AS MERENDEIRAS E SEU PAPEL CENTRAL NO CENÁRIO EDUCACIONAL BRASILEIRO

POR ALESSANDRA DANTAS

A escola em que trabalha é a que tem o maior número de crianças no município de Capitão Leônidas Marques, no Paraná, a cerca de 520 km da capital do estado. Pouco tempo depois, as profissionais já iniciam a preparação das refeições, levando a carne para as panelas, ingrediente de cozimento mais demorado.

Às 9h30, o lanche começa a ser servido. Elisa faz uma pausa às 11h, retorna às 13h15 e segue cozinhando até o fim da tarde. Ela é quem faz os relatórios mensais sobre a quantidade de alimentos utilizados na escola e entrega à nutricionista responsável, além de fazer os pedidos para os produtores da agricultura familiar. A unidade de ensino fundamental atende uma média de 350 crianças.

As refeições nas escolas públicas do país são garantidas pela lei 11.947/2009, que regulamenta o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). São 40 milhões de estudantes incluídos na legislação, – desde a creche à Educação de Jovens e Adultos (EJA) – com financiamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), por meio do qual a União repassa dinheiro aos estados e municípios para a compra de gêneros alimentícios.

A história da profissão de merendeira no país acompanha o início da organização da merenda nas escolas. O PNAE tem suas origens nos anos 50, quando foi elaborado um plano nacional chamado Conjuntura Alimentar e o Problema da Nutrição no Brasil. É nele que, pela primeira vez, se estruturou um programa de merenda escolar em âmbito nacional, sob a responsabilidade pública.

Desse plano viria a Campanha de Merenda Escolar (CME), em 1955. A legislação continuou evoluindo ao longo do tempo até a estruturação do PNAE tal como o conhecemos hoje. A presença das merendeiras foi aumentando durante esse processo, principalmente no final da década de 70, quando os alimentos passaram a ser enviados para as escolas in natura, precisando de preparo e manipulação. Antes disso, as refeições vinham previamente prontas, sendo necessário apenas organizá-las no prato e servi-las.

“Sabemos que, hoje, 20 milhões de crianças têm na merenda escolar a sua única refeição do dia e isso, para nós, é muito chocante”, ressalta o reitor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que desenvolve o projeto Fortalecimento da Agricultura Familiar para a Política do PNAE, Roque Albuquerque.

De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), com dados coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, 33 milhões de brasileiros estavam em situação de fome, dentro de um grupo de 152 milhões que enfrentavam a insegurança alimentar em algum nível.

“A fome é a forma mais grave da insegurança alimentar, ou seja, a pessoa está com privação de alimentos. Estar livre da fome é um direito fundamental previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que é de 1966 e o Brasil ratificou em 1992.”

“O poder público tem a obrigação, e não a faculdade, de fazer política pública emergencial para que as pessoas estejam livres da fome. Isso é um direito humano fundamental. Então, as pessoas que passam fome têm um direito violado de forma gravíssima pelo Estado brasileiro.”

Quem argumenta isso é a advogada, doutora em Sociologia Jurídica em Instituições Políticas pela Universidade de Zaragoza (Espanha), diretora de articulação da Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (Fian Brasil) e integrante da Rede Penssan, Míriam Balestro.

O Brasil parecia ter encontrado uma maneira de enfrentar o problema da insegurança alimentar grave, tanto que saiu do chamado Mapa da Fome em 2014, voltando em 2018 e agora está com um número de pessoas passando fome semelhante ao visto nos anos 90.

O reflexo desse contexto chega às escolas. As merendeiras, além de serem as responsáveis pela preparação da alimentação que muitas vezes é a única refeição de milhões de crianças, são as profissionais que têm mais proximidade com os alunos e conseguem identificar a fome pelo comportamento deles.

AS MERENDEIRAS BRASILEIRAS E SEU PAPEL NO COMBATE À FOME

O Brasil tem mais de 300 mil merendeiras (há também homens, mas elas são a maioria) atuando nas escolas públicas, de acordo com a Unilab, a partir da compilação de dados do FNDE. A atuação delas é fundamental não só na questão da saúde e alimentação, mas também para garantir o direito à educação.

