O pai do Acarajé baiano?
No início de uma refeição no Arabia, de São Paulo, um dos mais autênticos restaurantes libaneses do Brasil, o arranjador, compositor e cantor baiano Tom Zé mordeu um falafel e exclamou: "Mas isto é acarajé!"
A dona e chef da casa, Leila Mohamed Youssef Kuczynski, adorou o desabafo. Já acreditava que o falafel - bolinho frito, temperado com especiarias, inventado no Oriente Médio, cuja massa ela prepara misturando fava seca e grão-de-bico - fosse o pai do acarajé baiano.
Mas a espontaneidade de Tom Zé, grande apreciador do quitute típico das ruas de Salvador, avalizou sua tese.
A convicção de Leila se baseia na semelhança das receitas. Em ambas, os grãos transformados em massa são previamente deixados de molho, moídos, acrescentados crus à preparação e só cozinham na fritura.
A diferença do acarajé é levar feijão-fradinho.
Jamais haverá unanimidade sobre o local exato da invenção do falafel, que os árabes consomem como um dos mezzés (os variados antepastos de sua apetitosa culinária) ou na condição de lanche, dentro do pão árabe, com tomate, cebola, pepino, salsinha e tahine (pasta de gergelim).
A culinária representa um dos aspectos mais saborosos de uma cultura, além de ser um possível recorte para análise da História e da Geografia de um lugar ou região.
Em virtude dos objetivos propostos nossa ênfase será dada ao conceito de região.
O geografo Milton Santos (1994, p. 46) afirma que “estudar uma região significa penetrar num mar de relações, formas, funções, organizações, estruturas etc., com seus mais distintos níveis de interação e contradição”. Entendemos que o conceito de região é bastante amplo para ser conceituado com algo fechado e sem mobilidade.
Dessa forma, adotamos a região como concebida por Haesbaert apud Rua (1993, p. 230) “um espaço (não institucionalizado como Estado Nação) de identidade ideológico-cultural e representatividade política, articulado em função de interesses específicos, geralmente econômicos, por uma fração ou bloco regional de classe que nele reconhece sua base territorial de reprodução”.
Esta concepção permite perceber a região como inserida na totalidade social, reconhecendo-a não só a partir dos movimentos regionalistas, de base político-cultural, mas também na relação dialética espaço/sociedade pela qual se estabelece a identidade regional (Rua, 1993).
A alguns anos a trás, o presidente da Associação das Indústrias do Líbano, Fadi Abboud, provocou discussão mundial ao reivindicar para seu povo a propriedade intelectual da receita, acusando Israel, onde ela é igualmente popular, de se apropriar de uma comida típica do seu país. "Não basta roubarem nossas terras, fazem o mesmo com a nossa cozinha", disparou ele.
Abboud assegurou que só o Líbano tem o direito de preparar o falafel.
Os árabes continuam a ser de fato os mais conhecidos adeptos da especialidade.
Mas, hoje, a questão do lugar onde ela nasceu se reduz a detalhe histórico.
O bolinho feito só de fava ou de grão-de-bico, ou combinando os dois grãos, já caiu no domínio público mundial, como a pizza napolitana, o couscous marroquino e o pão de queijo mineiro.
Um grupo de historiadores gastronômicos, porém, tende a acreditar que ele veio à luz no Egito, onde o elaboram desde a época bíblica utilizando apenas fava.
A população o chama de ta?miyya, exceto a da cidade de Alexandria, que o denomina falafel.
Segundo Leila Kuczynski, é palavra derivada de uma raiz árabe e significa "algo temperado" ou "algo apimentado".
Dali se espalhou por todo o Oriente Médio, região sem uma definição precisa de fronteiras, situada entre o nordeste da África, a Península do Sinai e parte da Ásia. Abrange, entre outros países, o Egito, Iêmen, Israel, Jordânia, Líbano, Palestina e Síria. Aliás, a respeitada enciclopédia The Oxford Companion To Food (Oxford University Press, Nova York, 1999), sublinha que os coptas, cristãos ortodoxos do Egito, reclamam a paternidade do falafel.
Eles o saboreiam nos dias de jejum e abstinência religiosa de carne.
Afirmam que a Igreja Ortodoxa Copta foi instalada no Egito pelo apóstolo São Marcos, em meados do século 1º, espalhando-se pela Etiópia e Eritreia, Sudão e atual território de Israel. Entretanto, outros historiadores sustentam que o falafel nasceu no Líbano, cuja população também consome bastante fava.
