percorria o interior dessa região e observava o cardápio servido em cada momento do dia, assim como fazia o médico Antônio da Silva Mello (1946, 1964) que viajou pelo interior de Pernambuco na década de 1940 para suas pesquisas sobre nutrição.
A breve estada dos franceses no Maranhão (nordeste do Brasil) durante o século XVII pôde ser registrada em detalhes pelo padre capuchinho Claude D'Abbeville, em sua obra História da Missão dos padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas . Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas), de 1614 (D'Abbeville1874[1614]). O Padre D'Abbeville passou apenas 4 meses no Brasil e nos deixou o relato da degustação que teve inúmeras frutas e raízes da região. No Maranhão, frutas como bacuri ( Platonia insignis Mart.), Jacama ( Annona muricata L.), cupuaçu ( Theobroma grandiflorum (Willd. Ex Spreng.) K. Schum.) E jenipapo ( Genipa americana L.) aparecem como sobremesa frutas nos menus. Seja in natura, ou em forma de gelados, rebuçados, rebuçados em calda ou compotas, até hoje estes achados culinários de D'Abbeville são de gosto popular, demonstrando assim que certos “achados” são “eternos”.
No norte do Brasil, a influência indígena foi preponderante. Nessa região existe um passado vivo, que se atualiza na execução de pratos como o pato no tucupi (pato feito em tucupi , caldo feito da fermentação da raiz da mandioca), os vinhos de açaí ( Euterpe oleracea Mart.)
E o tacacá ( tacacá, mistura de goma de mandioca e caldo de tucupi com temperos, ervas aromáticas e camarão seco). A base culinária do Pará (estado desta região) foi criada por indígenas em tempos remotos. Além disso, produtos alimentícios da mandioca, como pirões (mingau de peixe) e beijus (farinha de mandioca), açaí ,piquiá ( Caryocar brasiliense Cambess.), pupunha ( Bactris gasipaes Kunth) e buriti ( Mauritia flexuosa Mart.) fazem parte do cardápio tradicional da região. Na Amazônia, outro estado da mesma região, são consumidas dezenas de frutas nativas, e o guaraná ( Paullinia cupana Kunth) é destaque como uma bebida que prolonga a vida.
Em relação ao sudeste brasileiro, são inúmeras as anotações nos cardápios do século XIX, época em que os naturalistas August saint-Hilaire e Johann Pohl estiveram no Brasil. Estando no estado de Minas Gerais, esses naturalistas deixaram experiências registradas sobre comportamentos e hábitos domésticos das famílias dessa região. Era uma prática comum ter um menu separado para homens, mulheres e crianças. Os costumes de comer feijão preto ( Phaseolus vulgaris L.) com farinha de milho no almoço e vegetais cozidos no jantar, comumente couve ( Brassica oleracea var. Viridis L.), chicória ( Cichorium endivia L.), quiabo ou almeirão ( Cichorium intybusL. var. intybus ) são descritos (Saint-Hilaire1974[1822]). Existem algumas especialidades que permanecem quase secretas. Estes são armazenados no âmbito do regional, como é o caso do buriti doce ou xarope grosso de araçá ( Psidium guineense Sw.) E piquiá , e no Espírito Santo (também estado do Sudeste), o uso de urucum ( Bixa orellana L. ) sementes no preparo da moqueca capixaba (prato feito com molho de tomate, urucum, peixes e temperos).
De referir que muitas das famílias de origem portuguesa emprestaram os seus próprios nomes, tanto de família como de engenho, para baptizar uma receita especial como forma de homenagear este povo.
Com uma extraordinária riqueza florística que inspirou e deu lugar à criatividade culinária local dos mais variados ambientes, muitas receitas certamente se perderam ao longo da história. A condição social que as mucamas (negras servas das brancas) e sinhás(mulheres brancas) presumiam ser analfabetas, e suas receitas tinham como principal forma de conservação a memória imaterial e a transmissão de seus saberes culinários pelo exercício da oralidade. Acreditamos que essa questão constitui uma das dificuldades de se trabalhar com a temática de plantas alimentícias de uso ancestral, pois a pesquisa de receitas antigas fica comprometida na medida em que muitas delas não foram escritas. Por ser uma atividade geralmente ligada ao feminino, o ato de cozinhar era condicionado às mulheres, tanto das mais humildes como das mais nobres, como as baronesas e viscondessas do Império, muitas vezes analfabetas.
Alimentos criados ao longo de séculos de criatividade diante de inúmeros ingredientes ganharam o gosto da população brasileira, superando tabus e preconceitos. Querer agradar o paladar foi um esforço criativo de gerações de cozinheiros que transcenderam séculos de dedicação à arte da dietética. Na verdade, comentamos apenas as atuações das mulheres, mas os homens também integraram essa ação no preparo dos alimentos. Como Freyre (1933) apresentam-nos, entre as escravas do serviço doméstico das casas-grandes (as grandes casas onde viviam os senhores e as suas famílias), aquelas que se dedicavam à cozinha estavam nesta extrema especialização culinária. Geralmente, dois ou três indivíduos eram escolhidos para os serviços de cozinha. Ao lado das mulheres, negros considerados incapazes de serviço bruto também poderiam ser reservados para este serviço. É interessante a nota de Freyre sobre anúncios de jornal da época da escravidão no Brasil que deram visibilidade à fuga desses negros que trabalhavam na cozinha. Essas notas especificavam que, no ato da fuga, esses negros estavam sujos porque eram cozinheiros.
Assim, se pudéssemos traçar um panorama mais geral, desconsiderando as infinitas especificidades de cada recanto do território brasileiro e o que foi capaz de mesclar e criar a experiência de cada comunidade em seu próprio espaço de convivência, esse seria o cenário mais comum deste espaço tão usada e tão central na vida passada do período colonial e imperial do Brasil, ou seja, a cozinha. Sinhás e negros que se dedicam ao preparo e criação de pratos, doces e conservas com frutas e raízes da terra, tão incríveis em seu novo sabor, vêm ganhando o paladar e permanecem presentes até os dias de hoje na culinária nacional. .


