Coá, Broa Sertaneja À música, a trova o repente sertanejo.

Quando Caborge trouxe a cuia, o velho Rufino tirou a lata do sol. Com uma colher de pau, mexeu a jacuba. Enquanto mexia, dizia pra moça: 

- É coisa boa. Gostosa e forte. É o que sustenta nóis, sinhá. 
- Deve ser um bom refrigerante.
– observa Nanita, recebendo das mãos do velho remeiro a cuia de jacuba.
- Isso num sei, doninha.
– retruca Rufino
– Mas que é muito forte, dá talento ao muque pra puxar barca, eu agaranto que é.
Wilson Lins de Albuquerque

As canturias, nas trovas, o repente, o cordel, todas estas às pressões artísticas, compuseram um mosaico de referências, a transumancia e os processos diaspóricos entre África e Europa, determinaram signos culturais marcantes, semelhanças que percorreram séculos, mas que se mantém vivas na memória popular.

Muito destas manifestações, incluo aqui à culinária, mantem uma estreita ligação com regiões portuguesas, como o Alentejo e Algarve.

Portugal jamais permitirá o estranhamento à mesa que o paladar experimenta em viagens ao estrangeiro, dizia Câmara Cascudo, este é o mais pátrio dos sentidos.
Percorrer a tradicional cozinha portuguesa não é apenas travar contato com uma das gastronomias mais remotas e de sabores absolutamente íntegros, mas incorrer pelo próprio útero do que viria a ser a cozinha brasileira.
Portugal, à mesa, é uma mãe.

Se não, vejamos: nosso tradicional pirão, por exemplo, a fórmula que Gilberto Freyre apontava como o mais brasileiro dos pratos, nada mais é do que uma versão tropicalizada da açorda.

"Não há sabores desabridos no Sertão, tudo remete à intensidade, à força e a pujança.
À comida do Sertão reflete sua história, e seu profundo senso de respeito às tradições, um amálgama de culturas, território diverso e encantado."


Coá, Broa rústica Sertaneja, preparada a partir da mescla da farinha grossa do milho, e da carimã

Prato clássico do Alentejo, região de dificuldades como o Nordeste brasileiro, é uma receita típica de povos obrigados historicamente ao aproveitamento integral dos ingredientes.

Consiste no caldo resultante do cozimento de qualquer carne engrossado, como um mingau, com pão velho ou a tipica broa.
Observemos o preparo de um pirão: o mesmo caldo resultante de algum ensopado (de carne, peixe ou aves, como no caso do outrora popular pirão de parida feito no Sertão para recuperar a força das mulheres que deram à luz) engrossado não com pão, mas com farinha de mandioca.

Carente de trigo, até pouco inexistente no Brasil, o português colonizador se viu obrigado a adotar o pão da terra: a mandioca cabocla das aldeias.
À Broa, pão rústico português, nós traz à forte lembrança das bolachas e roscoēs nordestinos.
Não é frase de efeito: percorrer a cozinha tradicional de Portugal ajuda a entender a formação da personalidade culinária brasileira.
Ressignificada, a açorda não aparece apenas na mesa camponesa.
E falando em ressignificação, o que dizer das "Migas Alentejanas e a sua clara semelhança com a nossa tradicional Farofa.
Está também no cardápio dos grandes chefs contemporâneos.

E, claro, a carne de porco, que se observarmos tem suas raízes tradicionais e vasto receituário nas Minas Gerais e no Sertão brasileiro.

A tradição da Matança Portuguesa, com a presença do "Talhante", responsável pelo desmanche, onde tudo se aproveita, das carnes mais nobres aos miúdos, até o sangue,  também nos remete ao trato dos vaqueiros .
Até bem pouco tempo atras, a comida em diversas partes do Brasil, era guisada com a banha de porco e torresmo, elemento fundamental na confecção dos pratos.

Ainda falando do Porco, não poderia deixar de lembrar dos "miudos" as partes do intestino do animal, que na Bahia eram vendidas por fateiras, e se prestavam a confecção do Sarapatel ou Sopa de Cachola no Alentejo, e da Dobradinha, ( que apesar de estar mais ligada a região do Porto) chegou por mãos portuguesas, além muitos outros pratos tradicionais da cozinha baiana.
Do Bucho do Bode temos a nossa tradicional "Buchada, que no Alentejo chama-se Bucho Recheado.

