Os feijões na contemporaneidade

Bahia de Todos os Feijões: Histórias, Tradições e Gastronomia é o tema do IX Seminário do Museu da Gastronomia Baiana (MGBA) do Senac Bahia, no dia 25 de agosto de 2015.
Culinaristas, chefs de cozinha, nutricionistas, estudantes e interessados em gastronomia e cultura são o público alvo do evento, cuja proposta é a de valorizar a culinária local e suas matérias-primas, no mês em que se comemora o aniversário do MGBA. 
A curadoria do evento foi assinada pelo antropólogo, museólogo e estudioso em gastronomia, Raul Lody, também curador do Museu.
Transcrevo a integra da nossa palestra.

Os feijões na contemporaneidade


"A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos. Hannah Arendt" 

Há coisas que não se dissociam, e quando falamos em Feijões, falamos principalmente em Pessoas, Cultura, Alimento, Famílias produtoras e principalmente em mulheres e mulheres pobres e geralmente negras. 

Nossa ruas tem marcas dessa presença, que se mantém viva, hoje talvez, muito mais na memória, mas ela segue ai, no final do século XIX e início do século XX, uma grande parcela da população feminina trabalhava fora de casa, sendo sua maioria negras, mestiças e brancas empobrecidas. "Vivemos num país que tem vergonha do seu passado, talvez por isso tenhamos tanta dificuldade de manter e preservar a nossa memória." Início de forma dramática esta minha explicação por que acredito que o fortalecimento da nossa cultura gastronômica, passa por uma nova forma de reescrever nosso passado.

Um passado que, marcado pela colonização, pelo predomínio do latifúndio e a dura experiência da escravidão, torna ainda mais árdua e difícil a nossa tarefa, que implica em romper com os profundos preconceitos que geram um enorme sentimento de perda (de identidade?) em nossa sociedade. Desagregação no Campo A escravidão e o latifúndio foram dois golpes mortais em nossa autoestima. 


O desequilíbrio social instaurado em nosso pais nos legou um atraso secular, gerando um sentimento negativo que, apesar de perdurar, nos tem mostrado cotidianamente que as coisas começam a mudar. “... o alimento não é um produto de consumo banal, ele é incorporado. 
Ele entra no corpo do comedor, torna-se o próprio comedor, participando física e simbolicamente da manutenção de sua integridade e da construção de sua identidade.” Jean-Pierre Poulain (2004)

Para todos nós, O campo sempre representou o atraso, condição encarnada no popular personagem Jeca Tatu, do escritor Monteiro Lobato. 
O Jeca Tatu não representa apenas o homem do campo, mas o brasileiro de modo geral. Ele é branco, mas é pobre. 
Não tem dinheiro, mas é esperto. 
Aproxima-se ainda dos negros, compreendendo sua situação de subalternidade. Em alguns filmes, mora no campo; em outros, se muda para a cidade. 
O personagem expressa ao mesmo tempo a nostalgia do que passou, e a esperança do que virá. 
O caipira típico foi o que formou a vasta camada inferior de cultivadores fechados em sua vida cultural, embora muitas vezes à mercê dos bruscos deslocamentos, devidos à posse irregular da terra, e da dependência dos latifundiários para prosseguir na sua faina. (...) Tendo conseguido elaborar formas de equilíbrio ecológico e social, o caipira se apegou a elas como expressão da sua própria razão de ser, enquanto tipo de cultura e sociabilidade. 
Daí o atraso que feriu a atenção de Saint-Hilaire e criou tantos estereótipos, fixados sinteticamente de maneira injusta, brilhante e caricatural, já neste século, no Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. 
O Brasil continua discutindo a formulação de modelos para organizar a nação e esse debate acaba inevitavelmente passando pela discussão do que é nacional (e, portanto, autêntico para uns, mas atrasado para outros) e o que é estrangeiro (e, portanto, espúrio para uns, mas moderno para outros). Ou seja, o país continua girando em torno da questão da identidade nacional, que é reposta, e reatualizada à medida que novos contextos são criados. 
Durante muito tempo o Brasil tinha uma população majoritariamente rural. Isto fez com que vários pensadores considerassem que o país tivesse uma "vocação agrária". Oliveira Vianna (1933:49) sustentava que "desde os primeiros dias de nossa história, temos sido um povo de agricultores e pastores (...). 

O urbanismo é condição moderníssima da nossa evolução social. Toda a nossa história é a história de um povo agrícola, é a história de uma sociedade de lavradores e pastores. 
É no campo que se forma a nossa raça e se elaboram as forças íntimas da nossa civilização. 
O dinamismo da nossa história, no período colonial, vem do campo. Do campo, as bases em que se assenta a estabilidade admirável da nossa sociedade no período imperial". O quanto alguns políticos ainda acreditavam na "vocação agrária" do Brasil, nas primeiras décadas do século XX, é bem caracterizado pela seguinte afirmação de Júlio Prestes (apud Pereira, 1965:88-89), o adversário de Getúlio Vargas nas eleições presidenciais que acabaram pretextando a Revolução de 1930: "o fazendeiro é o tipo representativo da nacionalidade e a fazenda é ainda o lar brasileiro por excelência, onde o trabalho se casa com a doçura da vida e a honestidade dos costumes completa a felicidade. (...) 
O Brasil repousa sobre o núcleo social expressado pelas fazendas". “Não existe dietética inocente. Ela informa sobre a vontade de ser e de se tornar, sobre as categorias arquetípicas de uma vida, de um pensamento, de um sistema, de uma obra”. Michel Onfray 

