As especiarias fizeram parte do projeto expansionista português no comércio ultramarino.

Filho de família judaica, Boris Fausto nasceu em São Paulo, no dia 8 de dezembro de 1930. Primeiramente, formou-se bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, em 1953. Depois, em 1966, gradou-se em História pela mesma faculdade, onde se tornou doutor em 1969. Foi professor no Departamento de Ciência Política da USP e colunista semanal do jornal "Folha de São Paulo". Também integrou a Academia Brasileira de Ciências.

Em sua homenagem, vamos dedicar esse post a sua grande empreitada que foi desvendar os primórdios da “História do Brasil”, o livro mais vendido da Editora da USP (Edusp)

O que hoje para nós parece uma preferência culinária, a ser adicionada “a gosto”, até o século XVII eram consideradas itens de luxo.

O interesse Português ao aportar na Índia era de garantir a rota das especiarias, pois as mesmas possuíam grande valor comercial. 

Mas qual o significado da palavra especiaria? A palavra é de origem latina e significa especia, termo utilizado pelos médicos para designar substância. “O termo ganhou depois o sentido de substância muito ativa, muito cara, utilizada para vários fins, como condimento – isto é, tempero de comida –, remédio ou perfumaria”. (FAUSTO, 2007, p. 26). Especiaria se associa à ideia de produto caro, durante algum tempo o açúcar foi considerado uma especiaria, porém com sua produção em larga escala ele perdeu este status. São consideradas especiarias a noz-moscada, o gengibre, a canela, o cravo e, especialmente a pimenta que permitia a conservação dos alimentos, principalmente da carne.

Nas palavras de Boris Fausto (2007, p. 28), as especiarias eram importantes, pois: O alto valor das especiarias se explica pelos limites das técnicas de conservação existentes na época e também por hábitos alimentares. 

A Europa Ocidental da Idade Média foi “uma civilização carnívora”. 

Grandes quantidades de gado eram abatidas no início do verão, quando as forragens acabavam no campo. A carne era armazenada e precariamente conservada pelo sal, pela defumação ou simplesmente pelo sol. Esses processos, usados também para conservar o peixe, deixavam os alimentos intragáveis, e a pimenta servia para disfarçar o que tinham de desagradável.

Os condimentos representavam também um gosto alimentar da época, como o café, que bem mais tarde passou a ser consumido em grande escala em todo o mundo. Havia mesmo uma espécie de hierarquia em seu consumo: na base, os de cheiro acre, como o alho e a cebola; no alto, os condimentos mais finos, com odores aromáticos, suaves, lembrando o perfume das flores.

Segundo o relato anterior, podemos imaginar a importância das especiarias na sociedade europeia dos séculos XV, XVI e XVII. Em função desta importância, os portugueses investiram muitos recursos, materiais e humanos no processo de abertura de uma rota com o oriente.

Boris Fausto, em seu célebre História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 22. indica que, um dos três fatores pesaram para que o rei português tomasse a decisão de implantar o Governo-Geral, foi o comércio de especiarias com a Índia dava sinais claros de enfraquecimento.

A OCUPAÇÃO DA COSTA AFRICANA E DAS ILHAS DO ATLÂNTICO

O marco inicial da ocupação da costa africana foi a conquista de Ceuta, localizada no norte da África (atual Marrocos), em 1415. 

Essa conquista foi o ponto de partida para a expansão portuguesa. Foi a partir deste entreposto que os portugueses levaram adiante seu projeto de ocupação e conquista da costa africana ocidental das Ilhas da Madeira, Açores, Cabo Verde e São Tomé.

A partir desta conquista a expansão se estendeu a toda a costa. Segundo Boris Fausto (2007, p. 28): A expansão metódica desenvolveu-se ao longo da costa ocidental africana e nas ilhas do Oceano Atlântico. Fruto do mesmo movimento, o contato com esses dois espaços geográficos resultou em situações tão diversas, que vale a pena separá-las em nossa exposição. O reconhecimento da costa ocidental africana não se fez da noite para o dia. Levou 53 anos, da ultrapassagem do Cabo Bojador por Gil Eanes (1434) até a temida passagem do Cabo da Boa Esperança por Bartolomeu Dias (1487). A partir da entrada no Oceano Índico, foi possível a chegada de Vasco da Gama à Índia, a sonhada e ilusória Índia das especiarias. Depois, os portugueses alcançaram a China e o Japão, onde sua influência foi considerável, a ponto de os historiadores japoneses chamarem de “século cristão”, o período compreendido entre 1540 e 1630.

O papel das especiarias nas Grandes Navegações.-A química das especiarias e o seu uso na Idade Média

Piperina, eugenol, miristicina, elemicina, cinamaldeído, safrol, zingerona… são moléculas que hoje até têm certa aplicação, mas nada tão relevante quanto no passado, quando eram tão desejadas e valorizadas a ponto de motivarem grandes investimentos para obtê-las e conflitos para monopolizá-las.

Na verdade, as moléculas em si não eram conhecidas, mas sim o que as continham: as especiarias do oriente, no caso, a pimenta-do-reino, a noz-moscada, a canela, o cravo-da-índia e o gengibre.