“Recebendo o alimento de qualidade, ela vai fazer esse preparo e vai também estar trabalhando na questão da distribuição das porções para as crianças. A valorização das merendeiras tem que partir dos estados e dos municípios. Eles têm que fazer concurso público para as merendeiras.”

“Elas ocupam uma figura central na realização do direito humano à alimentação adequada dos estudantes da rede pública brasileira. E há uma transversalidade enorme do direito à alimentação com o direito à educação e com o direito à saúde. Criança com fome não aprende direito”, defende a advogada Míriam Balestro.

A merendeira Maria de Lourdes dos Santos trabalha em Lucena, município com população estimada em 13,3 mil habitantes (IBGE, 2021) na Região Metropolitana de João Pessoa, na Paraíba. Ela conta que identifica quando os estudantes não se alimentam em casa. A cozinheira percebe quando a criança está muito séria ou fica feliz demais ao ver a refeição e quer repetir. Maria de Lourdes, então, pergunta se eles comeram naquele dia. 

“Tem um caso de uma adolescente que chegava sempre triste e vinha com muita fome depois que tinha terminado o recreio. Perguntei porque ela não tinha comido. ‘Minha mãe trabalha de noite e chega muito tarde e eu fico esperando ela, então eu dormi até meio dia e deu a hora de vir pra escola’. Peguei o nome e a série e passei para supervisora da tarde e disse que a menina estava vindo sem comida e pedi para avisar aos professores para, toda vez que ela chegasse, perguntarem se comeu e, se a resposta fosse não, para mandarem ela para a cantina”, explica. 

Brasil voltou como um projeto político. Não é à toa que um dos primeiros atos do atual executivo foi o desmonte do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea)”, relembra Míriam Balestro.

Pelo Conselho, passavam importantes decisões não só relativas à distribuição de alimentos, mas à qualidade deles.

“Ele era um órgão indutor de políticas públicas para o governo federal tanto voltadas à fome como voltadas à questão da agricultura, sobre a questão do que ingerimos, a questão dos agrotóxicos, tudo isso passava pelo Consea. O desmonte deste conselho eu diria que abriu as portas para todos os desmontes que vieram depois. Porque ele era o principal órgão de articulação das políticas públicas em nível nacional”, delineia Balestro. 

Soma-se a esse cenário, uma destinação de verbas insuficiente para alimentação escolar de muitos municípios e o montante de R$ 1,7 bilhão parado nas prefeituras, como mostrou reportagem publicada pelo UOL. As maiores somas se referem aos estados de São Paulo (R$ 472,99 milhões), Rio de Janeiro (R$ 118,41 milhões) e Paraná (R$ 114,13 milhões).

Pelas regras do PNAE, para utilizar os recursos, os municípios precisam entrar com uma contrapartida financeira, além de cumprir requisitos como apresentar cardápio equilibrado nutricionalmente que mantenha a boa qualidade na alimentação dos alunos e aplicar ao menos 30% das verbas em produtos da agricultura familiar.

Falando de Palmas, a merendeira Arlene Ferreira dos Santos relata uma queda na qualidade da alimentação escolar.

“A gente está percebendo que está diminuindo a quantidade de dinheiro que vem e, decorrente disso, a qualidade da alimentação das crianças também é prejudicada. Então, isso influencia muito na questão do aluno apreciar uma boa alimentação na escola”, expõe.

Sabe-se que a qualidade da alimentação escolar afeta diretamente meninos e meninas de famílias em situação de vulnerabilidade. Na primeira infância, que se estende até os 6 anos, o suprimento das necessidades nutricionais está fortemente atrelado ao desenvolvimento global do indivíduo. 

O valor repassado pelo governo federal, por meio do PNAE por dia para a alimentação de cada aluno da pré-escola neste ano é de R$ 0,53. Para cada estudante dos ensinos fundamental e médio, o recurso é ainda menor, R$ 0,36. O orçamento total para 2022 foi de R$ 3,96 bilhões, apresentando uma redução em relação ao ano passado, quando o montante foi de R$ 4,06 bilhões. 

