A Gastronomia e o Patrimônio

24 de Novembro,  comemora-se o Dia Nacional da Baiana de Acarajé.
O patrimônio cultural de um povo é formado pelo conjunto de saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que remetem à sua história, memória e identidade, bem como pelos bens culturais, edificações e obras de arte.





















Compreender a gastronomia como referência cultural potencializa a sua patrimonialização quer em virtude das práticas, como por exemplo os rituais de comensalidade, quer dos processos, produção tradicional de alimentos ou de objetos que comporta. 

A produção e o consumo dos alimentos fundamentam-se em processos culturais e sociais que integram as identidades coletivas e inscrevem a gastronomia no patrimônio cultural imaterial. 

Estando em Salvador, vale a pena conhecer o Memorial da Baiana do Acarajé 
O memorial integra o Pontão de Cultura criado em 2008, por meio de convênio entre o Iphan e a Associação das Baianas de Acarajé, Mingaus e Receptivos (Abam) com a finalidade de fortalecer ações de salvaguarda do ofício. Essas ações visam apoiar sua continuidade de modo sustentável por meio de melhorias das condições sociais e materiais de transmissão e reprodução. Gerenciado pela Associação das Baianas de Acarajé, Mingau e Receptivo do Estado da Bahia (ABAM), o espaço expositivo tem como objetivo mostrar a tradição e história das baianas, que receberam o título de Patrimônio Cultural do Brasil (2005) e da Bahia (2012). 

Localizado no centro histórico da capital baiana, o memorial é resultado de ações empreendidas por uma rede de parceiros constituída pelo Iphan, responsável pela articulação das ações de salvaguarda orientadas por sua Superintendência na Bahia e que envolvem ainda a Secretaria de Cultura do estado, na figura do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia, a Prefeitura Municipal de Salvador e o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) do Iphan, responsável pela elaboração de projeto expográfico para o memorial. 
Rita Maria Ventura dos Santos, que há mais de dez anos dirige a ABAM – Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos da Bahia.  
A reformulação da área expositiva do memorial era antiga demanda da Abam, parceira na realização do inventário que embasou o registro do ofício como patrimônio cultural e em outros projetos de apoio ao artesanato associado à imagem e ao trabalho da baiana de acarajé, como os fios-de-contas, pano-da-costa e a roupa de baiana, desenvolvidos pelo CNFCP. 

Discutido com o grupo desde 2007, o projeto foi concebido para integrar os diferentes espaços do memorial, cozinha, sala de oficinas, salas de exposição, centro de referência,  numa perspectiva que potencialize a difusão dos conhecimentos e modos de fazer associados ao ofício da baiana. 

Trata-se de um patrimônio generalizado e que valoriza a memória, a cultura e a identidade. 
A performance culinária contém processo de identificação que se recria a cada nova prática de cozinhar e comer, prática cotidiana que interpreta o imaginário alimentar: ao mesmo tempo em que os pratos se repetem, existe uma reinterpretação dos elementos em jogo. 
Quando por exemplo falta um dos ingredientes, ele é substituído ou suprido, isto faz com que versões da mesma receita se multipliquem. 
As mudanças vão sendo incorporadas, produzindo a apropriação, a patrimonialização de um novo ingrediente alimentar. Porque escolher um prato em detrimento de outro produz um processo seletivo de alimentos, condimentos e procedimentos de elaboração que identificam os comensais como um conjunto social, possuem ritos, tradições .

Trata-se de um conceito de gastronomia que comporta o conjunto das cozinhas somado ao conhecimento e ao consumo (COLLAÇO, 2013). 
O projeto Turismo Cultural en la América Latina y el Caribe lançado pela UNESCO, em 1996 , valoriza as receitas tanto quanto os monumentos no âmbito do turismo cultural, privilegiando o patrimônio gastronômico regional. De acordo com Alvarez (2002, p.13), a falta de reflexão na América Latina sobre o assunto impediu a transformação do “patrimônio culinário em verdadeira experiência cultural, tanto para os residentes quanto para os visitantes, e como uma fonte importante de recursos”. A escolha dos alimentos põe em jogo um conjunto de fatores de ordem ecológica, histórica, religiosa, cultural, social e econômica ligados a uma rede de simbolismos e rituais segundo Álvarez (2002).