Nos dias atuais, essas especiarias parecem pouco mais que uma preferência culinária, a ser adicionada “a gosto”, mas até o século XVII eram consideradas itens de luxo.

O fato de as especiarias serem transportadas do Oriente para a Europa Ocidental por grandes distâncias e através de vários comerciantes intermediários era um dos motivos para os altos preços nos mercados europeus. 

Contudo, quando os europeus acessaram a fonte diretamente por rota marítima (que, apesar de cara, conseguia ser mais barata que a rota anterior repleta de intermediários), os preços das especiarias nos mercados europeus não caíram. Além disso, o comércio de especiarias sempre passou por monopólios, o que também impactava na elevação dos preços.

Porém, mesmo um monopólio não consegue impor o preço abusivo que quiser se não houver uma demanda que aceite pagar pelo valor que está sendo cobrado. A realidade é que as especiarias eram tratadas como um item de luxo e moda gastronômica, consumidas apenas em ocasiões especiais por cidadãos comuns e com maior frequência por nobres e abastados – seria um vexame, um sinal de decadência da família, dar um jantar em que os molhos das carnes não estivessem marcados excessivamente pelos sabores característicos das luxuosas especiarias.

E aquela história de que as especiarias ajudariam a conservar os alimentos? Bom, naquelas épocas em que não existiam nem práticas higiênicas de manuseio, nem embalagens estéreis e muito menos geladeira, essa propriedade realmente era relevante, bem como a possibilidade de mascarar o sabor de alimentos com a deterioração já avançada. 

Entretanto, essas características não foram determinantes para explicar a demanda por elas, afinal, para essas mesmas finalidades, já se utilizavam sal, vinagre, óleos e gorduras, defumação e exposição ao sol. Ou seja, podia-se pagar muito menos se a intenção fosse unicamente a conservação. Um indício de que conservar o alimento seria um fator menos importante do que apreciar o sabor (e principalmente mostrar esse sabor para os outros, ou seja, ostentar) é o fato de haver registros nos manuais de receitas da Europa medieval de que as especiarias eram utilizadas principalmente nos molhos a serem adicionados sobre as carnes durante a refeição. Se a intenção fosse a conservação dos alimentos por dias ou meses, as especiarias seriam adicionadas em abundância durante o cozimento das carnes ou cobrindo-as totalmente (como se faz com o sal), práticas que até poderiam ser realizadas, mas seriam um “desperdício de riquezas” que poucos poderiam arcar.

Mas, de fato, um ponto em comum entre essas moléculas citadas lá no começo é a função que elas exercem de proteger os vegetais nos quais são produzidos, por serem antifúngicas, antibacterianas e algumas serem repelentes e tóxicas para insetos. Quando as especiarias que carregam tais substâncias são aplicadas em alimentos, essas propriedades colaboram para reduzir a atividade de microrganismos e evitar a ação de insetos, o que faz o alimento durar algumas horas ou dias a mais.

Outra função importante que se dava para as especiarias na sociedade europeia medieval era seu uso como medicamento (mesmo quando utilizado em alimentos). Como exemplo de aplicação medicinal, podemos citar o fato de as especiarias serem consideradas quentes (devido à sensação no paladar), o que ajudaria a reestabelecer o equilíbrio de humores (ou fluidos) corporais no caso de uma doença ser associada a um suposto excesso dos humores frios, conforme o conceito vigente na Europa desde a Antiguidade de que a saúde dependia do equilíbrio dos humores. Pelo mesmo motivo, o consumo de especiarias no inverno ajudaria a evitar o desequilíbrio e manter o corpo quente e sadio. 

E era constante, segundo livros de cozinha francesa, a utilização das especiarias em conjunto com ácidos (vinagre e/ou suco de frutas), que se acreditava terem a propriedade de atingir todas as partes do corpo, inclusive as mais estreitas, e assim o ácido conduziria com mais eficiência as propriedades curativas das especiarias para todo o corpo. Especiarias, em especial a pimenta, eram ainda recomendadas como cura para perda do vigor sexual.

Havia também a teoria de que as especiarias ajudariam na digestão devido ao entendimento da época de que a digestão ocorria tal qual o cozimento em um caldeirão, sendo que a suposta fonte de calor desse cozimento interno seria o próprio calor corporal (conceito relacionado à essência da vida), e, nesse contexto, as especiarias, por serem “quentes”, ajudariam nesse cozimento interno do processo de digestão. Não é raro encontrar ainda hoje em dia a crença de que temperos ajudam na digestão e no metabolismo justamente por serem “quentes”.

Para entender essa sensação de “quentura” (apesar de não estarem em temperatura elevada) e o porquê de as especiarias realmente ajudarem na digestão, vejamos os efeitos da piperina (substância ativa da pimenta-do-reino, compondo de 5 a 10% da especiaria seca) no nosso organismo. A molécula da piperina é capaz de acionar tanto os receptores de dor quanto os de calor (os receptores são acionados por fatores tanto físicos, como temperatura e pressão, quanto químicos, como acidez extrema e certas substâncias como a piperina). Por isso, ela causa a sensação de dor e calor e, como consequência disso, o organismo estimula as produções de saliva na nossa boca e de suco gástrico no nosso estômago. 

