JÁ OUVIU FALAR NOS "PÃES-DE-INDIO", SABIA QUE ELES JÁ CONSUMIAM BIOMASSA VEGETAL?

A elaboração de tecnologia de armazenamento de alimentos pelos povos indígenas da Amazônia é um tema descrito desde os relatos dos primeiros cronistas europeus na região. Frequentemente são encontrados, de maneira fortuita ou em sítios arqueológicos, artefatos culturais denominados ‘pães-de-índio’, presentes em diversos ambientes e bacias hidrográficas e relatados pelos moradores locais como um composto de plantas processadas e enterradas, comestíveis mesmo depois de anos enterrados. 

A partir da década de 1980, porém, uma série de trabalhos botânicos e micológicos vem classificando estes supostos pães como um fungo do gênero Pachyma Fr., Polyporus indigenus. 

Neste artigo de Gilton Mendes dos Santos, Daniel Cangussu, Laura Pereira Furquim, Jennifer Watling e Eduardo Góes Neves, Pão-de-índio e massas vegetais: elos entre passado e presente na Amazônia indígena, os pesquisadores apresentam evidências arqueológicas, microbotânicas e etnográficas que mostram que pães-de-índio foram compostos preparados pelo processamento de espécies frutíferas e tuberosas, amplamente descritas pelos povos indígenas. 

Foram apresentados os resultados da primeira tentativa de extrair grãos de amido de dois desses artefatos, os quais testaram positivamente para grãos de amido de milho, pimenta, batata-mairá e outras espécies de vegetais.

De acordo com esses relatos, as nozes e sementes de palmeiras e castanheiras eram maceradas em pilões; os frutos poderiam ser simplesmente raspados, amolecidos em água ou cozidos; as raízes e os tubérculos eram ralados em instrumentos fabricados por meio de pequenas pedras inseridas em madeira, em raízes de palmeiras como a paxiubinha (Socratea exorrhiza) ou de casca de algumas árvores, como o uacu (Van Den Bel, 2015; Van Velthem, 2012). As sementes e tuberosas tóxicas, além de raladas e maceradas, recebiam um tratamento especial para a retirada da toxidez de suas massas, a exemplo da batata-mairá (Casimirella sp.), do louro-abacate (Pleurothyrium cuneifolium), da faveira-da-várzea (Eperua leucantha) e do cunuri (Hevea spruceana) (H. T. Tuyuka, comunicação pessoal, 26 maio 2018).

Alguns autores referem-se aos pães-de-índio como “um preparo alimentício feito por mulheres indígenas da etnia Nukini, da família linguística Pano, localizada no estado amazônico do Acre. 

Esse alimento teria sido produzido à base de milho e macaxeira macerados e revestidos com o látex da seringueira (Hevea brasiliensis)” (Santos et al., 2013, p. 1). A partir de uma pesquisa etnográfica e histórica entre os Katukina, na bacia do Juruá, Góes (2007) argumenta que o pão-de-índio é a prova cabal de uma estratégia de resistência e ocupação territorial adotada pelos diferentes grupos da região. 

Os grupos indígenas do noroeste amazônico (alto rio Negro) exploram e exploravam vários frutos para a elaboração de biomassas, que são acondicionadas em pequenos paneiros (kaisariró) e enterradas dentro de suas casas coletivas ou no quintal. 

Quando produzida em grande quantidade, a matéria-prima era armazenada provisoriamente no local da coleta e depois transportada para a aldeia. 

Essa prática está presente na memória de muitos indígenas, porém é pouco utilizada atualmente. 

A massa era utilizada como reserva alimentar ao longo do ano, sendo consumida no varejo – adicionada ao caldo de peixe, ao mingau, à farinha – ou empregada na elaboração de bebidas (caxiri) servidas no dia a dia ou durante as cerimônias rituais (póose) (Maia, 2018).

Entre as plantas empregadas na produção de biomassas nessa região, destacam-se o japurá (Erisma japura) – bati, em língua Tukano –, cujo fruto era cozido e o caroço era macerado no pilão, sendo sua massa muito utilizada para engrossar o caldo de peixe; e o cunuri (Hevea spruceana) – wahpu –, cujas sementes maduras eram raladas ou cozidas e banhadas na correnteza dos rios para a completa retirada da toxidez.

Processada com as próprias mãos, sua massa era, em seguida, revestida com folhas e acondicionada no kaisariró, antes de ser armazenada no solo. 

