Pequeno Dicionario da Cozinha Baiana

Verbete-C Cozinha das Irmandades na Bahia[Territórios]
A festa tradicional Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, que ocorre desde 1820, época do Brasil Império, estende-se no tempo até os dias atuais, permanece com muita tradição e fé, na cidade de Cachoeira, localizada no Recôncavo Baiano, a 116 quilômetros de Salvador, onde são oferecidos carurus e cozidos, típicos pratos da cultura afro-brasileira.

Festa de Nanan, no candomblé do Gantois Carybé Gravura do livro Iconografia dos Deuses Africanos no Candomblé da Bahia.

Organizadas a volta de um orago protetor, as irmandades desempenharam, no período moderno, um papel importantíssimo na preservação dos preceitos e valores do catolicismo entre os leigos. Contribuíram tanto para valorizar o clero e os sacramentos da Igreja - por meio dos ofícios litúrgicos e dos ritos de passagem que orientavam a vida de cada crente -, quanto para preservar o culto aos santos e o calendário religioso romano, por meio das festas em sua celebração.
Na qualidade de entidades de ajuda mútua, que uniam gente de um mesmo estatuto social, garantiam ao confrade apoio em casos de doença, morte ou invalidez, amenizando o impacto da ausência familiar ou vicinal quando o sujeito encontrava-se longe do lugar de residência. 


"Mesmo com as diferenças e os preceitos relativos a cada posição, todas as irmãs são consideradas empregadas de Nossa Senhora, elas dividem as atividades: cozinha, coleta de fundos, organização das ceias cerimoniais, procissões do cortejo e funerais das companheiras."

A Festa de Nossa Senhora da Boa Morte é o único evento que aborda o sincretismo religioso na Bahia, com cortejos que anunciam a morte de Maria, missas em favor das irmãs falecidas, sentinela e ceia branca (pão, peixes e vinho), missa simbólica de corpo presente, cozido e caruru ao som de samba-de-roda de Dona Dalva e a procissão de enterro da Nossa Senhora da Boa Morte. 
A irmandade traja a centenária indumentária rendada durante o evento, mostrando a relevância das tradições afro- brasileiras para os visitantes. 
Segundo o etnógrafo e fotógrafo Pierre Fatumbi Verger, a festa é a única organização advinda das mulheres, fundada no início do século XIX, sendo a primeira Candomblé Keto de Salvador. A partir de 1820, a Irmandade teria se expandido para a cidade de Cachoeira, local onde, ainda hoje, preserva seus rituais públicos e secretos.
As festas e cerimônias religiosas organizadas pelas irmandades tiveram, certamente, um papel importante na construção das identidades social e religiosa das nações africanas, tanto em Portugal como no Brasil colonial.
Devoções Atlânticas
A fé no poder medianeiro desta invocação da Virgem foi muitíssimo reforçada com o triunfo da armada cristã sobre a esquadra turca, na batalha naval de Lepanto, em 7 de outubro de 1571. 
Conta-se que a improvável derrota otomana ocorreu após a realização, neste dia, de uma procissão do rosário, na Praça de São Pedro, em Roma, para propiciar a vitória cristã. 
O feito permitiu que centenas de cristãos escravizados fossem libertados e criou, no circuito de crenças da época moderna, uma associação entre a Virgem do Rosário e a libertação do cativeiro. Transformada em um dos grandes baluartes da reforma de Trento, a Virgem Maria incrustou-se na piedade popular lusa  e serviu de esteio à evangelização dos povos colonizados pela Coroa. 
No continente africano e na América portuguesa, tal como na metrópole, cativos ou libertos, oriundos da África Central ou descendentes de nativos desta região, reuniram-se em irmandades sob a proteção de Nossa Senhora do Rosário. A identificação dos negros com esta invocação da Virgem relacionou-se, é claro, à experiência da escravidão. 

Mas também a concepções cristãs africanizadas, produzidas em resposta ao processo de catequização empreendido por missionários capuchinhos e jesuítas, no Congo e em Angola, no século XVI.

Segundo a historiadora Cecília Soares (1996, p. 57-71), essas mulheres desempenharam papel econômico fundamental, pois vendendo produtos alimentícios tais como quitutes, acarajés e doces, passaram a obter fundos para o sustento delas e se organizaram economicamente para comprar a própria liberdade e a de alguns escravos, fato que se configurava como uma intervenção social e política em uma sociedade onde essas mulheres - especialmente as já livres da escravidão – passaram a usufruir de prestígio e a ter posição destacada em virtude da condição econômica e da autonomia que conquistaram, sustentando a si e a seus filhos.

