Acontece que ele é baiano

Dorival Caymmi, João Ubaldo Ribeiro, Rodrigo Sá Menezes em  "A qualidade literária".





João Ubaldo Ribeiro 

“Quando Caymmi morava na Pedra da Sereia (praia que fica entre os bairros de Ondina e Rio Vermelho, na Cidade do Salvador), como é frequente na vida de escritores e assemelhados, passei um período um tanto apertado. Com dinheiro contado até para gasolina, fazia força para manter a dignidade e não costumava comentar o assunto com os amigos. 

Mas Caymmi me conhecia e sabia da situação, não precisava que ninguém lhe falasse. 

Aí o então Banco Econômico da Bahia resolveu inaugurar sua primeira agência em Belo Horizonte com um comercial estrelado por Caymmi. 

Acho que ele nem precisava ir a Minas Gerais, ia gravar ou filmar em Salvador mesmo, cercado de coqueiros, junto do mar de Itapuã. 

Faziam um fundozinho musical, davam um close nele e ele dizia qualquer coisa como ‘agora, com a nova agência do Banco Econômico da Bahia, estou trazendo um pedacinho de Itapuã a Minas Gerais’. 

Ou algo assim, não eram mais que, no máximo, três linhas datilografadas. 

O pessoal da agência de propaganda do banco (Propeg) levou o texto para ele, que o leu prolongadamente, muito sério. 

– Quem escreveu este texto? – perguntou com gravidade. 

– Foi um redator lá da agência. Mas, se o senhor quiser sugerir alguma mudança, pode falar. 

– Eu não sei sugerir nada, não é a minha profissão. Mas não posso ler um texto sem qualidade literária. 

– Qualidade literária? Mas… 

- Tenho que sentir qualidade literária, isso é um texto de responsabilidade, não vou dizer um negócio desses sem esse respaldo. 

– Mas quem o senhor sugere? 

– Não sei se ele aceitaria, mas, se o pagamento for bom, é possível que ele tope. Procurem ver como está a agenda dele, do João Ubaldo. Por que não procuram o João Ubaldo? 

No mesmo dia, enfezadíssimo, o dono da agência, o grande publicitário baiano Rodrigo Sá Menezes, me procurou na redação do jornal onde eu estava trabalhando. 

Dorival Caymmi tinha sido contratado para fazer o comercial do Banco Econômico, mas exigia que eu escrevesse o texto. 

Perguntei o que era e ele, pálido de exasperação, me mostrou as três linhazinhas. 

– Mas o que é que há para mudar aqui? 

– Nada, é isso mesmo. 

Mas, por favor, pegue uma lauda do jornal, copie essas três linhas com sua máquina de escrever e assine embaixo. Nós pagamos mais do que você ganha num mês aqui, pode ficar tranquilo. E, se ele telefonar para você, pelo amor de Deus confirme. 

Caymmi telefonou, na frente de Rodrigo. Estava com o texto na mão, queria saber se era mesmo eu que o tinha escrito. E tinham pago bem pelo serviço, tudo fora feito corretamente, eu recebera meus direitos de autor? Sim, tudo bem, tudo corretíssimo. 

– Ah, bom, disse ele, desligando o telefone, voltando-se para Rodrigo e brandindo o papel aberto diante dos olhos, como se estivesse contemplando um soneto de Camões. 

– Agora sim, é outra coisa, agora eu tenho certeza da qualidade literária, assim eu leio.”


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