"O feitiço da Bahia começa pela cozinha. Você só se alimenta de comidas sagradas."

Entrevistas feitas por clarice Lispector ganham homenagem em DVD

Nas décadas de 60 e 70, a escritora Clarice Lispector colaborou para a Revista Manchete e para o Jornal do Brasil como repórter, colocando uma enorme dose do seu estilo literário num campo que ainda se permitia experimentalismos.

Reunidas no livro Entrevistas, lançado em maio de 2007 pela editora Rocco, as conversas de Clarice com gente do calibre de Jorge Amado, Oscar Niemeyer, Chico Buarque e Tom Jobim, entre outros, trazem para a literatura o jeito irreverente de Clarice entrevistar, lançando perguntas ora complexas, ora tão simples que eram difíceis de responder.

Confira a entrevista:

E eu que tinha como um dos objetivos da viagem à Bahia dialogar com Carybé, terminei conseguindo-o no Rio...? Ele esteve dois meses na Europa e passava por aqui, rumo a Salvador. E eu o tive à minha frente com seu ar dos mais humanos que já senti: é uma pessoa de fato.

Clarice Lispector – Seu nome é mesmo Carybé?

Carybé – Fui registrado como Hector Bernabó. Carybé é meu nome de artista.

Clarice Lispector – Você é argentino de nascimento, mas brasileiríssimo e, ainda por cima, baianíssimo de coração. Como é que você explica seu amor, aliás correspondido plenamente, pelo Brasil?

Carybé – É simples: saí da Argentina ainda criança de colo; depois fui para a Itália (meu pai era italiano) e aos oito anos vim para o Rio. E ainda por cima minha mãe era gaúcha. Quanto à Bahia, foi um namoro comprido. Conhecemo-nos em 1938. Fiquei com a ideia fixa de morar na Bahia e voltei lá por duas vezes, sem poder concretizar meu desejo. Até que uma carta vergonhosamente elogiativa de Rubem abriu-me as portas da Bahia na pessoa de Anísio Teixeira, no governo de Otávio Mangabeira. E me deram a tarefa de desenhar durante um ano as coisas da Bahia. Esse ano se estendeu pelos 19 em que estou lá.

Clarice Lispector – Agora, Carybé, você vai por favor me explicar o fascínio da Bahia a que também sucumbi, tanto que só penso em voltar e passar pelo menos um mês trabalhando por lá.

Carybé – Minha linha era sempre uma aventura sul-americana. Fui para o Peru, para a Bolívia, para o Chaco argentino, onde morei com os índios. Mas a Bahia ganhou o campeonato porque é uma cidade viva. Em geral as cidades que têm história, arquitetura – enfim, que viveram desde o começo da América – são cidades-museus. Mas a Bahia tem arte e arquitetura modernas, um povo alegre, simpático, sobretudo bom, ao mesmo tempo que fortalezas, catedrais e o mar que é maravilhoso.

Clarice Lispector – Poucas vezes vi mar mais bonito e mais audacioso que o da Bahia.

Carybé – Salvador é uma cidade que parece encomendada para artistas plásticos, para escritores, cineastas. Enfim, tudo lá é uma espécie de incubadeira para essa gente.

Clarice Lispector – É o que eu senti, Carybé: como se uma sereia me chamasse com o seu feitiço.

Carybé – Agora, Clarice, você disse a palavra certa: feitiço. O feitiço é vivo, começa pela cozinha.

Você se alimenta de comidas sagradas. Por exemplo, acarajé é comida de Iansã, que é um orixá-fêmea dos ventos e das chuvas. O caruru é o amalá de Xangô. E quase todos os pratos típicos baianos são a comida dos orixás (santos do candomblé). Depois tem arvoredos que são a morada de encantados (orixás também). E a música de Caymmi, Caetano Veloso, Gil, Tom Zé e muitos outros. Tem sol, tem pescadores, tem o diabo... que não é bem diabo, é Exu, o diabo do candomblé que é de uma travessura diferente da dos outros diabos e, sendo bem tratado, torna-se um amigo inestimável.

Clarice Lispector – No começo de sua carreira como pintor, é verdade que você desenhava muito os botos?

Carybé – Eu trabalhei muito em jornal para poder ter dinheiro e ilustrava livros. Até que pouco a pouco pude me sustentar exclusivamente com a pintura. Isso se deu na Bahia, o lugar onde eu menos imaginava que pudesse viver só de arte.

Clarice Lispector – Mas... e os botos?

Carybé – Os botos, quando mais contato tive com eles, foi ilustrando um livro de Newton Freitas sobre lendas amazônicas. E também numa viagem longa que fiz pelo Amazonas, onde os bichinhos pulavam acompanhando as alvarengas (canoas imensas) e os navios-gaiola. Nunca vi um transformado em pessoa...

Clarice Lispector – Você hoje é chamado pelos ingleses de “o pintor dos cavalos”. E eles compraram nada menos que 40 telas suas... Como eu tenho alucinação por cavalos de todas as espécies, queria saber se você também tem.