A diretora de articulação da Fian Brasil, Míriam Balestro, alerta que, além dos Conselhos de Alimentação Escolar em nível municipal e estadual, “órgãos públicos como os tribunais de contas dos estados e da União, junto com o Ministério Público e a Defensoria Pública, também têm a missão de zelar pelo correto funcionamento do PNAE e pela aplicação da legislação. Uma coisa muito importante – e eu digo isso porque eu fui promotora de justiça – é investigar se as verbas que chegam nos municípios e nos estados estão sendo aplicadas em sua totalidade e se os estados e os municípios estão dando suas contrapartidas referentes a isso”.

REALITY SHOW  “MERENDEIRAS DO BRASIL”

Uma iniciativa de repercussão no intuito de reconhecer o papel fundamental dessas profissionais foi o concurso “Merendeiras do Brasil”.  A primeira edição, realizada neste ano, reuniu merendeiras de 15 estados brasileiros.

Roque Albuquerque, primeiro reitor cigano de uma universidade pública brasileira, explicou que a ideia nasceu na Unilab e foi viabilizada por uma parceria com o FNDE. A ideia inicial, que ainda se mantém viva para as próximas edições, era ter uma representante de cada estado. Como não foi possível, elas foram selecionadas de municípios que foram escolhidos pelos critérios do PNAE. Um deles é destinar pelo menos 30% dos recursos do Fundo para a agricultura familiar.

A cidade de Capitão Leônidas Marques foi considerada a que melhor atendeu ao Programa Nacional de Alimentação Escolar no Paraná. De acordo com a merendeira Elisa Szekut, o município investe 100% da verba enviada nesses agricultores, oferecendo uma alimentação de qualidade.

“Temos mais de 300 mil merendeiras no Brasil e muitas delas também têm na merenda escolar a sua única refeição. Nós queremos mudar essa política. Queremos criar uma política de estado. Demos esse passo inicial que foi cercar essas nossas rainhas merendeiras de glamour para que as outras fossem encorajadas e o Estado olhasse para a merenda escolar como uma grande oportunidade porque ela é, sim, parte essencial da educação”, argumenta Albuquerque.

A competição levou em conta vários fatores da realidade do dia a dia da alimentação nas escolas brasileiras, como cozinhar evitando o desperdício, usando pouco sal, mas entregando pratos saborosos. As preparações tinham que passar pelo crivo de três jurados: uma cozinheira, uma nutricionista e um chef de cozinha.

As gravações foram feitas em oito dias de março, em São Paulo, com veiculação dos oito episódios em junho pela Rede TV. A paranaense Elisa foi a vencedora, com destaque para o “delicianobis”, receita feita à base de mandioca, carne moída e alguns legumes com creme de milho, como um escondidinho de mandioca, além do ora pro nobis.

“As pessoas perguntavam do resultado e eu não podia contar, falava para todos assistirem ao programa. Cidade pequena, o povo comemorava muito. E aí, no domingo em que fiquei campeã, teve carreata aqui na minha cidade, eu em cima do carro do corpo de bombeiros. E com o prefeito, a nutricionista e a secretária municipal de educação. A minha família também. A final foi maravilhosa!”, comemora.

A campeã do reality recebeu mais de 300 cartas dos alunos da escola onde trabalha. Ela será jurada das próximas edições do concurso. Rosani Justin, de Itati (RS), foi a terceira colocada e destacou como a experiência foi enriquecedora.

“A gente aprendeu muito com o FNDE, com o PNAE, foi uma experiência que a gente trouxe para vida inteira. Podemos morrer com 200 anos que nunca vamos esquecer o que vivemos. Aprendemos a visualizar as coisas de outro ângulo, aprendemos muito uma com a outra. Foram 15 merendeiras, cada uma com seu sotaque, com seu tempero, e tenho certeza que cada uma levou um pouquinho das outras para sua cidade, para o seu estado”, resume. 

Rosani Justin, 57, veio de Itati, a cerca de 160 km da capital do Rio Grande do Sul, para conquistar o 3º lugar no reality. Foto: Acervo pessoal

Maria de Lourdes foi a vice-campeã e apresentou um bobó de tilápia com arroz de brócolis. “Eu achei muito importante um programa mostrar uma classe de trabalhadoras que geralmente não é reconhecida. A gente mostrou nosso trabalho, as dificuldades que passamos nas escolas, como o tempo curto para fazer uma refeição, falta de energia, alguns alimentos que podem faltar e a gente tem que dar um jeito de fazer a merenda independente da situação”, detalha. 