“Os arrozes em Portugal são feitos molhadinhos, escorrem no garfo.
Por isso, são chamados de malandrinhos”, continua, lembrando da larga tradição de arrozes de Portugal.

Na Bahia, come-se a Galinha de Cabidela (Ao molho Pardo), que se aproxima do Arroz de Cabidela, preparação feita com o sangue da galinha.

Em cada região, haverá sempre uma especificidade, um bastião culinário.
Na Bairrada, por exemplo, ficam os famosos leitões assados (que podem ser maravilhosamente harmonizados com o interessantíssimo e bem ácido, para contrapor a gordura natural da carne, espumante tinto local).
Cabritos, Borregos e o Bode do Sertão do Brasil.

O cabrito e borrego português em Marvão, servidos com batatas e grelos, também são patrimônios que nos remetem á forma de preparo do Bode Assado na brasa do nosso Sertão, com aipim cozido e manteiga de garrafa.

De Portugal, o Brasil herdou o azeite (e as frituras), a cebola, o alho, o tão estimado coentro, os ensopados suculentos.
A tradicional peixada pernambucana, por outro lado, é uma solução local para o cozido português – como, de resto, o cozido brasileiro e, há quem defenda, até mesmo a feijoada.

A utilização do coentro e do cominho o hortelã fino e grosso, e até o cravo,  lembram muito o tradicional "Tempero Mineiro" tão bem registrado no Livro: Minas de Forno e Fogão - Maria Stella Libanio Christo, um verdadeiro compendio dos sistemas culinários da região.

E como esquecer das delicias da cozinha doce brasileiras, muito tipico das épocas Juninas, como o Arroz Doce e as Rabanadas, ou mesmo os Quindins corruptela das "Brisas do Liz" tipico doce Lusitano.

Hoje é clara a ponte existente entre a presença Moura, através da cultura portuguesa em nosso Sertão.

Câmara Cascudo foi um dos mais importantes pesquisadores da cultura popular brasileira. Falava do sertão arrogando-se do lugar de quem viveu lá, em um tempo em que, nas palavras do próprio pesquisador, “a
herança feudal pesava como uma luva de ferro” (CASCUDO, 1984).
A década de 30, em que o folclorista gerou a obra Vaqueiros e Cantadores, foi o
período no qual a nova configuração política pós-revolução demandava “o
debate em torno da história nacional, da situação de vida do povo no campo e
na cidade, do drama das secas” período em que o movimento modernista liderado por Mário de Andrade passava por uma
transformação, na qual, segundo João Lafetá, a questão estética dava lugar à consciência ideológica, pressionada pela problemática política.
Mas foi na arte, diz o jornalista pernambucano Selênio Homem “ é onde ficou mais pura a influência medieval no Nordeste.
A música dos sertões nordestinos, na sua expressão mais genuína – é cantochão sem tirar nem pôr, e o folheto, a gesta ou o rimance.

Viola de Sisal


Instrumento construído por Webson Santana Santana e decorada pela pirografia de Artur Ariston. A viola de sisal foi inspirada na viola de Buriti, feita pelas mãos de artesãos e mestres da cultura popular na comunidade de Mumbuca, na cidade de Mateiros, região do parque do Jalapão, no Tocantins. (Maurício Ribeiro)


Após uma expedição ao jalapão, realizada em 2012, através do prêmio Rumos Itaú Cultural, o fundador do projeto, Josevaldo Nim, deu início na um laboratório de investigação técnica e sonora da cultura sisaleira, no semiarido Bahia.


O Som do Sisal é uma ação sustentável, criativa e inovadora que engloba as esferas cultural e  socioeconômico, utilizando novas tecnologias para a criação de instrumentos musicais a partir do reaproveitamento da madeira gerada pelos residuos da cadeia produtiva do sisal

Fotografia de Jaja Liima, registrada no intercâmbio na cidade de Sisal Puerto, 

México, em 2017.

