Pequena História de não-livro

A biblioteca do velho sempre era citada nas entrevistas de Jorge Luis Borges. O mágico contista argentino costumava creditar aos livros que lera na coleção de seu pai sua inexcedível bagagem intelectual em vários idiomas.

Meu pai nunca teve livro algum. Ao menos nunca o vi segurando um. Como o velho imaginado por Chico Buarque, na letra de O velho Francisco, seu Marciano só “viu jornal, bula e prefácio”. – Só vejo as letra grande, dizia ele, as miúda eu passo.

Apesar disso, creio que descende de meu pai o meu amor pela literatura. Não à custa de livros herdados, pois que, como disse, ele não os possuía, mas, sim, daquilo que normalmente os livros se ocupam, da linguagem. Eu descendo da linguagem natural de meu pai de sua hábil voz de contador de histórias.

Meu pai era um sertanejo, um homem bruto, de poucas palavras, que veio habitar a porteira de semáforos da cidade grande. Não tinha traquejo com a coisa urbana, letrada, noturna dos grandes centros. O Marciano era um sujeito solar, diurno, que trouxera os horários da fazenda no corpo e, nesse fuso de galinhas, atravessou sua vida de comerciante balconista da rua dos Caetés.

Mas como diabos um homem calado pode ins-pirar alguém por meio de palavras? É aí que mora um segredo que só vim descobrir ao final de sua vida, quando eu preparava, em três tomos, os originais de causos catados por ele no teclado de um velho computador que deixei em seu quarto quando me mudei para São Paulo. Dali, milagrosamente, vieram pequenos tesouros escritos ao modo de fala, cheios de “erros”, plenos de acertos, o que arranjei como sua autobiografia.

O velho era inteligente, falava pouco. O velho era nada, nada maledicente. Certa vez, aconselhou-me: – Filho, se você não tiver nada de bom para falar de uma pessoa, fica quieto –. E era basicamente isso: o velho era indispensável no que calava. Todo o seu saber emanava de suas pausas geniais, sempre oportunas, pois que seu timing morava na gravidade do não-dito. Seus silêncios eram janelas de fôlego que se abriam largas, de lado a lado da prosa, para dar mais ênfase aos breves comentários que as delimitavam. Mas a conversa toda se apoiava mesmo era no vão desses seus brancos retóricos, persuasivos como o quê, para os quais, quietos, todos suspendíamos a respiração para bem não ouvir.

O talento inato de meu pai como prosador às avessas era absolutamente não identificado por ele, em si, que era só feito dele mesmo. Falar, para ele, era matéria mínima e essencial como o ar que se respira. Era um apenas ser, quase sem palavra. Um ser sem nenhuma reivindicação extra. Só o ser, mesmo, meu pai.

Minha eloquência palavrosa, essa eu a tomei de minha mãe, inquieta, irônica, conversadeira. Em meu pai, no entanto, o tempo, o rumo da prosa era bem outro. Uma toada de muxoxos e gemidos era o suficiente para emprestar o ritmo perfeito às suas histórias, que eram molduras para suas obras-primas, seus discursos de silêncio. O “nonada”, do Rosa, era muito usado por ele, só que ainda mais contraído: – Nhaad!

Em uma oportunidade, pude vê-lo conversar com seu Geraldo, um posseiro, vaqueiro da fazenda. E foi o diálogo mais potente, por repleto, que já presenciei, pois que o interlocutor só fazia repetir a última palavra das já tão curtas sentenças de meu pai.

– Aeôu, seu Geraldo, bão?

– Bão.

– E a lavoura, novidade?

– Vidade.

– E qual é, seu Geraldo, boa ou ruim?

– Ruim.

– Que coisa...

– Coisa.

– Ah, bobo, qualquer horinha bandeia de lado e vira.

– Vira.

– E o gado, Segeraldo, vendeu?

– Vendeu.

– Fez dinheiro bão ou quirerinha?

– Quirerinha.

– Mas ficou com as vacas leiteiras, não foi?

– Foi.

– Antisisso. Ó, sgeraldo, senhor ficondeus.

– Condeus.

– Dê lembrança à patroa.

– Troa.

Eu sempre amei adentrar essas cenas feitas de entrelinhas, de pó de fala, cacos de luz tão intensa, roubando-as, de camarote, como um figurante que se compraz em assistir à novela por dentro. Dentro da cena descrita e das palavras que a ergueram, monumentais, ínfimas, lá estava eu. E não é assim que nos sentimos ao ler os melhores romancistas?

A academia me ensinou, bem depois, que o controle voluntário do vazio é a própria forma, na escultura, na arquitetura, na música e em qualquer composição artística. Por que o não-dizer atuaria na palavra de modo diferente? Em qualquer operação literária falada, escrita, cantada vai ser sempre assim: o silêncio é o ar, o lugar que marca e rege a sinfonia.

Com o velho, no entanto, aprendi o não-dizer em uma estranha música, cortando frase com facão, rachando lenha de retórica, caçando sombra e água na vereda, mas também abrindo picada no mato denso do falatório, atento, que lá tem cobra. Mas também tem saudade.

– Saudade.


(Do livro "Frágil Recompensa") Marcílio Godoi


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