É u’a mangaba!

Documentação sobre a mangaba (Hancornia speciosa) na literatura pode ser encontrada desde o século XVI, relacionando-a a diversas regiões do Brasil (Brasil Central, Nordeste, Maranhão e Grão-Pará), porém foi em Pernambuco, cujo desenvolvimento diferenciado permitiu a vinda de muitos estudiosos, viajantes e artistas, que os relatos sobre essa espécie.

Embora usada pelos índios desde o período pré-cabralino, as primeiras menções no Brasil 

remontam à época da chegada dos portugueses.

Como descrito na obra Monumenta Brasiliae, do historiador jesuíta Padre Serafim Leite, o primeiro registro da fruta em língua portuguesa coube ao padre Brás Lourenço, da Companhia de Jesus, que veio ao Brasil com o segundo Governador Geral, D. Duarte da Costa, e que relatou em uma carta de 1554 o uso da mangaba como alimento no Sul da 

Bahia, por ocasião de um naufrágio nos baixios da atual região de Caravelas: “[...]De dia nos íamos por esses matos a comer frutas silvestres, que chamam mangabas, que são como sorvas de Portugal[...]”(Leite 1957).

Outro português, Ambrósio Fernandes Brandão, que viveu em Olinda, PE, e na Paraíba, nos 

seus célebres Diálogos da Grandeza do Brasil, de 1618, menciona também, no Diálogo IV entre Brandônio e Alviano: “[...]mangava, fruta que pode ser estimada entre as boas que há no mundo, a qual semelha às sorvas de Portugal”[...] (Brandão 2010).

No entanto, as mais belas e detalhadas descrições da época, inclusive com fenologia, usos e ilustrações da planta, estão na magnífica Historia Naturalis Brasiliae, de 1648, obra-prima escrita pelos naturalistas holandeses Georg Marckgraf (Jorge Marcgrave) e Willem Pies (Guilherme Piso), os primeiros cientistas do Novo Mundo e membros da comitiva do Conde João Maurício de Nassau-Siegen, em Pernambuco (Marcgrave 1942, Piso1948): O excelente fruto desta árvore, a que chamam Mangaíba, penso não deve ser ignorado nem omitido, embora seja antes uma iguaria das mesas, que concernente às nossas preocupações medicinais.

Pois lisonjeia tão deliciosamente a gula e tem sabor tão agradável, que não sei se a América 

produz alguma fruta mais bela e gostosa. Árvore bela, crespa e fecundíssima não se eleva a altura maior que a da ameixeira europeia, com a qual rivaliza pelo fruto e sobretudo pelo caule e pelas folhas.

Veem-se, viçosas, constituírem bosques inteiros em certos lugares da Baía e de Paranambuco. 

Esgalha-se em muitos ramos, por sua vez subdivididos em finos ramúsculos como os da bétula, a cujo caule e córtice muito se assemelha. 

Começa a florescer no fim do inverno, i.é, no mês de agosto e carrega-se e orna-se, para além de nove meses, com frutas ou ameixas.

Produz uma flor pequena, branca e mui cheirosa; o fruto é redondo, comestível, dourado na face exposta ao sol, salpicada de manchas vermelhas, a parecer um damasco.

Coberto de tenuíssima cutícula, contém dentro cinco ou seis grânulos, cheios de leite a ponto de, apertados ainda que de leve, verter um líquido níveo e mui agradável ao paladar; e embora a sua polpa seja viscosa e mole, nada disso porém se percebe ao comê-la; e introduzida na boca logo se liquefaz. 

Na árvore nunca amadurece, mas caindo em terra logo chega à maturidade. 

Ignorando-o, os adventícios, atraídos pela beleza externa da fruta, assim que o levaram à boca logo o puseram fora como cáustico e mui amargo; pois, quando verde, nem mesmo os animais nele tocam.

Bem maduro é de fácil digestão, dissipa os ardores das vísceras e faz bem aos fabricantes, como o experimentei comigo mesmo e com muitos outros.

Demais, de ordinário estas frutas não fazem mal, mesmo comidas em quantidade e com estômago jejuno; porém, sendo frias, úmidas e de fácil estrago, desatam o ventre e provocam flatos, o que a solércia das nossas mulheres do povo costuma corrigir por meio de condimentos.

Os portugueses preparam os frutos inteiros e então não cedem a nenhuma outra iguaria.