Carybé – Tenho, sim, Clarice, é o animal de que eu talvez mais goste. Viajei muito em companhia deles. Agora a coisa de “pintor de cavalos” foi devido ao presente que a Bahia ofereceu à rainha da Inglaterra. Sendo ela também apreciadora de cavalos, o embaixador Russell sugeriu que lhe fosse dado um quadro meu onde figuravam montarias. Agora fiz uma exposição em Londres; em novembro farei outra na Tryon Gallery, com tema indicado, cavalos. Concorrerei com pintores de umas oito nações: ingleses, mexicanos e australianos, entre outros.

Clarice Lispector – Você trabalhou durante sua recente viagem pela Europa? Tomou notas?

Carybé – Fiz umas crônicas ilustradas para o Jornal do Brasil e para A Tarde, da Bahia. Mas o principal trabalho foi ver. Os olhos são a ferramenta da gente. (Os olhos de Carybé são de um castanho-dourado, bem atentos às coisas que o rodeiam: não há perigo de lhe escaparem visões.) E agora estou doido para chegar à Bahia para ver o que acontece.

Clarice Lispector – Chegando lá, qual é a primeira coisa que você pretende fazer?

Carybé – Tomar contato com minhas latas, meus pincéis, e ver o que vai fermentar ou já fermentou das coisas que vi.

Clarice Lispector – Sobretudo o que é que você viu pela Europa?

Carybé – Por exemplo, vi Londres, que foi uma surpresa para mim. É uma espécie de reinado da juventude, da liberdade de viver e de criar. E, depois, a porta de São Pedro, de Giacomo Manzu, as catedrais romanas e góticas, e sobretudo o povo da Espanha, da França, da Itália, da Inglaterra. Essa é a coisa de que eu mais gosto: povo, gente. Em Sevilha, por exemplo, houve um paralelo entre a tragédia e a alegria: a tragédia da Semana Santa e a alegria desbordada na Feira dessa cidade – o mesmo povo com sentimentos opostos. Na Feira é uma alegria de doidos, as moças a cavalo, vinho, castanholas, bailes. Na Semana Santa, o soturno, uma atmosfera de Idade Média, com penitentes e véus negros cobrindo cabeças de mulheres, o canto mais sentido do mundo, que são as saetas que o povo canta para Jesus e Maria.

Clarice Lispector – O rosto humano lhe interessa para desenhar?

Carybé – Me interessa demais até, mas não sou retratista. O que mais eu apreendo são gestos do corpo todo, movimentos, maneira de sentar, de andar, de carregar coisas, enfim, a vida humana e a dos bichos. Eu adoro bichos.

Clarice Lispector – Você tem muitos amigos na Bahia – isto é, amigos que você frequenta?

Carybé – Eu graças a Deus não tenho inimigos. Sou muito amigueiro e tenho amigos um pouco pelo mundo todo.

Clarice Lispector – Posso dagora em diante ser considerada por você também sua amiga?

Carybé – Você é minha amiga há muitíssimos anos através de Inês Besouchet, do Marino-Macunaíma, do Jorge Amado, da Zélia, do Rubem e outros amigos comuns. E sobretudo por ter lido o que você já escreveu.

Clarice Lispector – O que me diz você na Bahia dos músicos, pintores, escritores?

Carybé – Está tudo no ar. Não no ar da tevê, como se diz agora, mas no ar mesmo, no sol, e no povo. Na Bahia não há grupos em choque: cada um trabalha como acha que deve ser. Eu penso que é isso que dá essa atmosfera de criação que se respira lá e que nos inspira. É uma coisa misteriosa, Clarice, porque os plásticos, os músicos, os escritores, os poetas brotam com facilidade e com amizade mútua.

Clarice Lispector – Há quantos anos você pinta, Carybé?

Carybé – Tenho 58 anos, pinto desde os 15. Faça a conta.

Clarice Lispector – Por que você escolheu o pseudônimo de Carybé?

Carybé – Tenho um irmão que também é pintor e dava confusão os dois com o mesmo nome. Aí procurei um pseudônimo. Veja você, eu era escoteiro do Clube do Flamengo e pertencia a uma patrulha na qual todos tinham nomes de peixes. E eu era o peixe carybé. Achei o nome sonoro e curto, e adotei-o. E não diga nada a ninguém, mas o carybé é uma piranha ...

Clarice Lispector – Estou aqui morrendo de inveja de você que vai amanhã, tão expressivamente apressado, pra Bahia...

Carybé – Se você quer ir à Bahia para escrever é preciso duas coisas: muita vontade de sua parte, e nós lá pedirmos a Exu que abra os caminhos para a sua ida...

Clarice Lispector – Depois que terminei e publiquei romance mais recente, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, estou inteiramente vazia de inspiração. Mas nisso de inspiração também conto com Exu, que já é meu amigo do peito e vai me ajudar em tudo, entendeu? Exu é poderoso.

Carybé – Pintor nascido na Argentina. Nome artístico de Hector Julio Paride Bernabó. Radicou-se, inicialmente, no Rio de Janeiro depois de ter vivido na Itália até os oito anos de idade. Fixou-se definitivamente na Bahia a partir de 1950, naturalizando-se sete anos depois. Suas obras traduzem a baianidade expressa nas cenas cotidianas e no folclore popular. Destacou-se pela criação de murais, hoje expostos em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Montreal, Buenos Aires e Nova York. Fez ilustrações de obras literárias, como O sumiço da santa, de Jorge Amado.


Fonte: 
- LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

Templo Cultural Delfos


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