CONECTANDO AGRICULTORES FAMILIARES, COOPERATIVAS E PREFEITURAS

O reality show citado foi desenvolvido no âmbito do projeto “Fortalecimento da Agricultura Familiar para a Política do Programa Nacional de Alimentação Escolar”, uma parceria da Unilab e do FNDE. Outra ação dessa mesma iniciativa é um mapeamento de cooperativas e agricultores pelo país e a capacitação desses profissionais, de maneira a integrar os produtores familiares ao poder público dos municípios.

De acordo com o reitor da Universidade, a instituição detectou um equívoco difundido na sociedade de que morador rural é sinônimo de agricultor. Assim, foi criado um projeto de extensão em 2020 para capacitar os moradores rurais, transformando-os em agricultores nas 13 cidades da região do Maciço de Baturité, no Ceará, estado onde a instituição de ensino está sediada. 

“Descobrimos que alguns eram agricultores, mas não sabiam o que fazer e não sabiam empreender. Daí, criamos uma empresa júnior que pôde ajudar em capacitação para saber como vender, administrar, criar, como se filiar a uma cooperativa, como ligá-los a uma prefeitura”, explica.

Foi traçada, então, a meta de fazer um mapeamento no Brasil inteiro, tanto de cooperativas, quanto de agricultores e produtos ligados a elas. Em maio de 2021, foi iniciado o trabalho em âmbito nacional.

“As cooperativas estão todas mapeadas, mas o agricultor não sabe quem são essas cooperativas. Estamos pedindo um aditivo ao FNDE para a gente sair agora das cooperativas para o morador rural e para o agricultor para conectá-los. Se a gente conseguir essa proeza, nós teremos o primeiro mapeamento total no país ligando moradores rurais agricultores com as cooperativas em condições de poderem dar para a prefeitura aquilo que ela têm geralmente usado como desculpa, dizendo que não sabe onde estão as cooperativas e, por isso, não gastam todos os valores na merenda escolar”, detalha.

ORGULHO DE SER MERENDEIRA

“No meu pensar, todos nós temos o nosso valor. A merendeira tem o seu na cozinha e tanta responsabilidade quanto o professor tem na sala de aula. Eu vejo uma profissão muito importante que não é tão valorizada quanto as outras dentro da escola. A gente conhece os alunos, às vezes até mais que um professor. Porque a gente vê a necessidade deles na alimentação. Vê a necessidade deles de comida”, reforça Arlene Ferreira dos Santos. 

Ser cozinheira nas escolas públicas brasileiras, mais do que manipular alimentos, é também acompanhar o desenvolvimento dos estudantes. “A gente faz parte da vida deles, a gente acaba criando uma outra família dentro da escola. Eu acho que é muito importante para mim, eu faço o que eu gosto”, conta Rosani Justin.

A carreira de merendeira não foi a primeira opção e era encarada como uma situação temporária para a vencedora da 1ª edição do reality show nacional dedicado à categoria. Ao longo de 18 anos de profissão, Elisa Szecut se dedicou aos estudos em paralelo, graduando-se em Pedagogia e obtendo uma especialização na mesma área.

“A gente vai pegando amor pelo que faz e você acaba pensando: acho que nem vou me envolver com outra coisa de ser professora. No momento, quero continuar sendo merendeira. Pelo fato de estar fazendo algo que me dá alegria”, reflete. 

A rotina na cozinha não termina com o fim do turno escolar. É preciso pensar também no dia seguinte. “Todo mundo larga o serviço e a merendeira fica. A gente é importante, mas não é valorizada como deveria ser. Mas, se eu tivesse que nascer de novo e pudesse escolher, eu queria ser merendeira porque eu amo o trabalho que eu faço em todos os aspectos. Principalmente o reconhecimento das crianças. É muito bom quando uma criança chega e diz assim: ‘Tia, nota 10!’, ‘Tava uma delícia’, ‘Tia, eu amei’, ‘Já acabou, tia? Ah, eu queria mais’. Isso não tem preço”, ensina Maria de Lourdes.


Fonte: Journa48com



Comentários

Postagens mais visitadas