COMER DEVE SER TRATADO COMO UM ATO POLÍTICO!

A cultura alimentar pode nos ajudar a entender politicamente a maneira de abordar a alimentação como algo que considerando as relações de poder, justiça social, sustentabilidade e as dinâmicas culturais e econômicas associadas ao sistema alimentar. 

A culinária é uma manifestação da identidade de povos e comunidades. Ela carrega saberes ancestrais, práticas agrícolas e modos de preparo que resistem às pressões da globalização e da homogeneização cultural. 

Ensiná-la e praticá-la é um ato político de resistência e valorização da diversidade cultural.

Dever de abordar temas relacionados à alimentação popular e dos povos tradicionais, pois reflete e reforça questões de identidade, resistência, território e direitos.

Cultura e Transformação Social em Gramsci

Antonio Gramsci, teórico marxista italiano, é conhecido por sua análise do papel da cultura e da hegemonia cultural como ferramentas centrais na transformação da sociedade. Em sua visão, a cultura não é apenas um reflexo das estruturas econômicas, mas um campo de disputa e construção de poder.

Gramsci nasceu em 22 de janeiro de 1891, em Ales, uma pequena cidade na ilha da Sardenha, Itália, foi um líder do Partido Comunista Italiano que, preso pelo regime fascista durante a maior parte de sua vida adulta, usou seu tempo na prisão para refletir sobre a situação política e social de seu país, a influência que o partido fascista tinha sobre o povo e o papel da cultura nessas dinâmicas.

Ele cresceu em uma sociedade camponesa, falava o dialeto local de Ghilarza e provavelmente não ouviu o italiano propriamente dito até chegar ao ensino fundamental; e então, em Turim, por meio de seus professores universitários. Como um garoto pobre e isolado, encontrar o italiano oficial provavelmente foi tanto uma fonte de libertação quanto uma lição de oficialismo, o teor de uma autoridade de classe dominante que ele estava disposto a destruir.

Então, parte da luta de Gramsci era inventar não apenas um tipo diferente de marxismo, mas também um tipo diferente de linguagem, um registro político diferente que não falasse nem dialeto bruto nem italiano elitista. Em certo sentido, amalgamar os dois interessou ao linguista nele, misturando a linguagem do campo com a da cidade, reconciliando os poderes expressivos do vernáculo com a sobriedade da razão, convertendo um senso comum em bom senso; um marxismo nem idealismo excêntrico nem materialismo de lei de ferro, mas algo diferente — uma filosofia concreta, autêntica, de práxis sensível ao lugar, cultura e tradição. Há muito mais ali em seu marxismo.

“Frequentemente”, diz Gramsci, “grupos subalternos são originalmente de uma raça diferente (religião diferente e cultura diferente) dos grupos dominantes, e eles são frequentemente uma mistura de raças… 

A questão da importância das mulheres é similar à questão dos grupos subalternos… 'masculinismo' pode ser comparado à dominação de classe.” Classes subalternas, ele diz, são retratadas “como não tendo história,” “pessoas cuja história não deixa rastros nos documentos históricos do passado.”

Os subalternos têm que se prezar livres da sujeição que as forças dominantes impõem a eles. Eles também têm que se prezar livres de sua própria passividade. Isso é difícil, Gramsci admite, porque “somos todos conformistas de algum conformismo de outro, sempre homem-na-massa ou homem coletivo”; todos nós pertencemos a um grupo social particular que transmite, para o bem ou para o mal, seu próprio modo uniforme de pensar e agir. Nesse grau, é preciso ser duro consigo mesmo, assim como com seus antagonistas; é preciso lutar contra o mundo enquanto luta contra si mesmo, internalizando ao mesmo tempo que externaliza a rebelião.

Gramsci enxergava a cultura como uma base para a formação da consciência de classe e da autonomia dos grupos subalternos.

Ele introduziu o conceito de hegemonia cultural, que explica como as classes dominantes mantêm seu poder não apenas pela força, mas pela disseminação de valores, ideias e práticas que são internalizados pelas massas como "naturais" ou universais. Assim, transformar a sociedade exige que os grupos subordinados criem uma contracultura e articulem sua própria hegemonia.

O subalterno, mais do que qualquer outra pessoa, precisa saber que está conectado ao processo histórico, saber que está no lado receptor desse processo, saber como foi minado por esse processo e, às vezes, como se auto-minou nesse processo. Um problema é que, mesmo quando os subalternos se rebelam, "eles estão em um estado de defesa ansiosa". "Todo traço de iniciativa autônoma, portanto, é de valor inestimável".

Gramsci e a Cultura Alimentar dos Povos Tradicionais

A aplicação do pensamento de Gramsci à questão da cultura alimentar dos povos tradicionais pode ser analisada de várias maneiras, dado que a alimentação está profundamente ligada à identidade, aos modos de produção e às relações de poder.