Gilberto Freyre, em sua obra Açúcar: uma Sociologia do Doce, com Receitas de Bolos e 

Doces do Nordeste do Brasil, que teve sua primeira edição datada de 1939 (Assúcar: Algumas Receitas de Doces e Bolos dos Engenhos do Nordeste), registra grande número de doces, sorvetes e refrescos de mangaba e outras frutas nativas, sobretudo de Pernambuco, em cujo território prosperou uma avançada civilização açucareira. 

Segundo o autor, foi na mesa patriarcal que essas frutas tiveram sua fase de esplendor para a aristocracia da época e, nesse contexto, a mangaba ocupou posição de destaque (Freyre 2007a)

Ao mesmo tempo que a tanajura, tão amada pelos caboclos, e depois pelos doutores, pelos barões e até pelos inglêses ou americanos romanticos, as fructinhas do matto com a brasileirissima pitanga, o maracujá, a groselha, o coração da India, a carambola, a goiaba, o guajirú, o cajá, o araçá, a mangaba, o umbú, tiveram sua phase de esplendor á mesa patriarchal, servidas como doce, como geléa, com sorvete. 

Foi mencionada até no livro Doceira Brasileira ou Nova Guia Manual para se Fazerem 

Todas as Espécies de Doces, de autoria de D. Constança Olívia de Lima, aparecido em 1856 (Freyre 2007a).

Sobre esse célebre manual, Freyre menciona que: O livro de Dona Constança traz muita receita de doce de fruta do mato em 

que se sente a influência romântica do indianismo ou do nativismo político 

sobre os gostos elegantes de sobremesa: "doce de abacaxi à moda de Pernambuco", "doce de caju à moda de Pernambuco", "doce de guaijiru de Pernambuco", "doce de babosa, de bacuri, de mangaba, de sapoti, e até de pitomba, tudo de Pernambuco.

Persistente no imaginário popular como uma fruta típica das áreas praianas, a mangaba era 

considerada, até pouco tempo atrás, como uma fruta silvestre ou do “mato” e, portanto, consumida somente durante a safra, in natura, na forma de suco e sorvete ou ainda, pelos habitantes locais, com farinha quando se ia para a roça ou pescaria.

Pelos citadinos, sempre esteve associada ao verão e aos momentos de lazer na praia, onde, além do suco de sabor invulgar com o seu visgo, a população incrementou o seu uso em “sorvetes de saquinho”, chamados “dudu” ou “geladinho”, no litoral de Pernambuco (Silva Junior et al. 2011). 

Ou ainda, utilizava-se para a feitura de doces, batidas, passas e compotas, já descritos por Freyre (2007a). 

O geógrafo recifense Josué de Castro completou no glossário do clássico Geografia da Fome, publicado em 1946: “O sorvete de mangaba goza, merecidamente, do melhor conceito: é saboroso” (Castro1984).

Em edição do Diário de Pernambuco, de 30/07/1907, chamava-se a atenção que a fábrica de chocolates A Helvética, localizada na Rua Dr. Rosa e Silva, possuía expostas “[...]variedades de bombons de chocolate, pastilhas de hortelan pimenta, de mangaba, maracujá e outras frutas[...]” (A Vida Comercial 1907).

Um fato pitoresco, conforme noticiou o Diário da Manhã, do Recife, foi que, em visita ao Estado de Pernambuco, em 1940, “o presidente Getúlio Vargas serviu-se, após o almoço, em Itamaracá, de doces de mangaba em calda da marca Peixe, produto pernambucano[...]”(Proseguiram... 1940). Deve-se ressaltar que a compota de mangaba já era vendida em lata nos anos 1930.

César (1956) afirmava que para se falar que alguma comida era gostosa ou um objeto que exprimisse superioridade, usava-se a expressão É u’a mangaba! 

Embora também pudesse ter outros significados, como sinônimo de bêbado; ou para dizer que uma pessoa ou coisa era mole, dizia-se que era como mangaba.

O jornalista Paulo Fred Navarro,  ainda acrescenta que “mangabinha” significa namorada ardente, excitadora, que provoca luxúria.

Arruda da Câmara (1982) aponta ainda um uso diferente dos frutos: 

[...] estes sendo pisados passam a fermentação espirituosa com maior 

facilidade, e desta à acetosa, convertendo-se o seu suco em tempo diminuto em ótimo vinagre, de que tenho usado bastantemente, e acho-o mais forte do que o de uvas, de canas de açúcar, de bananas e de cambuins.

Tida como uma fruta abundante, não tinha o valor comercial de hoje, mas mesmo assim era ofertada nas ruas mediante o entoar de conhecidos pregões

(Olha a mangaba! ou Sorvete, é de mangaba!).

Nova Soure é o maior extrativismo de mangaba da Bahia.

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