O balanço final é uma digestão facilitada devido à liberação aumentada das enzimas digestivas presentes nessas secreções. Existe ainda uma relação entre moléculas picantes e a produção de endorfinas, que são hormônios opioides que causam alívio, bem-estar e euforia e são produzidos pelo nosso corpo em resposta à dor, à extenuação física e, nesse caso, à “agressão” que a substância picante causa nos terminais nervosos da língua. 

Outra molécula que também causa esse efeito é a capsaicina, que é o composto ativo de outro grupo de pimentas que inclui a malagueta e a dedo-de-moça.

Uma das utilizações tradicionais do óleo essencial do cravo-da-índia é a aplicação bucal para alívio de dores de dente. Essa eficácia se deve às propriedades anestésicas do eugenol, que compõe 60 a 90 % do óleo extraído do cravo-da-índia e está presente também, em menor escala, na noz-moscada e canela. Na planta do cravo-da-índia, essa substância tem a importância de atrair certos insetos polinizadores para suas flores.

NOZ-MOSCADA

A noz-moscada possui efeitos psicoativos, podendo causar alucinações e convulsões se ingerido em grandes quantidades. As responsáveis por essa neurotoxicidade são a miristicina e a elemicina, as principais substâncias que caracterizam a noz-moscada (compõem cerca de 1% e 0,3% da noz bruta, respectivamente). Os primeiros sintomas no sistema nervoso podem ocorrer com um consumo de 1 a 2 mg de noz-moscada por kg da pessoa (significa 0,075 a 0,150 g de noz-moscada ingerida por uma pessoa de 75 kg), sendo considerado overdose o consumo de 5 g da noz. 

No século XIX, acreditava-se que a noz-moscada possuía propriedades abortivas, tanto que se registrou grande número de intoxicação em mulheres, embora, hoje, é conhecido que a noz-moscada e suas substâncias são seguras para gravidez, tendo efeito apenas no sistema nervoso da mãe. 

No século 14, durante a pandemia da peste negra na Europa, foi comum carregar noz-moscada como amuleto de proteção contra a doença. Hoje é fácil perceber que a correlação entre a peste e a noz faz sentido, uma vez que temos o conhecimento de que o vetor da doença eram pulgas e de que a miristicina e a elemicina são eficientes repelentes de insetos.

CANELA

O aroma característico da canela é determinado pela substância cinamaldeído, que compõe de 50 a 90% do óleo essencial extraído da casca interna da planta (que é a parte que consumimos da canela). Já o aroma adocicado tanto da canela quanto da noz-moscada possui colaboração da substância safrol. No rizoma do gengibre encontra-se a substância zingerona, que caracteriza o sabor pungente dessa especiaria e é reconhecida atualmente como antioxidante (por captar radicais livre para si) e ativo contra certas bactérias.

As moléculas de piperina, eugenol, elemicina, miristicina, cinamaldeído, safrol e zingerona (modelos feito no aplicativo Edumol). Observa-se estruturas químicas similares nelas, o que revela que os mecanismos bioquímicos de produção dessas moléculas são similares nas diferentes plantas. Ainda assim, apesar de tantas semelhanças, a percepção no paladar e olfato são bastante distintos, tendo cada molécula seu odor e sabor muito bem específico.

As propriedades antifúngicas e antibacterianas das especiarias ainda possibilitam que, quando secas, elas durem por muitos meses, o que foi essencial para que suportassem, sem serem deterioradas nem tomadas por mofos e pragas, as longas viagens de mais de 10.000 km do oriente da Ásia até o ocidente da Europa. No próximo texto, veremos como se davam o transporte e o comércio desses itens luxuosos e definidores de status social durante o período que chamamos de Idade Média.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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LINARD, Cybele F. B. M. Estudo do Efeito Antinoceptivo do Eugenol. Fortaleza, 2008

MUNRO, John. The Consumption of Spices and Their Costs in Late-Medieval and Early-Modern Europe: Luxuries or Necessities?. University of Toronto

PINTO, Eugénia; VALE-SILVA, Luís; CAVALEIRO, Carlos; SALGUEIRO, Lígia. Antifungal activity of the clove essential oil from Syzygium aromaticum on CandidaAspergillus and dermatophyte species. Porto e Coimbra, Portugal, 2009

RODRIGUES, Ronaldo da Silva; DA SILVA, Roberto Ribeiro. A História sob o Olhar da Química: As Especiarias e sua Importância na Alimentação Humana. Brasília, 2009. Publicado na Química Nova Escola, Vol. 32, N° 2, 2010

SAVAGE, Jessica. The Index of Medieval Art – “Winter Spices in the Middle Ages”, 2017

SHIVA RANI, S.K.; SAXENA, Neeti; UDAYSREE. Antimicrobial Activity of Black Pepper (Piper nigrum L.). Hyderabad , Índia, 2013


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