Cachaça, caipirinha e prosa na São Paulo da garoa.

O PRAZER DO PALADAR EXIGE SILENCIO A PERCEPÇÃO SURGE DA OBSERVAÇÃO.

“Batida de limão é vacina de pobre” - Guilherme Santos Neves, A Gazeta, 6 de outubro de 1957. 
Por *Joana Monteleone
Chichico Alkmim. Bar na rua direita, s/d. Diamantina, Minas Gerais / Acervo IMS
Foto Samuel Boote

Dizia uma quadrinha popular do começo do século XX que somente o sino e o ovo não bebem cachaça. 

O sino porque tem a boca para baixo e o ovo porque está cheio. A anedota faz parte de uma série de quadrinhas, versos, ditados e sinônimos recolhidos pelo escritor modernista Mário de Andrade para uma pesquisa sobre o folclore da cachaça, cujo material se encontra no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Mário gostava de beber, e em sua viagem à Amazônia, em 1927, recolheu os seguintes versinhos, que também diziam muito de sua relação com a bebida:
 “O meu consolo é viver nesta alegria / Cambaleando, vendo a lua em pleno dia/ O meu consolo é viver sempre na água/ Porém meu peito não conhece o que é mágoa”. 

 Subproduto do refino do açúcar, a cachaça está intimamente ligada à história do Brasil. São quase infinitos os sinônimos para a bebida em português. Entre os recolhidos por Mário de Andrade, estão moça branca, caninha, canha, chica boa, choro de mulata, concentrada, gato, ginger, isca, martelo, pinga, quebra-goela. 
A aguardente foi estudada por sociólogos, folcloristas e antropólogos e sua história foi escrita a partir das maiores regiões produtoras de açúcar do país, como a Bahia, o Rio de Janeiro ou Pernambuco.
Estudar a história da cachaça em São Paulo é, muitas vezes, como encontrar um samba bom na terra da garoa. Mas “mulher, patrão e cachaça em qualquer canto se acha”, cantou o maior sambista paulista, Adoniran Barbosa. 

 A técnica para a fabricação da cachaça era simples e não requeria nem muito conhecimento nem uma produção muito extensa. A produção local, portanto, tinha um mercado garantido. Mercado este que era composto não apenas por escravos, libertos, forros, lavradores pobres, donos de pequenos armazéns ou mineradores. 

A aguardente de cana era uma unanimidade, bebida por todos os segmentos da população, ainda que membros da elite escondessem suas preferências, afirmando a superioridade das bebidas metropolitanas como o vinho ou a própria bagaceira. 
Em 1915, na esquina da XV de Novembro com a Rua do Tesouro ficava o Café Andes. Comércio e cachaça andavam juntos / Reprodução

A disseminação da fabricação e do consumo da cachaça no Brasil data dos séculos 17 e 18. Entre 1797 e 1803, a aguardente representava o oitavo produto brasileiro na pauta de exportações para a metrópole. Todas as regiões brasileiras produziam aguardente, mas o Rio de Janeiro, em primeiro lugar, seguido pela Bahia e por Pernambuco, eram os portos que mais exportavam o produto. 
A cidade e a bebida: paulistas e caipirinhas Na cidade de São Paulo, tomar cachaça sempre foi prática corrente. 
Onde houvesse uma venda de secos e molhados a bebida era oferecida e gerava rodas de conservas entre os consumidores. Dessa maneira, lugares específicos da região central tomaram da bebida seu nome, como é o caso do Beco da Cachaça. 

Um dos lugares de encontro e sociabilidade da cidade neste período eram os armazéns, que muitas vezes funcionavam como pequenos botecos ou bares. 
Serviam-se lingüiças fritas, torresmos ou mesmo refeições preparadas pela mulher dos donos dos estabelecimentos, que se espalhavam pela cidade. Em São Paulo Antigo, o escritor Antônio Egydio Martins comenta sobre o antigo prédio térreo da rua São Bento, esquina com a Ladeira do Açu, em que, num armazém de secos e molhados, o comerciante Joaquim Antonio da Silva, conhecido como Joaquim Bafejador, em meados do século XIX, servia cachaça para a nata da elite paulistana. 

O costume perdurou – e mesmo anos depois, quando a cidade já possuía estabelecimentos chiques, tomar uma caninha era hábito cotidiano, seja em lugares sofisticados, seja em armazéns de secos e molhados. 