2 espécies alimentares da flora brasileira registradas em documentos anteriores

As plantas comestíveis e seu cultivo, além de seus múltiplos usos, podem ser apontados como tendo sido uma das primeiras medidas pensadas por quem veio ao território brasileiro com a missão de povoá-lo a partir da conquista empreendida pelos lusitanos. Desde a fundação do Brasil Colonial, os colonos recém-chegados ao novo território se encarregam de garantir itens para suas necessidades mais urgentes de sobrevivência. Nesse sentido, as ações caminharam para o início da agricultura e, mais adiante na história, para o desenvolvimento de algumas indústrias lucrativas. Assim, neste processo, o cultivo de cereais e hortaliças foi o primeiro a ser implementado. Com isso, as espécies frutíferas e gramíneas para forragem de animais ganharam espaço na força produtiva. Por outro lado,
Em 1551, há o registro feito pelo Padre Manuel da Nóbrega de Pernambuco (Nordeste do Brasil) de que existia o cultivo de várias plantas trazidas da metrópole. Cidras ( Melissa officinalis L.), vinhas ( Vitis vinifera L.), laranjeiras ( Citrus x sinensis (L.) Osbeck), limoeiros ( Citrus x aurantiifolia (Christm.) Swingle) e figos ( Ficus carica L.) foram mencionados. O Padre Nóbrega teve o cuidado de mencionar que essas cultivares eram tão boas quanto as da Europa e que eram muito produtivas (Nóbrega1955 [1551]).
Outro registro que nos fala dessa dinâmica das cultivares de alimentos na história de ocupação do território brasileiro é o deixado por Gândavo, datado de 1576. Neste documento ele se refere a banana ( Musa paradisiaca L.) da Ilha de São Tomé, ananas ( Ananas comosus (L.) Merr. Var. Comosus ), melões ( Cucumis melo L.), pepinos ( Cucumis sativus L.) , romãs ( Punica granatum L.) e figos de muitas variedades, bem como sidras, limões e laranjas.
No Colégio Jesuíta localizado na cidade de Olinda, na ex-Capitania de Pernambuco, localizada na região Nordeste do Brasil, havia o cultivo de diversas espécies alimentares, segundo menção feita pelo Padre Fernão Cardim (1925[1584]). Em visita ao Colégio de Olinda em 1584, o padre Fernão pôde constatar que no quintal dos jesuítas havia vinhas, figueiras, laranjeiras, melões, pepinos e romãs. No ano seguinte, em 1585, o Padre José de Anchieta (1933 [1585]) ao escrever sobre este mesmo colégio de padres jesuítas ainda faz referência aos muitos coqueiros que existiam naquele local.
Em 1587, na obra Tratado Descritivo do Brasil , Gabriel Soares de Sousa também destaca as plantas alimentícias que encontrou no Brasil. No seu registo fala do cultivo de várias espécies, sendo estas lima ( Citrus limettioides Tanaka), limão francês ( Citrus x limonia (L.) Osbeck) e limão galego, arroz ( Oryza sativa L.) e inhame do Cabo Verde e São Tomé, e outros como melancia, abóbora ( Cucurbita moschata Duchesne), mostarda ( Brassica spp.), Nabo ( Brassica rapa L.), repolho, alface ( Lactuca sativa L.), coentro ( Coriandrum sativumL.), endro ( Anethum graveolens L.), salsa ( Petroselinum spp.), Hortelã ( Mentha spp.), Cebolinha ( Allium schoenoprasum L.), berinjela ( Solanum melongena L.), alfavaca ( Ocimum spp.), Bredo ( Amaranthus spp.), Chicória, cenoura ( Daucus carota L.), espinafre ( Tetragonia tetragonioides (Pall.) Kuntze) e manjericão ( Ocimum spp.) (Sousa1971 [1587]).
Retomando a cultura do coqueiro, percebe-se que ela ganhou um desenvolvimento expressivo pela sua variedade de usos, e sua disseminação pelo território brasileiro já era extensa em 1618, conforme descrito nos Diálogos da Grandeza do Brasil, ( Diálogos da Grandeza do Brasil. Brasil) de Brandão (2010[1618]). Antes da invasão holandesa no nordeste do Brasil, em História da Guerra de Pernambuco ( História da Guerra de Pernambuco ), Santiago (1984[1634]) descreve uma paisagem repleta de coqueiros e diz que não houve nenhuma residência em que houvesse pelo menos alguns indivíduos desta espécie na cidade de Olinda, na antiga Capitania de Pernambuco. Ele acrescenta ainda que a presença de coqueiros nos quintais das casas da cidade de Olinda deu um toque especial àquela paisagem.