Enfim, há ainda estudiosos que localizam seu nascimento no Iêmen, na Síria e, sobretudo, na Palestina, onde a predileção pela leguminosa é enorme.
Nesse ponto, a discussão pega fogo.
O Estado de Israel foi criado na Palestina, em 1948.
Resta saber se o entusiasmo dos judeus pelo falafel vem dos tempos bíblicos ou isso aconteceu mais recentemente. Segundo o jornalista Jodi Kantor, em artigo publicado no The New York Times (A History of the Mideast In the Humble Chickpea, 10/7/2002), a cozinha israelense atual recebeu influência do gosto tradicional da região.
A receita do bolinho acompanhou as invasões dos árabes, inclusive as que eles empreenderam à África Ocidental, na qual estiveram centenas de vezes entre os séculos 7º e 19. Agora, encontram-se na região, entre outros países, Camarões, Daomé, Nigéria e Togo.
Ali, segundo se diz, o falafel ingressou na culinária de algumas etnias, a começar pela dos iorubás.
O que o nosso acarajé tem a ver com isso? Simplesmente, eram iorubás muitos contingentes de negros trazidos como escravos para a Bahia.
Eles nos transmitiram o candomblé e, reforçando a dedução de Leila Kuczynski, também o filho do falafel.
Com o ingrediente básico já trocado pelo feijão fradinho, chamavam-no akkrá.
Até hoje é conhecido por esse nome em Camarões, conforme o livro The Essential African Cookbook (Anness Publishing, Londres, 2001), da chef e pesquisadora guiana Rosamund Grant.
No Brasil, o bolinho chegou batizado de acará ou acarajé (acará, bola de fogo; jé, comer), com função sagrada no candomblé.
Para o generoso e sensual rei Xangô, comandante dos trovões e da justiça, oferecem-se os maiores, enquanto os pequenos e redondos se destinam a Iansã, uma de suas mulheres, guerreira incansável, orixá dos ventos e das tempestades.
O ofício das baianas do acarajé foi declarado patrimônio cultural do Brasil em 2012, reconhecendo uma profissão feminina historicamente presente no País: as baianas de tabuleiro.
A ABAM - Associação Nacional das Baianas de Acarajé, mantem vivo este legado através do Memorial das Baianas.
Axé pelo legado precioso, bravo e sofrido povo iorubá!
A dona e chef da casa, Leila Mohamed Youssef Kuczynski, adorou o desabafo. Já acreditava que o falafel - bolinho frito, temperado com especiarias, inventado no Oriente Médio, cuja massa ela prepara misturando fava seca e grão-de-bico - fosse o pai do acarajé baiano.
Mas a espontaneidade de Tom Zé, grande apreciador do quitute típico das ruas de Salvador, avalizou sua tese.
A convicção de Leila se baseia na semelhança das receitas. Em ambas, os grãos transformados em massa são previamente deixados de molho, moídos, acrescentados crus à preparação e só cozinham na fritura.
A diferença do acarajé é levar feijão-fradinho.
Jamais haverá unanimidade sobre o local exato da invenção do falafel, que os árabes consomem como um dos mezzés (os variados antepastos de sua apetitosa culinária) ou na condição de lanche, dentro do pão árabe, com tomate, cebola, pepino, salsinha e tahine (pasta de gergelim).
A culinária representa um dos aspectos mais saborosos de uma cultura, além de ser um possível recorte para análise da História e da Geografia de um lugar ou região.
Em virtude dos objetivos propostos nossa ênfase será dada ao conceito de região.
O geografo Milton Santos (1994, p. 46) afirma que “estudar uma região significa penetrar num mar de relações, formas, funções, organizações, estruturas etc., com seus mais distintos níveis de interação e contradição”. Entendemos que o conceito de região é bastante amplo para ser conceituado com algo fechado e sem mobilidade.
Dessa forma, adotamos a região como concebida por Haesbaert apud Rua (1993, p. 230) “um espaço (não institucionalizado como Estado Nação) de identidade ideológico-cultural e representatividade política, articulado em função de interesses específicos, geralmente econômicos, por uma fração ou bloco regional de classe que nele reconhece sua base territorial de reprodução”.
Esta concepção permite perceber a região como inserida na totalidade social, reconhecendo-a não só a partir dos movimentos regionalistas, de base político-cultural, mas também na relação dialética espaço/sociedade pela qual se estabelece a identidade regional (Rua, 1993).
