Afetocolagens: Reconstruindo Narrativas Visuais de Negros na Fotografia Colonial, Série 3, 2022. Foto: © Silvana Mendes.

Por Leandro Fazolla

Carolina Maria de Jesus autografa seu livro. Ao lado dela, um homem branco também escreve sobre uma pilha de outros livros da escritora. No registro fotográfico, a autora divide o espaço que deveria ser dela. Na exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”, no Instituto Moreira Salles (IMS) de São Paulo, exibida em 2021, porém, havia algo diferente nessa imagem. Do colarinho da camisa daquele homem, onde deveria estar a cabeça dele, brotam folhagens e sai um grande pássaro colorido, tirando-lhe a identidade e dando à Carolina o protagonismo que nunca lhe devia ter sido roubado. Obra de Silvana Mendes, a fotocolagem sacraliza a presença da autora de “Quarto de Despejo” com uma espécie de auréola de contas amarelas em torno da cabeça dela.

Em vez de apagar completamente a presença do homem, a artista optou por mantê-lo ali, presentificado na ausência de suas feições, grifando o gesto firme de reescrita da história empreendido por ela.

A participação na exposição do IMS foi uma das primeiras incursões da arte de Silvana em um grande espaço institucional. Coincidentemente, dois anos antes de receber o convite para integrar a mostra, a artista havia visitado o Instituto e pensado que suas obras talvez jamais coubessem em espaços como aquele. De lá para cá, Silvana continua conquistando os mais diversos públicos de espaços tão importantes quanto o MAR (Museu de Arte do Rio) e o MAM (Museu de Arte Moderna), do Rio de Janeiro.

A obra de Silvana está no cerne de uma disputa de narrativas contemporâneas. Após se entender como mulher preta e buscar mais de sua ancestralidade, a artista foi se aprofundando nas pesquisas sobre as diversas formas de violência a que o povo negro vem sendo submetido ao longo dos últimos séculos no Brasil. Em sua recente série de “afetocolagens”, Silvana busca na História do Brasil, mais especificamente no período colonial, retratos de homens e mulheres cujas identidades não foram preservadas e foram registrados apenas pelo caráter etnográfico.

Segundo a própria artista, ao se deparar com essas imagens, pôde enxergar diversas semelhanças com pessoas que ela mesma conhecia. Silvana enxergava naquelas fotografias antigas os traços de amigos, parentes ou outros com os quais esbarrava em seu dia a dia. Pessoas cuja imagem ancestral é nebulosa, seja pela falta de informações ou registos fotográficos ou pelo próprio apagamento institucional empreendido por anos pelos tantos “brasis” oficiais. Ela mesma não tem qualquer fotografia de seus avós paternos, e encontrou em alguns dos registros de anônimos traços que a faziam lembrar de seus familiares. Teriam aqueles fotografados algum grau de parentesco com ela própria ou com outras pessoas que a cercam? Não é possível responder a essa pergunta, mas a suposição inevitavelmente estabelece um laço afetivo da artista com tais imagens.

Em um trabalho quase totalmente empírico e intuitivo, Silvana apaga o fundo das fotografias, deixando em evidência apenas o retratado. A partir disso, relaciona-se com ele, cria contextos, insere elementos e modifica narrativas sem, no entanto, fechá-las em uma única possibilidade: a mesma imagem pode ser lida por diferentes espectadores como uma rainha africana ou uma santa católica. Os caminhos estão abertos para o público escrever suas próprias histórias a partir do que a artista lhes oferece.

Assim, ainda que Silvana não tenha o poder de apagar a História vergonhosa de um Brasil que até hoje respira as consequências da escravidão, ela pode contribuir no importante processo de criação de novos de discursos, pela arte, ao dar à comunidade negra o protagonismo em uma terra que os violentou e ainda violenta mesmo após mais de quinhentos anos da invasão portuguesa.

Invasão! Em contexto completamente diferente e que amplia a percepção sobre quais mãos sempre escreveram a história oficial, “invasão” não foi a palavra usada nos livros de história para se referir à chegada dos portugueses em terras tupiniquins, mas foi o termo usado durante muito tempo para designar os bairros de periferia e quebradas de São Luís do Maranhão, onde Silvana cresceu.

Proveniente da outrora invasão, hoje bairro, Cantinho do Céu, a estudante de licenciatura em artes visuais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) começou sua trajetória artística ocupando as ruas com suas obras. Inicialmente trabalhando com lambe-lambe, tanto pelos custos mais baixos de produção quanto pela resposta imediata do público, Silvana preencheu simultaneamente os muros das ruas e os murais das redes sociais, estratégia usada para promover as próprias obras. O trabalho era feito a partir de intervenções e pinturas sobre fotografias, muitas delas feitas pela artista com modelos de seu convívio, aliando sua produção artística a um importante processo de resgate da autoestima e empoderamento de pessoas pretas.

Não à toa a palavra afeto está nos títulos de séries da artista como “afetocolagens” ou “Fotografia Afetiva”. O afeto é uma das forças motrizes na produção de Silvana Mendes, que dota sua obra de questões ainda mais relevantes do que a pura apreciação estética: sua produção se alia a assuntos caros como reparação histórica e transformação social. As obras de Silvana se estabelecem em um fluxo contínuo de troca, onde a artista recebe imagens do mundo, e as devolve transformadas, recriadas, de maneira a afetar intimamente o outro e contribuir na construção de novos mundos.

Leandro Fazolla é ator, historiador e crítico de arte.

Doutorando em Artes Cênicas. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea, na linha de pesquisa de História, Teoria e Crítica de Arte. Diretor Geral do Instituto Cultural Cerne.

Fonte: Da Sartes


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