A Relação da Gastronomia e os Produtos do terroir na Contemporaneidade

No Brasil, há uma inclinação cada vez mais notável entre os chefs de reputação internacional em aliar a gastronomia e o uso de elementos simbólicos e culturais referentes a preparos e ingredientes emblemáticos da cultura brasileira. 



Estudo recente do Centro de estudos Avançados em Economia Aplicada - CEPEA (2014) apontou o crescente número de restaurantes de gastronomia contemporânea que trabalham diretamente com pequenos produtores a fim de garantir a qualidade e exclusividade de hortifrúti. Entre esses chefs, há consonância no discurso de que é preciso ter respeito pelos ingredientes e estabelecer laços com os produtores tanto para garantir a qualidade do produto, quanto para valorizar o produtor. 




















O mesmo estudo assinalou a gastronomia como um novo mercado em ascensão para a agricultura familiar. 
Estas novas demandas por produtos agroalimentares diferenciados parecem estar reconfigurando o espaço da agricultura familiar. Atualmente, para além de sua potencialidade de produção de alimentos básicos, a agricultura familiar tem se destacado pela produção de bens diferenciados como, por exemplo, 80% da produção de orgânicos e agroextrativistas (IBGE 2006). 
O que se percebe é que há uma segmentação cada vez maior dos mercados da agricultura familiar que oferece os produtos não necessariamente mais básicos, mas com valores agregados e características singulares, ocupando um espaço ainda pouco estudado que é o da gastronomia contemporânea. 
Entendemos que a gastronomia é um espaço social que possibilita tanto o desenvolvimento de relações entre chefs, produtores e consumidores, quanto de práticas culturais e identitárias, tendo em vista o alto grau de entendimento simbólico dos alimentos neste contexto. 
Argumentamos que o chef é um ator-chave neste processo, uma vez que ele é um expert que detém informações e, por isso, é dotado de uma “autoridade simbólica” (Karpik 2010), ele se torna um formador de opinião. 



O uso de produtos locais na gastronomia: o olhar dos chefs e dos produtores

















Uma das questões polêmicas em relação ao uso de produtos da agricultura familiar ou outros produtores/fornecedores para a gastronomia que se assente no uso destes ingredientes com identidade refere-se à própria definição desta origem. Não é raro encontrar apelos de marketing e divulgação que fazem explícita referência ao caráter local destes produtos.

Na verdade, a utilização da noção de “produto local” passa a referir uma miríade de produtos considerados de qualidade diferenciada que remete a características sensoriais (sabor), de saúde (nutritivos) e mesmo simbólicas e culturais, quando o local remete à origem rural, à tradição ou a produtores com identidades étnicas, como os indígenas ou agricultores descendentes de alguma etnia. 

O local passa a ser um atributo dos produtos e passa a identificar uma forma de fazer gastronomia, aquela que usa “produtos locais” como seus ingredientes. Apesar de ser um dos traços e dimensões mais explorados desta nova gastronomia, a referência ao local como uma adjetivação e mesmo um certificado de distinção gerou problemas e controvérsias. 

Em primeiro lugar, a referência ao “produto local” passou a ser acompanhada de expressões sinônimas como “produto de origem” ou “produto tradicional” entre outros, o que não tardou a gerar uma enorme ubiquidade e imprecisão. Além disso, um segundo aspecto se refere à dificuldade de distinguir a origem material dos produtos com a forma de obtenção dos mesmos, relacionados a certos processos produtivos ou modos de fazer. Por fim, em terceiro lugar, o problema em relação ao modo de preparo e cozimento, o que relaciona o produto ao papel de quem manipula os ingredientes e cria o prato, que são os chefs de cozinha. 
 Há uma considerável literatura que trata destas questões.

O local deve ser entendido como aproximação sócio espacial, fazendo com que as relações entre produtores e consumidores tenham um papel essencial no desenvolvimento de iniciativas de valorização e formação de mercados para esses produtos. 
Segundo Dunne et al. (2011), os consumidores definem produto local tanto em relação à proximidade, quanto à existência de um componente relacional ou de relações pessoais imbricadas com os produtores na compra do produto local. 
Para Trivette (2015), os vários autores que discutem o local concordam que se trata de uma definição que permite articular a proximidade entre o produtor e o consumidor. Uma contribuição importante em relação à polêmica da escala local dos produtos foi feita por Born e Purcell (2006) que chamaram a atenção para as “armadilhas do local” (local trap). 
Os autores advertem para os riscos de se essencializar o local e associar esta escala espacial às noções de sustentabilidade, justiça social, tradição e qualidade dos alimentos. 
Ao assim proceder, os autores afirmam que se está atribuindo ao local uma dimensão inerente que não corresponde à realidade, pois, o fato de um produto ser local não significa que seja livre de ocasionar danos ambientais, contribuir para asseverar desigualdades sociais ou, até mesmo, ser inadequado do ponto de vista sanitário e da saúde. 
A armadilha do local consiste em achar que só porque algo é local é bom ou sustentável. 

Neste sentido, consideramos apropriado utilizar uma outra referência que permita fugir dos problemas e armadilhas do local. Ao observar a imprecisão conceitual de questões referentes à qualidade, Karpik (2007) criou e desenvolveu a teoria da “economia da singularidade”. 
Para o autor, a singularidade está vinculada à formação de mercados em que atores possam perceber o único e julgar as qualidades de um bem singular, uma vez que este é dotado de subjetividades e não oferece variáveis objetivas que possam ser comparadas, tornando suas características incomensuráveis (Karpik, 2007). 

Na nossa opinião, consideramos apropriado utilizar a noção de “produtos singulares” para nos referir aos produtos locais, oriundos de cadeias curtas, ou que possuem qualidades e singularidades. 
Neste sentido, consideramos que o produto singular é uma noção que abarca as seguintes referências e dimensões, a saber, trajetória do produto; origem/ local onde é produzido; relação/ conhecimento do produtor; forma como e local onde é apresentado/ consumido; qualidade(s) do produto; sabor/frescor/sazonalidade; pequena escala; produção tradicional/artesanal/orgânica. 
Por abarcar múltiplas dimensões, que extrapolam o local e a qualidade, entende-se que a noção de produtos singulares dá conta da complexa teia de relações, julgamentos, atores e produtos que estão envolvidos na sua produção e consumo.

Ingredientes singulares à la carte : implicações do uso de produtos diferenciados na gastronomia contemporânea

Tainá Zaneti and Sérgio Schneider

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