Este postulado do filósofo Michel Onfray, nos dá a devida dimensão da questão política no ato de comer, de produzir alimentos e o compromisso que todos nós da área de gastronomia devemos ter com este abrangente tema. Revolução Verde A partir dos anos 70 muita coisa mudou, e para pior, com um investimento maciço na monocultura e a redefinição das terras para o plantio da produção em larga escala, conforme as exigências do Agronegócio. 
Este último teve como consequências a definitiva expulsão dos pequenos produtores rurais, o êxodo rural e o sonho com as grandes cidades, que transformaram a agricultura brasileira mais uma vez em zona de exclusão. 
Apesar de termos uma cultura gastronômica forte e rica em diversidade, ela necessita ser prestigiada e amada, isso se faz com o conhecimento profundo do que temos a oferecer e ser colocado na mesa, pois, inteligência é saber tirar proveito do que está em nosso entorno. É isso que podemos constatar no aporte do negro, que com muito pouco e todas as dificuldades impostas pelo cativeiro, contribuiu de modo singular – e, porque não dizer, generoso – para a configuração da identidade culinária brasileira. 
      As cozinhas estão em permanente transformação. 
As culturas alimentares, sejam quais forem os tempos e espaços, estão postas em situações de confrontos que podem levar a certas rupturas, diante da implementação de novas técnicas, de novas formas de consumo, da introdução de novos produtos e do encontro e fusão dos mesmos, a partir da inovação e da criatividade. 
Estas novas transformações da cozinha acabam sendo absorvidas ou “digeridas” pela tradição que, em patamares seguintes criam novos modelos, adaptados aos modelos convencionais precedentes. 
Nesse sentido, a ruptura – ao provocar certa revolução culinária – traz em seu bojo os traços de novo modelo de transição, ainda que marcados pelo convencional e pelo tradicional. A relação mediada pela cultura e por saberes populares foi aos poucos substituída pelos conhecimentos científicos e tecnológicos, impulsionados pelas multinacionais em busca de novos mercados, com a promessa de uma alimentação mais saudável, barata e acessível. 
      A comida, que é um bem comum e um direito social, transformou-se em mercadoria de prateleira. 
Com essa mudança, a distância entre quem planta e quem come foi esgarçada ao ponto de se perder o antigo vínculo. Agricultores e consumidores, ambos cidadãos, não se reconhecem como parte de uma mesma rede de sinergia e dependência. 
Entretanto, na busca atual por uma reaproximação – em prol de um alimento produzido de forma justa, livre de agrotóxicos e saboroso – os mercados locais florescem com vigor nos grandes centros urbanos. 
As cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais são produtos da miscigenação cultural, fazendo com que as culinárias revelem vestígios das trocas culturais. 
Hoje, os estudos sobre a comida e a alimentação invadem as ciências humanas, a partir da premissa de que a formação do gosto alimentar não se dá, exclusivamente, pelo seu aspecto nutricional, biológico. 
O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social.

                  Novas perspectivas da gastronomia 
"Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ter saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí." 
 Monteiro Lobato 
A cada dia, novas perspectivas são alavancadas em muitas frentes neste sentido. 

Um maior conhecimento dos nossos produtos, o fortalecimento das políticas territoriais de cultura, os saberes populares e as oralidades, além do grande número de universidades de gastronomia espalhadas por todo o território nacional, têm gerado maior interesse e produzido conhecimento que, junto a jovens criadores, incentivam e promovem a valorização da nossa gastronomia. 
Novas terminologias passam a fazer parte do vocabulário de chefs e cozinheiros, inaugurando uma agenda contemporânea, começando a fazer parte de um Menu muito mais Caldoso, com a introdução de novos e pertinentes temas nesta agenda, como o são a sustentabilidade, a garantia do não desperdício de alimentos, a segurança alimentar, o consumo consciente. 
Temas que dão conta de uma nova ordem mundial quanto às nossas reservas alimentares, e tomam todos os dias os cabeçalhos dos jornais, deixando visíveis as novas preocupações no quesito gastronomia. 
Tudo isso, bem como a observação de um novo contexto do salto rural que vem dando o país, com investimentos em setores estratégicos como a Educação no Campo, o financiamento da Agricultura Familiar, conjugado ao condicionamento do não consumo de agrotóxicos nas pequenas lavouras, abre uma ampla perspectiva criativa para a culinária. 
‘‘A democratização das nossas sociedades se constrói a partir da democratização das informações, do conhecimento, das mídias, da formulação e debate dos caminhos e dos processos de mudança. 
O jovem não é o amanhã, ele é o agora.’’
Betinho – Herbert de Sousa 

Eu me considero um defensor dos valores da produção artesanal e acho que, nos últimos anos, muito do que há de mais interessante no mundo gastronômico e dos alimentos vem dessa área. 
Fico feliz por estar estimulando as pessoas à trabalharem com alma, em projetos pessoais que vão além do puramente econômico para se tornarem estilos de vida, pautados na busca da qualidade dessa produção. 
Portanto, deixo aqui minha pequena contribuição no intuito do que será discutido por todos, para pensarmos novas alternativas sustentáveis na busca de uma alimentação saudável e que assegure um legado criativo e saboroso, garantindo a sua perpetuação e o fortalecimento da nossa gente e, por conseguinte, da nossa cultura gastronômica.

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