A biomassa do cunuri era utilizada para ‘temperar’ a manicuera (suco cozido da mandioca amarga) e suas sementes in natura também podiam ser raladas e cozidas, e no seu caldo podia-se cozinhar o peixe.

Do fruto do umari (Poraqueiba sericea) se utilizava tanto a polpa quanto a amêndoa. A polpa do fruto maduro era raspada e deixada de molho na água do rio para o amolecimento de sua amêndoa, que seria retirada cerca de duas semanas depois e macerada no pilão. 

A massa obtida era enxugada no tipiti e peneirada. Sua biomassa, depois de acondicionada e armazenada no solo, era utilizada para temperar a goma do beiju, engrossar o mingau ou o caldo de peixe ou simplesmente era dissolvida no chibé (bebida clássica da Amazônia feita à base de farinha de mandioca e água).

Depois de enterrada, a massa de uacu poderia ser usada para o preparo de mingaus e também para temperar a manicuera.

Entre as palmeiras, há informações sobre o uso da pupunha (Bactris gasipaes) e do buriti (Mauritia flexuosa). Dos frutos da pupunha, depois de cozidos, se retirava a massa, que era enterrada exclusivamente para a fabricação do caxiri, bebida fermentada muito utilizada nos momentos de festa ou durante os pequenos encontros comunitários. Da polpa fresca se fabricava a farinha.

O buriti, por sua vez, quando coletado em grandes quantidades era depositado numa canoa dentro d’água para o amolecimento da sua polpa. A biomassa, depois de armazenada no solo, servia para o preparo de mingaus e chibés.

Na bacia do alto rio Solimões, na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, comunidades Tikuna praticam, ainda hoje, o enterramento de massa de ‘yuca’, a mandioca mansa (Manihot esculenta), próximo de suas casas ou de suas roças. Depois de removerem a matéria orgânica do solo, abrem um buraco (redondo ou quadrado) com profundidade superior a 30 cm, revestindo-o com folhas de MarantaceaeHeliconiaceae ou Musaceae, e cobrindo-o com terra. 

Aí são depositadas grandes quantidades de massa, utilizada por vários meses ao longo do ano para a produção de farinha, base de diferentes pratos da culinária nativa (Acosta Muñoz et al., 2005).

No passado, além da mandioca, os Tikuna também armazenavam no solo as massas de inhame (Dioscorea trifida) e de pupunha (A. S. Tikuna, comunicação pessoal, 5 set. 2019).

As massas vegetais extraídas de inúmeros frutos silvestres e de outras plantas cultivadas, a exemplo das regiões e dos grupos aqui mencionados, constituíram-se numa valiosa fonte alimentar, consumidas cotidianamente como parte dos principais pratos e receitas, mas também armazenadas para a elaboração de alimentos rituais em eventos festivos, entre os quais destaca-se o caxiri. 

São também um campo privilegiado para se observar o desenvolvimento de tecnologias de produção de alimento, uma vez que muitas delas envolvem a retirada de toxinas e venenos, e todas envolvem o desenvolvimento de tecnologias de processamento e conservação adequadas às características das plantas.


PÃO-DE-ÍNDIO: VESTÍGIO DE MEMÓRIAS ENTERRADAS

Aqui, definimos pão-de-índio como uma modalidade especial da prática de processamento de massas vegetais, feito a partir de um combinado de plantas processadas através de diferentes tecnologias, e armazenado no solo ao ser enterrado. Uma das primeiras descrições sobre o pão-de-índio foi feita por Mário Ypiranga Monteiro, que o reconhece, em língua Geral, como ‘miapé’, e o classifica como ‘pão-de-guerra’, descrevendo-o como “uma massa de mandioca misturada com massa de milho. . . . Envolvido em fôlhas e entaniçado, é enterrado, guardando-se de reserva para os dias ruins” (Monteiro, 1963, p. 61).

Segundo relatos de indígenas e ribeirinhos do sul do Amazonas, pães-de-índio são massas compactadas, aglomerados maciços produzidos a partir do processamento de batatas, carás, polpas de frutas, sementes e castanhas disponíveis na floresta, utilizados como reserva alimentar em tempos de escassez ou consumidos em viagens, caçadas ou grandes varações. 

Há relatos de sua presença em toda a bacia amazônica, ao passo que estudos sobre sua distribuição, origem e composição muito têm a revelar sobre a história dos povos nativos da região.


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