Pequeno Dicionario da Cozinha Baiana

Verbete-C Canjica 
Uma das festas de maior apelo afetivo no nordeste, o São João, tem na Canjica, seu maior patrimônio. 
















Mas não pense que é fácil saber qual a procedência desta iguaria, como em muitos outros pratos nacionais, existem teses que relacionam a Canjica aos indígenas, a cultura africana inclusive a matriz europeia e até asiática. 
Tenho muito presente o sabor desta iguaria em meu paladar, sinônimo de compartilhamento entre moradores de itapuã da minha infância, a mesa farta de bolos, doces e a alegria junto á fogueira. 
Também chamado de Cural ou Jimbelê, no sul do Brasil a Canjica, tinha no seu processo de preparo o milho, que era triturado, sem adição de água, extraído seu suco e cozido com a adição de leite de coco, adoçado com açúcar e temperado com cravo e canela, além de água de flor de laranjeira,  durante horas, até dar seu ponto. 


Em nossa casa, toda esta preparação era feita por minha avó, numa especie de ritual, que duravam horas, até conseguir o ponto desejado. 
Podia ser "de corte" ou "de beber" servidos e pratos fundos ou em copinhos,  a Canjica, faz parte do conjunto de referencia gustativas da minha infância. 

O Milho e a civilização indígena.
Os primeiros registros do cultivo do milho datam de há 7.300 anos, e foram encontrados em pequenas ilhas próximas ao litoral do México, no golfo do México Seu nome, de origem indígena caribenha, significa “sustento da vida”. 
Alimento básico de várias civilizações importantes ao longo dos séculos, os Olmecas, Maias, Astecas e Incas e tupis, reverenciavam o cereal na arte e na religião. 
Grande parte de suas atividades diárias era ligada ao seu cultivo. 
Segundo Linda Perry, em artigo publicado na revista Nature, o milho já era cultivado na América do Sul há pelo menos 4.000 anos. 
O tupi antigo foi a língua mais usada na costa do Brasil no século XVI,  no século XVII ele daria origem a línguas gerais. 
Estas foram, por séculos, as línguas da maioria dos membros do sistema colonial brasileiro, de índios, negros africanos e europeus, contribuindo para a unidade política do nosso país.

É provável que uma das maiores contribuições dos índios americanos para as outras populações do planeta tenha sido o grande número de plantas, legumes, ervas e verduras, por eles domesticadas durante o período pré-colonial: tomate, batata, tabaco, milho, pimenta, amendoim, mandioca, abacaxi, mamão, maracujá, abóbora, coca, batata doce, feijão, um tipo de algodão, pupunha, açaí, urucum (colorau) e inúmeras outras. 
Isso sem falar nas plantas já aqui manejadas e posteriormente domesticadas pelos europeus, como a erva mate e a seringueira. 
Uma das características mais marcantes da agricultura das populações indígenas das terras baixas é a ênfase no cultivo de tubérculos como a mandioca e a batata-doce. 
(acanjic) 
 O sociólogo Gilberto Freyre (Casa grande e senzala. 48. ed. São Paulo: Global, 2003), foi um dos primeiros a se debruçar sobre a origem da canjica. 
Conforme ele, a canjica é prato de procedência nativa. Enquadrar-se-ia na lista das contribuições culinárias dos índios ao cardápio nacional. 
A favor da tese do autor, temos o fato de que o milho, matéria-prima principal da canjica, é cereal de comprovada origem sul americana. 
Todavia, contra a tese de Gilberto Freyre, se levanta o depoimento taxativo de uma testemunha colonial: Frei Vicente do Salvador (História do Brasil. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1979)
Missionário e historiador franciscano nascido em Matuim, cerca de 35 quilômetros ao norte de Salvador, Frei Vicente, foi considerado o autor do primeiro documento da historiografia brasileira (1627), dando uma visão oficiosa do cenário da chegada dos portugueses na Bahia e uma das leituras indispensáveis para o conhecimento do primeiro século da vida no Brasil. 
Depois de estudos no Colégio dos Jesuítas da Bahia, foi para a capital do reino e cursou Direito em Coimbra e doutorou-se em teologia pela Universidade de Coimbra. Ordenou-se e voltou ao Brasil (1587) onde exerceu sucessivamente os cargos de cônego, vigário-geral e governador do bispado da Bahia, até entrar para a Ordem Franciscana (1597) adotando o nome de Frei Vicente do Salvador. 
Foi guardião da Ordem da Paraíba (1603-1606), servindo na Paraíba, Pernambuco e Bahia, e viajou para a cidade do Rio de Janeiro, onde permaneceu (1607-1608) e colaborou na fundação do Convento de Santo Antônio. 
Foi para Portugal onde pesquisou dados para a sua História do Brasil, que concluiu em sua terra natal. Missionou na Paraíba, residiu em Pernambuco e cooperou na fundação da casa franciscana do Rio de Janeiro (1607), sendo o seu primeiro prelado. Tornou posteriormente a Pernambuco, onde leu um curso de artes, no convento da ordem, em Olinda. Regressando à Bahia aí foi guardião do respectivo convento (1612). Eleito em Lisboa custódio da Custódia Franciscana Brasileira, no mesmo ano voltou para Pernambuco. Ainda foi a Portugal, regressou novamente à Bahia, como guardião. 
No regresso à Bahia (1624) foi aprisionado na baía de Todos os Santos pela esquadra holandesa que invadiu o Brasil (1624-1625), mas logo foi libertado. Esteve ao Rio de Janeiro e com a saúde enfraquecida voltou mais uma vez para Salvador e morreu em Salvador. A origem de seu livro foi atender um pedido do erudito português Manuel Severim de Faria, para que escrevesse um tratado Das cousas do Brasil.
Em 1627, o religioso, tratando da relação dos índios com o coco, recém introduzido na terra, diz que os silvícolas “só os comem e bebem a água (...) sem os mais proveitos que tiram [do coco] na Índia”. 

