Bahia, galinha e festas


É com imensa saudade de coisas e pessoas que vamos falar da galinha do Manoel, a melhor comida de toda São Salvador. Até hoje, ninguém pôde fazer ideia de como aquelas maravilhas são preparadas, e quem cometeu a ingenuidade de pedir receitas, voltou ignorando-a mais do que nunca, tão hábil é o despistamento do proprietário desse bar triste, onde nada é especialmente romântico, nada foi projetado, mas onde aconteceu tanta coisa da Bahia. 

Vem  uma travessa imensa e seis a oito galinhas nadando em molho gordo e escuro. A padaria ao lado , cúmplice desse misterioso assado, mandou o pão estalante e quentinho que, daqui a pouco, estará enxugando a graxa gostosa de um prato que precisa ser batizado. Com Odorico Tavares, num domingo de não fazer nada, resolvemos chamá-la de “Galinha ao Mobiloil 40” e foi assim que a apresentamos a Anibal Machado, Rubem Braga e à moça Tônia Carrero, que vinham da Europa e ficaram conosco (Anisio Teixeira também  estava) durante dois dias, enquanto a estiva, preguiçosa e politizada, prendia o Poconé no cais. Se Deus ainda me quiser na Bahia, nem que seja por umas horas, eu quero ir buscar uma porção de saudades naquele canto da Barra.

Quero, também, pagar os 300 mil-réis que eu devo ao Manoel - única fatura baiana que não liquidei, quando vim de lá, em abril de 1948. Se alguém está de viagem marcada para esses dias em Salvador, encontrará duas festas - a da Aleluia e a do Espírito Santo, no domingo de Pentecostes. De passagem pela Barra, será um crime perder a galinha do Manoel, feita sem dendê, sem pimenta, sem nada da tradicional comida afro-baiana, mas boiando naquele molho, cuja receita ninguém jamais obterá.

A rua e o número eu nem me lembro. Mas fica ali defronte do mar, perto do farol, atrás do edifício Oceania, quase na esquina onde se cruzam e dobram os bondes da Barra e Barra Avenida. É só perguntar que todo mundo ensina.

Nenhuma cidade do mundo tem tanta festa de rua. E todas elas pertencem ao povo, à gente mais tipicamente baiana, a ponto de manter sempre como espectador: jornalista, gente de dinheiro, poeta ou turista que, nelas, queiram tomar parte.

É necessário ser pobre, baiano e, se possível, negro, para conquistar o posto de personagem numa procissão do Bom Jesus dos Navegantes ou na imensa noite campal da Senhora Sant’Ana, no Rio Vermelho. Contente-se em ver os outros - e já será uma graça - se lhe vier a felicidade de acompanhar, de janeiro a janeiro, as festas de rua da Bahia. Farte-se do espetáculo dos capoeiristas das rodas sambeiras dos reisados. Abuse daquelas generosas melancias de Conquista e não se dê ao luxo de evitar que o caldo, escorrendo, lhe molhe o peito e a camisa. Mas não pense em ser mais do que um espectador, porque a festa de Iansã (Santa Bárbara), na Baixa dos Sapateiros, é dos pais de santo, das “baianas”, dos negros do cais e da praça Cairu. 

A Conceição da Praia tem muito o que olhar. São centenas de barracas , em volta do Mercado Modelo , com os nomes mais líricos do mundo, vendendo comida de azeite. São tabuleiros enormes de abacaxis, melancias, pinhas e umbus.

É a zoada dos berimbaus e dos chocalhos, o canto do tirador, enquanto os capoeiristas fazem letra no chão. 

O cheiro da cachaça, no suor e no hálito dos sambeiros, no vento e na cantiga da  roda de samba. A igreja, bonita que só ela, toda iluminada, onde se reza a novena para louvar Nossa Senhora da Conceição- louvar , somente, porque o povo está feliz e não pede nada.

Gente pacata, a da Bahia. A incomparável doçura do povo rende os nove dias da Conceição a Praia, sem uma cena de sangue, sem uma briga de sopapo. Discutir, discutem, porque quem é baiano tem que bater boca a vida inteira. Mas nada de estragar a roupa e a pele do outro. No Recife, em festas mais humildes (só de barraquinhas de prendas e carrosséis) , a confusão era tanta e depois de certa hora, exército, polícia e povo se entendiam tão pouco, que o jeito era o tiroteio. Feliz de quem pode estar na Bahia, a 8 de dezembro, e assistir a uma Conceição da Praia. Noite e dia, o zabumba comendo, o povo cantando , dançando e, como anotou o samba de Caymmi: “O sol está queimando mas ninguém da fé”.

Em janeiro é a festa do Bonfim. Gente, comida e alegria são as mesmas. 

O lugar, porém, é mais bonito e o ritual tem aquela nota aguda e chocante da lavagem da igreja, quando o povo canta e dança no templo, derramando extrato, loção e água no mosaico. O arcebispo-hoje, cardeal - muitas vezes já conseguiu proibir essa cerimônia, apontando-a como profanação à casa de Deus. Mas são tantos os protestos que se vê na obrigação de ceder sempre. As festas de rua da Bahia são uma longa história a contar.


Antônio Maria foi um dos mais prolíficos cronistas brasileiros do século 20. Mas ele permaneceu um autor inédito em livro enquanto esteve vivo. Agora a editora Todavia reúne na antologia Vento vadio, 185 textos do jornalista pernambucano, a grande maioria inédita.

Concebida e organizada pelo escritor e pesquisador Guilherme Tauil, a antologia ajuda a colocar Antônio Maria no panteão dos clássicos da crônica nacional, ao lado de Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, entre outros grandes nomes.

Radialista, compositor de inúmeros clássicos da música popular, comentarista esportivo e cronista, Maria foi uma das figuras mais atuantes na cultura brasileira das décadas de 1950 e 1960. Além disso, era um boêmio incorrigível.

Entre crônicas sobre a noite carioca, os amigos e as agruras de amores reais e impossíveis, descortina-se um outro Maria, pouco entrevisto nas seleções produzidas depois de sua morte: sua origem numa rica família pernambucana que perdeu tudo com a inevitável falência dos engenhos e o preconceito com nordestinos naquele Rio de Janeiro, então capital política e cultural do país.

Matéria subjacente às crônicas, como apresenta Tauil em seu texto de introdução, foi também a questão racial. Único afrodescendente entre os cronistas mais célebres da época, era chamado pejorativamente de “mulato” pelos seus desafetos.


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