A Cozinha das Irmandades na Bahia
Mário Maestri afirma em O sobrado e o cativo. A Arquitetura urbana erudita no Brasil escravista, "No Brasil, a cozinha, de origem lusitana, foi expulsa do corpo da residência, tornando-se sinônimo de “lugar de negro” (de onde deriva a expressão “pé na cozinha”, para designar origem étnica africana, em nosso país)
Os alpendres constituíam uma continuidade da residência senhorial, no relativo à interdição costumeira e proibição simbólica de os subalternos penetrarem nas moradias senhoriais, em particular pela porta principal. 
Uma das características da sociabilidade colonial consistia na superposição de funções dos ambientes, servindo um mesmo aposento para diversas funções e atividades, superpostas ou não, no decorrer do dia ou da semana. As moradias urbanas das elites desconheciam ambientes especializados, à diferença do que ocorria na Europa ou nos Estados Unidos à época." 

As negras de ganho tornaram-se representantes típicas de um grupo de mulheres que permaneceu discriminado e oculto da História, conseguindo resistir de maneira peculiar às
flutuações do mercado e às medidas de vigilância e controle social. Fugindo aos lugares a elas destinados na sociedade escravista, ascenderam à condição de pessoas de relativa importância na economia de Salvador, particularmente por realizarem a circulação de bens alimentícios essenciais. Apesar da vigilância fiscal e policial imposta aos negócios exercidos por africanos, as mulheres, parecem ter se saído bem, ao ponto, inclusive, de poderem monopolizar alguns setores de comércio. 
Ganhadeiras de ruas,numa foto do século XIX,no antigo Largo do Theatro, hoje Pça Castro Alves.





























As ganhadeiras tiveram maior autonomia e chances de conquistarem uma vida mais digna no contexto escravista, inclusive obtendo a alforria. 
Mas isso as lançava no mundo incerto, embora fascinante, das ruas. Nos mercados públicos ou de maneira itinerante. realizavam as mulheres negras papéis bastante próximos às tradições da África, onde eram amiúde responsáveis pelo comércio. Algumas atividades eram mais lucrativas que outras, comi) vimos em páginas anteriores. Entretanto, os talentos individuais influíam bastante para o sucesso de algumas libertas. É preciso enfatizar que no ganho de rua predominavam sobretudo as libertas africanas. As escravas brasileiras estavam melhor representadas em atividades domésticas.

Na foto: "Escravas de ganho urbanas produziam e vendiam os produtos da cozinha nas ruas e feiras. Estes produtos além de satisfazerem as necessidades humanas básicas são suporte estético para seu visual, paladar e olfato. 
Na mesa sul rio-grandense tanto na estética como na economia a presença e a herança afro-sul-rio-grandense é marcante. Porém esta estética é mais presente e marcantes nos pratos e quitutes ofertados aos orixás."  

Balangandañs e Negras do Partido Alto
Cobertas de jóias douradas e com seus tradicionais panos da Costa, mais de vinte senhoras negras percorrem as ruas da pequena Cachoeira, no Recôncavo Baiano, para celebrar a Assunção de Nossa Senhora da Glória.
Acompanhadas de perto por muitos moradores e turistas, terminam o cortejo oferecendo uma feijoada e caindo num animado samba de roda. É o lance final dos festejos que movimentam a cidade neste mês de agosto.
Entre os dias 14 e 16, as mulheres da Irmandade da Boa Morte rememoram a morte, o velório e a ascensão da Virgem Maria com missas, procissões, ceias, música e dança. Tradição oriental que se espalhou pelo mundo católico, a festa ganhou novos contornos ao desembarcar deste lado do Atlântico. Na Bahia, incorporou muitos elementos da religiosidade afro-brasileira. 

Durante as comemorações em Cachoeira, a 110 quilômetros de Salvador, as irmãs usam saias rendadas e turbantes brancos, guias, balangandãs, colares de contas, e na sexta-feira, dedicada a Oxalá, não podem comer carne e dendê. 
Ninguém sabe ao certo quando a irmandade se instalou na cidade. 
Muitos acreditam que foi por volta de 1820, com um grupo que saiu da Igreja da Barroquinha, em Salvador. O historiador cachoeirano Luiz Cláudio Nascimento diz que a organização teria sido fundada na famosa “Casa da Estrela”, que reunia mulheres negras vendedoras de doces, bolos e artigos usados em rituais africanos. 
Essas primeiras integrantes eram chamadas de “Negras do Partido-Alto”, ex-escravas que prosperaram com suas atividades comerciais e ocupavam posições elevadas na hierarquia dos terreiros de candomblé locais. 
O primeiro objetivo delas era arrecadar fundos para resgatar sacerdotisas do cativeiro e fundar um candomblé, o que acabou acontecendo por volta de 1860. 
