Também é cultivado desde o século XVI no Brasil o gengibre, que era trazido da Ilha de São Tomé. Sua produção ganhou espaço em território brasileiro, o que contribuiu para sua exportação em 1575. Assim, como esse gengibre produzido no Brasil era considerado de melhor qualidade que o da Índia, ganhou a preferência de seus consumidores. Por isso, sua cultura foi proibida para que o comércio com o Oriente não fosse prejudicado (Costa1983) Somente em 24 de abril de 1642, essa proibição foi revogada e uma nova disposição foi promulgada, permitindo ao povo brasileiro o cultivo do gengibre. Essa permissão era válida para o cultivo da espécie em terras consideradas impróprias para o cultivo da cana-de-açúcar. Além disso, havia sido estipulado que sua exportação seria disponibilizada, mediante o pagamento dos direitos competentes. 

Outra disposição emitida em 10 de abril de 1671 mudou esse cenário. Pelo menos na Capitania de Pernambuco, o cultivo do gengibre era recomendado, e sua exportação permitida sem cobrança de impostos.
Anos depois, em 30 de março de 1678, uma carta régia dirigida ao governador de Pernambuco comunicava que este ordenara ao vice-rei da Índia que entregasse árvores frutíferas a esta capitania e ao reino, pela utilidade que pudesse favorecer este estado, quanto ao todo o Reino de Portugal. Posteriormente, já em 20 de maio de 1862, houve nova comunicação do rei dirigida ao vice-rei com ordens semelhantes, e este também ordenou que quando chegassem à capitania de Pernambuco navios com carga de plantas úteis, o governador deveria procurar para essas plantas e plante-as de acordo com as instruções da Índia.
Chegando aos anos de 1800, em 7 de julho de 1810, era recomendada a cultura da pimenta da Índia, bem como de outras plantas exóticas ou indígenas, como eram chamadas as espécies nativas do Brasil (Costa 1983) Isso significava que as plantas nativas agora eram consideradas para o plantio. A intenção era que espécies não cultivadas, nativas do Brasil, pudessem constituir novos materiais adequados para o consumo, além de se tornarem itens de exportação e movimentarem o comércio devido às suas diversas aplicações. Aos cultivadores foi garantida a isenção de taxas alfandegárias por um período de 10 anos, prêmios, medalhas honorárias e, ainda, isenção de serviço e recrutamento no setor militar. Essas medidas foram reiteradas no ano seguinte de 1811 por novas disposições que foram editadas no mesmo sentido que as disposições de 1810.
Essas medidas tomadas apontam com muita clareza como houve um movimento de estímulo e proteção ao cultivo de novas espécies promissoras e, assim, como as mencionadas recentemente, há muitas outras medidas que foram editadas com o mesmo objetivo. Esses documentos fornecem informações sobre a transformação da paisagem dos domínios fitogeográficos existentes no Brasil, embora se refiram mais maciçamente ao movimento econômico determinado pela Metrópole para sua Colônia. As economias centrais giravam em torno de espécies ainda não mencionadas, como café ( Coffea arabica L.), algodão ( Gossypium spp.) E cana-de-açúcar (Dean1996) Embora houvesse essa centralidade em cultivares de interesse econômico, muitas outras cultivares consideradas periféricas também existiam. Essas economias periféricas eram administradas por populações que se encontravam na periferia do sistema colonial. Eram campos de cultivo de subsistência que se configuravam como relevantes para a sobrevivência de mestiços, ribeirinhos, quilombolas (escravos negros que formavam enclaves comunitários reacionários ao sistema escravista), caiçaras (comunidades compostas por indígenas, colonizadores portugueses e escravos africanos que se sustentavam da agricultura, da pesca artesanal e do extrativismo vegetal) e de muitas outras formações comunitárias brasileiras.