Contrapondo-se à explicação dada por Gilberto Freyre, temos a opinião de estudiosos da língua portuguesa. Para estes peritos, o termo canjica não é indígena, veio importado da África junto com os escravos. 
Para Nei Lopes (Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003), o termo que batiza o nosso prato junino tem origem no quicongo, língua falada no Congo e Angola. 
O dicionarista vê no termo canjica uma metamorfose de “Kanzika”, papa grossa de milho cozido. 

Mário Eduardo Viaro (Por trás das palavras: Manual de Etimologia do Português. São Paulo: Globo, 2004), professor de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo, é outra autoridade a defender a procedência africana do termo canjica. Viaro, como Nei Lopes, acredita que o nome chegou até nós por meio dos escravos africanos.

O autor deriva o termo português canjica das línguas bantas quimbundo e umbundo, faladas, sobretudo, em Angola. Conforme Viaro, canjica advém de “Kanjica”, nas línguas mencionadas significa papa. No entender do especialista, o quimbundo e o umbundo “são as mais representativas [das línguas africanas] nas etimologias do português”. 
Antes de Nei Lopes e de Eduardo Viaro, um outro perito brasileiro já havia atribuído origens africanas ao vocábulo canjica, o etimologista Antenor Nascentes (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937). 

O famoso estudioso viu na canjica brasileira uma herança procedente da África. 
No parecer do ensaísta, canjica é vocábulo oriundo do quimbundo “língua da família banta falada em Angola pelos ambundos”. Canjica, diz o autor, vem do quimbundo, “Kandjica”. 
O filólogo Antonio Geraldo da Cunha (Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986) também tentou decifrar o enigma etimológico da canjica. 
Cunha se distancia tanto da hipótese ameríndia quanto da africana. 
O perito entende que canjica vem de uma outra palavra portuguesa. Para ele, a origem de canjica é o termo canja. 
O termo viria de Kanji, termo da língua malaiala falada na região de Malabar, sudoeste da Índia e que significa “arroz com água”. 

Assim, conforme os estudioso, o nome de batismo da canjica tem origem asiática. Que o leitor não estranhe a suposta origem oriental da canjica. Pois foi intensa a presença portuguesa na Índia, particularmente em Goa, a partir do século 16. Lembra-nos Eduardo Viaro que os “portugueses tiveram contato direto com vários povos da Ásia”. 
O mesmo estudioso afirma que o malalaia enquadra-se dentre as línguas indianas com as quais os portugueses mais tiveram contato, ao lado do concani e do tâmil. Se Cunha tiver correto, a brasileiríssima canjica é prato híbrido, cujo nome procede do distante oriente. Assim, o insosso arroz foi substituído pelo milho, e o leite de coco tomou o lugar da água. Favorecendo a hipótese de Cunha, temos que considerar as intensas relações comerciais entre Índia e Portugal entre 1497 e 1860.

A chamada “carreira da Índia”, o roteiro marítimo, incluía o porto da Bahia. Por meio dele, muitos produtos orientais, particularmente indianos, foram trazidos ao Brasil, ao longo dos séculos 16, 17, 18 e 19. É o caso do cravo e da canela, dois condimentos da celebrada canjica. 
Vê-se, pois, que o delicioso manjar junino, a canjica, pode ter se originado em três distintos pontos da geografia: Brasil; Angola/Congo e Índia (Goa). 

O milho (Zea mays), é uma das plantas mais antigas e mais extensamente cultivadas nas Américas. Distinguem-se 250 raças descendentes de seleções feitas pelos índios. É consumido em forma de vegetal (assado, cozido, feito mingau) e cereal, isto é, triturando-se os grãos secos para transformá-los em farinha. 

Citando vocábulos em tupi, Teodoro Sampaio informa: "Com o milho preparavam a canjica (acanjic), grão cozido; a farinha (abatiuy), a pamonha (pamuna), a pipoca, que quer dizer 'epiderme estalada'(...) A carne ou peixe pilado e misturado com farinha davam o nome de poçoka, que quer dizer 'pilarado à mão ou esmigalhado à mão'" (op. cit. 1928:107). 

Do milho, a ciência doméstica ensina fazer várias modalidades de pratos que satisfazem ao paladar mais exigente: farinhas, bolos, broas, sopas, pães, caldos, cremes, canjicas, pamonhas, cuscuzes.
Inúmeros trabalhos sobre sociedades indígenas descrevem e valorizam o conhecimento que elas possuem sobre a natureza: o reconhecimento das espécies faunística eflorística; as formas diferenciadas de adaptação ao meio ambiente; as técnicas específicas de manejo, plantio, caça, pesca e coleta. Podemos afirmar que estas sociedades possuem um conhecimento minucioso do meio natural e que reconhecem não somente a diversidade biológica (variedade de espécies da fauna e da flora) como também a diversidade ecológica (variedade de ecossistemas). Pesquisadores, inclusive, se empenham em demonstrar a contribuição das sociedades tradicionais na ampliação e manutenção da diversidade biológica.
 
Nestes termos, a grande discussão atual sobre a biodiversidade está intimamente referenciada à sociodiversidade. 
Aos peritos da etimologia, fica a tarefa de dirimir qual das três hipóteses é a mais acertada, ou apresentar uma outra mais condizente com a documentação. 
Eu, mero curioso nesta seara fascinante, fico a aguardar, ansioso, que eles esclareçam o enigma etimológico da canjica. 

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