A alguns anos a trás, o presidente da Associação das Indústrias do Líbano, Fadi Abboud, provocou discussão mundial ao reivindicar para seu povo a propriedade intelectual da receita, acusando Israel, onde ela é igualmente popular, de se apropriar de uma comida típica do seu país. "Não basta roubarem nossas terras, fazem o mesmo com a nossa cozinha", disparou ele.
Abboud assegurou que só o Líbano tem o direito de preparar o falafel.
Os árabes continuam a ser de fato os mais conhecidos adeptos da especialidade.
Mas, hoje, a questão do lugar onde ela nasceu se reduz a detalhe histórico.
O bolinho feito só de fava ou de grão-de-bico, ou combinando os dois grãos, já caiu no domínio público mundial, como a pizza napolitana, o couscous marroquino e o pão de queijo mineiro.
Um grupo de historiadores gastronômicos, porém, tende a acreditar que ele veio à luz no Egito, onde o elaboram desde a época bíblica utilizando apenas fava.
A população o chama de ta?miyya, exceto a da cidade de Alexandria, que o denomina falafel.
Segundo Leila Kuczynski, é palavra derivada de uma raiz árabe e significa "algo temperado" ou "algo apimentado".
Dali se espalhou por todo o Oriente Médio, região sem uma definição precisa de fronteiras, situada entre o nordeste da África, a Península do Sinai e parte da Ásia. Abrange, entre outros países, o Egito, Iêmen, Israel, Jordânia, Líbano, Palestina e Síria. Aliás, a respeitada enciclopédia The Oxford Companion To Food (Oxford University Press, Nova York, 1999), sublinha que os coptas, cristãos ortodoxos do Egito, reclamam a paternidade do falafel.
Eles o saboreiam nos dias de jejum e abstinência religiosa de carne.
Afirmam que a Igreja Ortodoxa Copta foi instalada no Egito pelo apóstolo São Marcos, em meados do século 1º, espalhando-se pela Etiópia e Eritreia, Sudão e atual território de Israel. Entretanto, outros historiadores sustentam que o falafel nasceu no Líbano, cuja população também consome bastante fava.
Enfim, há ainda estudiosos que localizam seu nascimento no Iêmen, na Síria e, sobretudo, na Palestina, onde a predileção pela leguminosa é enorme.
Nesse ponto, a discussão pega fogo.
O Estado de Israel foi criado na Palestina, em 1948.
Resta saber se o entusiasmo dos judeus pelo falafel vem dos tempos bíblicos ou isso aconteceu mais recentemente. Segundo o jornalista Jodi Kantor, em artigo publicado no The New York Times (A History of the Mideast In the Humble Chickpea, 10/7/2002), a cozinha israelense atual recebeu influência do gosto tradicional da região.
A receita do bolinho acompanhou as invasões dos árabes, inclusive as que eles empreenderam à África Ocidental, na qual estiveram centenas de vezes entre os séculos 7º e 19. Agora, encontram-se na região, entre outros países, Camarões, Daomé, Nigéria e Togo.
Ali, segundo se diz, o falafel ingressou na culinária de algumas etnias, a começar pela dos iorubás.
O que o nosso acarajé tem a ver com isso? Simplesmente, eram iorubás muitos contingentes de negros trazidos como escravos para a Bahia.
Eles nos transmitiram o candomblé e, reforçando a dedução de Leila Kuczynski, também o filho do falafel.
Com o ingrediente básico já trocado pelo feijão fradinho, chamavam-no akkrá.
Até hoje é conhecido por esse nome em Camarões, conforme o livro The Essential African Cookbook (Anness Publishing, Londres, 2001), da chef e pesquisadora guiana Rosamund Grant.
No Brasil, o bolinho chegou batizado de acará ou acarajé (acará, bola de fogo; jé, comer), com função sagrada no candomblé.
Para o generoso e sensual rei Xangô, comandante dos trovões e da justiça, oferecem-se os maiores, enquanto os pequenos e redondos se destinam a Iansã, uma de suas mulheres, guerreira incansável, orixá dos ventos e das tempestades.
O ofício das baianas do acarajé foi declarado patrimônio cultural do Brasil em 2012, reconhecendo uma profissão feminina historicamente presente no País: as baianas de tabuleiro.
A ABAM - Associação Nacional das Baianas de Acarajé, mantem vivo este legado através do Memorial das Baianas.
Axé pelo legado precioso, bravo e sofrido povo iorubá!
Bárbaro!
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