As espécies nativas manejadas por essas populações serviam para as mais diversas utilidades, como remédios ou como fonte de alimentação. Tomando como exemplo as matas secundárias na paisagem da Mata Atlântica, podemos encontrar hoje espécies exóticas introduzidas e espécies nativas manejadas (Oliveira e Silva2011) São vestígios da memória da cultura local do passado. Dentre essas espécies, podemos citar o macaco ( Artocarpus heterophyllus Lam.), Cuja cultura remonta à antiguidade, o que pode ser inferido pela denominação de engenhos e aldeias conhecidas por este termo há muitos anos. Outra espécie que podemos ilustrar aqui nesta incorporação na composição florística de uma floresta secundária seria o café.
Dentre as espécies nativas que eram manejadas e que hoje podem ser encontradas em matas secundárias da Mata Atlântica, estas compõem um conjunto diversificado de pioneiras, secundárias iniciais e tardias de sucessão ecológica presentes em áreas equivalentes a bosques abandonados (Oliveira e Silva 2011) 

Assim, o uso de espécies alimentares por populações passadas passou por uma cultura dentro de áreas florestais. Não é comum encontrar registros em diferentes suportes a esse respeito, mas o trabalho com a história oral pode fornecer mais informações sobre essas práticas de gestão anteriores. O que podemos perceber pela presença de espécies como as citadas é que há uma valorização do ambiente florestal em períodos passados, incluindo o plantio intencional de espécies vegetais eleitas como importantes para a experiência de uma comunidade milenar. A paisagem ganha contornos a partir da ação humana realizada no passado e que, também, se expande no tempo e continua a interferir nos padrões ecológicos e alimentares da atualidade. Assim, na constituição de uma lista de espécies aptas para a ingestão.


3 breves palavras de conclusão

Na história da utilização dos recursos vegetais alimentares, a documentação histórica nos revela com maior intensidade dados relativos ao centro dominante da economia colonial brasileira. As relações da população humana presente no território brasileiro que se encontrava na periferia, na periferia da economia central, deixaram poucos relatos documentados. 
A historiografia da paisagem dos domínios fitogeográficos brasileiros merece uma investigação mais aprofundada em cada uma de sua representatividade. O que encontramos até agora é uma narrativa que destaca o preconceito de atores e culturas de espécies que desempenharam um papel central na economia.
No entanto, podemos apontar como espécies-chave para o futuro da segurança alimentar humana a aceitação de plantas alimentícias que transcendem séculos por meio da memória alimentar coletiva.
Além dessa necessidade primordial, deixamos a indicação de que o comportamento é o que poderia se configurar como a chave para uma relação equilibrada com a flora (e a natureza em sua totalidade) de modo a considerá-la não apenas como fonte de consumo, mas sim. uma parte fundamental da constituição experiencial da humanidade.

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