Mesmo sem ser oficializada (com compromisso aprovado pela Igreja Católica), a entidade exclusivamente feminina promovia, desde aquela época, a festa anual de sua padroeira, com desfile público, banquete para as filiadas e rituais reservados. E até hoje é formada só por mulheres negras, quase todas com mais de 50 anos. “Todas são do candomblé. Tem gente de Maragogipe, de Cachoeira, São Félix. 
Muitas mães de santo, que convivem muito bem ali. 
Para ingressar na confraria, a “noviça” passa por uma iniciação de três anos e é conhecida como “irmã da bolsa”. Depois que sua vocação é testada, ela pode ocupar algum cargo de diretoria, e a cada três anos subir na hierarquia da associação.
Mesmo com as diferenças e os preceitos relativos a cada posição, todas as irmãs são consideradas empregadas de Nossa Senhora, elas dividem as atividades: cozinha, coleta de fundos, organização das ceias cerimoniais, procissões do cortejo e funerais das companheiras. Embora a irmandade seja muito destacada em guias turísticos e outras publicações durante o período de festejos, sua história continua desconhecida para muita gente.

Joalheria Crioula, usada pelas mulheres negras  
As jóias das ‘crioulas baianas’ confeccionadas nos séculos XVIII e XIX, consistem em uma coleção de peças de joalheria, e.g. colares,pulseiras, argolas, pencas de balangandãs, especificamente para serem usadas por mulheres negras ou mestiças, na condição de escravas,alforriadas ou libertas. 
Festa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, década de 1950, Cachoeira, BA © Pierre Verger/Acervo Fundação Pierre Verger

Estes adornos são hoje, objetos de museu,apresentados como exemplares de um tipo muito particular de joalheria,sempre associados às crenças religiosas de suas usuárias, principalmente as penca de balangandãs ou vinculados aos senhores de escravos, como exemplo paradigmático de comportamento destes indivíduos, que adornavam suas escravas com uma quantidade exacerbada de jóias de ouro para exibir poder e riqueza. Ou seja, os estudos a respeito destes objetos ainda não dão conta de inúmeras indagações, especialmente àquelas que desejam contemplar a voz e a visão da usufrutuária destas jóias.

Segundo a pesquisadora Bia Simon, (Jóia Escrava: design de resistência- 2004) a joalheria crioula, é um modelo do que se pode classificar de design de resistência, não na sua forma que é híbrida, mas no seu significado de uso, resultado da impermeabilidade cultural,da resistência negra ao sistema escravocrata. Ao portar estas jóias a mulher negra ou mestiça, escrava, alforriada ou liberta,simbolizava a manutenção de sua cultura, a preservação de sua auto-estima e, principalmente, sua resistência à condição de mercadoria “As culturas africanas, predominantemente, banto no centro-sule nagô na Bahia, sem duvida alguma, informaram as lutas de escravos e libertos na escravidão, pela e na liberdade ”(REIS, 1995, p. 52). 
Também Pierre Verger afirma o mesmo, só que denomina os nagôs como iorubas, ou como nagôs-iorubas, vários autores também utilizam uma ou outra denominação, ou então as duas associadas:“
O segundo sistema de tráfico negreiro fora organizando por e em proveito dos negociantes fixados na Bahia e em Recife que tinham estabelecido relações diretas (tabaco por escravos) entre os seus portos e os da Costa dos Escravos, os quais lhes forneciam cativos iorubas em grande numero” (VERGER, 1992, p. 98). 
Com isso se pode afirmar que as usuárias destas jóias eram, em sua maioria, de origem nagô-ioruba, as outras eram suas descendentes,ou então, eram por elas influenciadas, como se verá mais adiante. Trazem consigo heranças da sociedade ioruba em que viviam na África, tais como:integravam uma organização familiar polígama, que lhe proporcionava maior liberdade do que em uniões monógamas; na família do esposo são sobretudo progenitoras de filhos para perpetuar a linhagem familiar do marido, não sendo totalmente integradas ao núcleo familiar do esposo,situação que lhes confere uma relativa independência; ao casarem não tinham obrigação de praticar o culto da família dos esposos, continuavam vinculadas a religião de suas famílias; não podiam manter relações sexuais com o marido durante a gravidez e mais o período de desmame da criança,o que justifica a admissão de co-esposas; o grupo de esposas vinculadas a um marido, geralmente quatro, constituem um grupo solidário, que não hesita em explorar a generosidade do esposo, na obtenção de presentes caros como, jóias, tecidos e enfeites, que se ver obrigado a presentear todas para evitar ciúmes; também circulam livremente e fazem os mercados das cidades vizinhas e outras mais afastadas; sendo boas comerciantes se tornam mais ricas que seus maridos e as vezes amealham fortunas consideráveis (VERGER, 1992)

Fontes: 
DEVOÇÕES ATLÂNTICAS:A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL E RELIGIOSADE CATIVOS E LIBERTOS NA BAHIA COLONIAL.REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas – irmandades de africanose crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011. 416p

Simon, Bia (Jóia Escrava: design de resistência- 2004) 

MULHER NEGRA NA BAHIA NO SÉCULO XIX Cecilia Moreira Soares Devoções atlânticas: a construção da identidade social e religiosa de cativos e libertos na Bahia colonial 


Maestri, Mario O sobrado e o cativo. A Arquitetura urbana erudita no Brasil escravista



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