Como os trovadores dos feudos, costumavam os cantadores da Região irem e virem, levando notícias do mundo e cantando em versos, acompanhados à viola, os feitos heroicos ou histórias maravilhosas, nas quais não faltavam as proezas dos Pares da França e da Távola Redonda.
Menestréis medievos, eram (e ainda talvez o sejam) bem recebidos nas casas senhoriais, muitas delas vazadas (com cesteiras para rifles), em função dos cercos e assédios, idênticas aos castelos da Idade Média”.

O improviso na poesia cantada e musicada do Nordeste tem suas raízes no desafio português ou nas bulerias hispânicas, ambos de origem medieval e que ainda hoje persistem com todos os temperos de procedência.

A literatura de cordel como conhecemos hoje remonta sua origem ainda em Portugal com os trovadores medievais (poetas que cantavam poemas no século 12 e 13), os quais espalhavam histórias para a população, que, na época, era em grande parte analfabeta.
Na Renascença, com os avanços tecnológicos que permitiram a impressão em papéis, possibilitou-se a grande distribuição de textos, que, até então, eram apenas cantados.

O "Aboio" o canto típico sertanejo, segundo o cantautor baiano Xangai, tem claras referências ao chamamento dos Almuadém ou muezim  no Islão, o encarregado de anunciar em voz alta, do alto das almádenas (ou minaretes), o momento das cinco preces diárias.

São mesuras musicais, preces que virão cânticos, que transmitem valores éticos, e demonstram a atemporalidade de costumes, e primor estético.

Os engenhos de cana-de-açúcar foi herança dos engenhos mouros introduzidos durante a ocupação muçulmana na península Ibérica na Idade Média. A cana-de-açúcar teve seu desenvolvimento em fazendas que acabaram sendo denominadas de Engenho, ficavam próximas ao litoral, onde encontraram um solo propício chamado de massapé.

A cana foi cultivada por séculos até que da Índia, em dado momento da História, ela foi levada para o Oriente Médio.
Na época de Alexandre, o Grande no século IV a.C, que mudas de cana foram levadas à Pérsia, e se espalharam pelo império.
Séculos depois, quando os árabes deram início a sua expansão pelo Oriente Médio, eles difundiram o cultivo da cana, e acabaram levando a planta em suas viagens para a África e a Europa. Assim, encontramos menções a cana no norte e leste da África, na Sicília, em Creta, em Chipre, na Espanha e Portugal.

Ordas “mouras” dominantes sempre tiveram respostas dos lusitanos e já no ano 809 a parte Norte de Portugal já estava sob o domínio cristão, já Braga e Porto voltaram ao domínio cristão no ano de 868, Coimbra no ano de 1004 e a maravilhosa Lisboa em 1147.
No sul de Portugal, na região sul, mais precisamente no Algarve, os mouros tiveram muita influência tanto na mistura populacional como na própria escrita variava muito a dominação moura, com vai-vai de domínio, até que no ano de 1452 foram expulsos definitivamente.

Nos séculos seguintes, os muçulmanos foram alargando as suas conquistas na península, apoderando-se do território a que chamaram “al-Andalus”, e que governaram durante quase oitocentos anos.
A partir daí, os muçulmanos foram ampliando as suas conquistas territoriais e, em consequência do domínio territorial e militar, veio também a influência cultural.
A invasão dos mouros fez misturar povos com culturas distintas, dando origem uma sociedade muito heterogénea, que fica muito evidente na cultura gastronômica Ibérica.
Se dermos uma vista de olhos sobre a gastronomia portuguesa, imediatamente identificamos produtos e práticas de cozinha com uma pitada de cultura árabe.
As semelhanças permitem concluir que a este tipo de cozinha foi a verdadeira matriz da cozinha Alentejana.
Quase todas as receitas tradicionais do Alentejo têm fortes e diretas influências da cozinha árabe, subtraindo todas as que estão diretamente ligadas ao consumo do porco.

A cultura medieval e política da seca, a que ficou sujeita o Sertão Nordestino, não merece a grande beleza e o vigor com que se mantiveram todas estas influências, a solidariedade presente nos sertanejos, demonstra a capacidade de se reinventar, e apropriar -se de forma autônoma, 
a inclemência e a aridez do Sertão, é um ponto de inflexão necessário a nossa cultura, é revisitar-se em sua profundidade, deixando de lado os clichês e o lugar comum, é compreender que somos muitos.

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