Mas essas descrições, ou mesmos os números de produção, traduzem apenas uma pequena parte do que representava a cachaça no cotidiano paulista. A caninha era o conforto da “alma” dos bebedores, na maioria das vezes escravos, forros ou homens e mulheres livres sem perspectiva de futuro, condenados a um cotidiano de trabalhos pesados e forçados. Usada como moeda no tráfico de escravos, a aguardente fazia parte da alimentação diária da população paulista e sua importância como fonte de calorias era quase que imprescindível. 

Os versinhos populares recolhidos pelo pesquisador baiano José Calasans dizem explicitamente: 
“Comendo feijão/ bebendo cachaça/ assim a vida se passa”, ou então “Você disse que é toureiro/ Mais a mim você não laça/ A comida só é boa/ Quando se tem a cachaça”.
A aguardente sempre esteve ligada à alimentação cotidiana dos moradores de São Paulo. Mário de Andrade, pesquisando sobre a genealogia da cachaça, anotou costumes, sinônimos e anedotas sobre a bebida. Mais uma vez, é ele quem nos dá uma pista sobre a antiga relação de São Paulo com a aguardente. 
Em seu fichário analítico, o escritor fez uma anotação sobre uma bebida muito popular no final do século 19 e começo do 20. Era a Paulista, mistura de limão, açúcar e cachaça. Mário de Andrade lembra de outras misturas com pinga, ligadas à diferentes regiões do país. 
Ele escreveu sobre a “caninha de manga” mineira, a “imbiriba” nordestina (…) a “meladinha” que também se diz cachimbo (…). E também sobre uma especialidade de São Paulo: a batida paulista: “A batida paulista é realmente a melhor das misturas da cachaça. 

Quando legítima, isto é, com limão, água e açúcar apenas” Não é preciso muito para chegarmos a conclusão de que a Paulista da época do Mário ficou conhecida Caipirinha dos dias de hoje. 

Na verdade, as duas palavras são sinônimos. Afinal, “caipira” significa, em tupi, “cortador de mato”, nome que os índios do interior da região davam aos homens brancos e caboclos e que acabou por se tornar um sinônimo dos habitantes do interior do estado. O paulista é o caipira. A bebida paulista é a caipirinha, acrescida de gelo numa benesse dos tempos da geladeira. Pinga, limão, gelo e açúcar. Caipirinha.


Joana Monteleone

Editora e historiadora. Autora dos livros "Toda comida tem uma história" (Oficina Raquel, 2017) e "Sabores Urbanos: alimentação, sociabilidade e consumo" (Alameda Casa Editorial, 2015).



O vocábulo cachaça, que pode ser denominado de inúmeras maneiras, dependendo da região considerada, conforme podemos observar por meio de alguns exemplos extraídos do Dicionário Eletrônico Huaiss da Língua Portuguesa (2001), em que a bebida é denominada por nomes próprios, adjetivos, nomes de animais, frutas, e pratos, bem como por nomes referentes à cor da pele, entre outros aspectos, tais como: abre-coração, acuicui, a-do-ó, água, água-benta, água-branca, água-que-passarinho-não bebe, aguardente, aguarrás, agundu, amarelinha, amorosa, apaga-tristeza, ariranha, arrebenta-peito, assovio-de-cobra, azeite, bafo-de-tigre, bichinha, birita, braba, branquinha, brasa, brasileirinha, cachorro-de-engenheiro, café-branco, cândida, caninha, canjica, capote-de-pobre, cascavel, catinguenta, cauim, chora-menina, cobertor-de-pobre, cura-tudo, danada, desmancha-samba, dona-branca, engasga-gato, espantamoleque, extrato-hepático, faz-xodó, filha-de-senhor-de-engenho, fogo, gasolina, goró, gororoba, guampa, homeopatia, iaiá-me-sacode, lágrima-de-virgem, levanta-velho, limpa-goela, lindinha, mangabinha, marvada, mata-bicho, mata-paixão, mateus, melé, meu-consolo, mijo-de-cão, moça-branca, moça-loura, mulata, mulatinha, mungango, negrita, nó-cego, óleo-de-cana, omim-fum-fum, parda, patrícia, pau-de-urubu, penicilina, petróleo, pindaíba, pinga, preciosa, quebra-jejum, quindim, remédio, samba, santa-maria, sinhazinha, suor-de-alambique, tira-juízo, veneno, virge e virgem.

Encontro de Adoniran Barbosa e Elis Regina. Músicas: "Iracema", "Um samba no Bexiga" e "Saudosa Maloca".Bar da Carmela

Comentários

Postagens mais visitadas