Resistência à hegemonia cultural alimentar:

A cultura alimentar dos povos tradicionais enfrenta a hegemonia das indústrias alimentícias e do agronegócio, que promovem uma homogeneização dos hábitos alimentares em detrimento das práticas locais e sustentáveis.

A defesa das tradições alimentares, como práticas agrícolas locais, receitas ancestrais e conhecimentos sobre biodiversidade, pode ser vista como uma forma de contracultura.

Valorização da autonomia e soberania alimentar:

Gramsci reconheceria a luta dos povos tradicionais por soberania alimentar como um exemplo da construção de uma hegemonia alternativa, pois envolve o controle sobre a produção, distribuição e consumo de alimentos de maneira alinhada aos valores culturais e ecológicos locais.

A culinária popular é semelhante ao que o folclorista pioneiro Don Yoder chamou de “culinária popular... culinária doméstica tradicional marcada pela variação regional” ( 2015 : 21). 

Inclui “os próprios alimentos, sua morfologia, sua preparação, sua preservação, suas funções sociais e psicológicas e suas ramificações em todos os outros aspectos da cultura popular”. 

Para os italianos, a culinária popular é cucina popolare , “culinária popular, culinária do povo” ou cucina povera , “culinária humilde, culinária da pobreza” ( Montanari 2001 ).

Na Itália, a culinária popular historicamente tem sido enraizada no campo e nas famílias camponesas que constituíram a maioria da população durante a maior parte da história italiana.

Hoje, a culinária popular italiana, é uma construção idealizada em vez de comida diária. 

Desde a década de 1930, os italianos têm abandonado constantemente a agricultura camponesa, e a porcentagem da população empregada na agricultura caiu de 47% em 1930 para 4% em 2008, onde permanece até hoje. 

Desde a década de 1980, os italianos têm consumido cada vez mais alimentos processados, importados e produzidos em massa no lugar dos alimentos cultivados localmente do passado ( Vercelloni 2001 ).

Educação como ferramenta de empoderamento:

•A valorização e o ensino das práticas alimentares tradicionais (sementeiras, técnicas de cultivo e gastronomia) podem criar uma "intelectualidade orgânica" dentro das comunidades, reforçando sua identidade e capacidade de resistência.

Cultura alimentar como instrumento político:

A organização de movimentos em defesa dos alimentos tradicionais, como os promovidos pelo movimento ou pelas comunidades agroecológicas, é uma prática gramsciana de articulação cultural e política. Essas iniciativas confrontam o modelo dominante e promovem novas formas de relação com a terra e a alimentação.

Aqui estão algumas estratégias para integrar essa perspectiva no ensino:

Conscientização sobre sistemas alimentares

•Explorar como os alimentos chegam às mesas, destacando o papel da agricultura, comércio, industrialização e distribuição.

•Analisar desigualdades, como acesso desigual a alimentos saudáveis e o impacto da fome e da obesidade em diferentes comunidades.

Valorização das culturas alimentares locais

•Ensinar sobre a importância da preservação das tradições alimentares como forma de resistência à padronização global.

•Abordar como a colonização e o capitalismo afetaram as dietas tradicionais e os modos de produção alimentar.

Discussão sobre sustentabilidade e meio ambiente

•Relacionar práticas agrícolas, consumo de alimentos e mudanças climáticas.

•Incentivar debates sobre alternativas sustentáveis, como agricultura orgânica, consumo consciente e redução do desperdício.

Enfoque na segurança alimentar e justiça social

Abordar questões como a concentração de terras, a exploração de trabalhadores agrícolas e o impacto das políticas públicas sobre a produção e o acesso ao alimento.

Debater a importância de políticas públicas que promovam acesso universal a alimentos nutritivos e culturalmente adequados.

Estímulo à participação ativa

•Incentivar os estudantes a se engajarem em projetos comunitários relacionados à alimentação, como hortas urbanas, feiras agroecológicas e cozinhas solidárias.

•Promover discussões sobre o papel dos indivíduos como consumidores críticos e cidadãos que pressionam por mudanças no sistema alimentar.

•Uso de materiais e práticas pedagógicas críticas

•Trabalhar com textos, documentários e estudos de caso que mostrem como o alimento está ligado ao poder, à resistência e à transformação social.

•Realizar atividades que envolvam reflexões éticas, como "Quem produz o que comemos?" ou "De onde vem o nosso alimento?".

Esse ensino político da cultura alimentar pode ajudar a formar cidadãos mais conscientes de seu papel no sistema alimentar global e mais comprometidos com mudanças que promovam equidade e sustentabilidade.



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