Atribui-se ao século XIX o apogeu da arte culinária francesa, entre outros fatores, em decorrência da classe de novos ricos desejosos de conhecer as regras da gastronomia e da haute cuisine. Surgem escritores especializados no assunto como, por exemplo, Grimod de la Reynière e Brillat Savarin, autor do livro A fisiologia do gosto, publicado em 1825, o que o converterá no filósofo da mesa (FRANCO, 2001). 


Para Savarin (1995) a gastronomia tem como objetivo a conservação do homem por toda a cadeia alimentar, desde a cultura que produz determinado cardápio até o seu processamento fabril, nesse sentido, engloba a cozinha e ou a culinária. Para Revel (1996) a cozinha e ou a culinária permeia a vida cotidiana e os costumes, diz respeito aos ingredientes disponíveis, aos pratos e receitas elaborados, às formas de preparo e cocção com seus respectivos utensílios. Já Fischler (1995) amplia o entendimento do termo cozinha e diz que nele estão inclusas as representações, crenças e práticas de colheita e consumo compartilhadas por indivíduos que fazem parte de uma determinada cultura. Contreras e Gracia (2011) complementam ao destacar que a forma como nos alimentamos, os ingredientes escolhidos e a maneira de cozinhá-los se relaciona ao território onde se vive, pois este território tem suas formas de produção, abastecimento e comércio que o caracteriza. 

Segundo Collaço (2013) é difícil discernir os limites entre gastronomia e cozinha, mas de modo geral a cozinha é vista como a expressão cultural de um povo, sendo forte elemento identitário, enquanto a gastronomia integra um conjunto de cozinhas, cada qual com seu imaginário (local, nacional, regional, refinado e tradicional) somado ao conhecimento e ao consumo. 

Do que se conclui que a gastronomia engloba toda a cadeia alimentar, do plantio ao consumo, bem como a cultura e a simbologia relacionadas aos ingredientes e às formas de prepará-los. 

A palavra patrimônio, por sua vez, vem do latim pater que significa pai, é aquilo que o pai deixa para o filho em termos financeiros, passando a ser usada para se referir a bens ou riquezas de pessoas, famílias e empresas. Adquire sentido de propriedade coletiva após a Revolução Francesa, em razão da destruição dos lugares e objetos associados à nobreza e ao clero, ao que os intelectuais argumentaram que além do valor econômico e artístico representavam a história da França, pertenciam a todos (BRAYNER, 2007). 




Mas patrimônio não é só um conjunto de bens da comunidade ou população, integra tudo o que é considerado valioso para as pessoas. 
Ele fortalece a noção de pertencimento dos indivíduos a uma sociedade, grupo ou lugar. “O patrimônio cultural de um povo é formado pelo conjunto de saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que remetem à história, à memória e à identidade desse povo” (BRAYNER, 2007, p.12). 
No uso comum a palavra referência diz respeito a um padrão de qualidade, um modelo, uma informação de avaliação sobre o objeto, obras referenciais, aquelas que obrigatoriamente têm que ser citadas quando se realiza pesquisa em determinado campo. Sua conotação é a de se ter um ponto de apoio, uma “verdade” que todos aceitam. 

Já a expressão referência cultural enfatiza a diversidade dos sentidos e valores atribuídos pelos indivíduos a bens e práticas sociais. São representações que configuram identidade para os habitantes de uma região, rementem à paisagem, às edificações e objetos, aos “fazeres”, “saberes”, às crenças, hábitos etc. 
Portanto, não corresponde aos objetos considerados valiosos em si mesmos, nem colecionáveis.

Quando os grupos sociais identificam elementos como particularmente significativos, os ressemantizam, relacionandoos a uma representação coletiva (LONDRES, 1995). 

O patrimônio de uma comunidade é constituído por bens e referências culturais composto por objetos, práticas e lugares. Para se referir aos edifícios, aos monumentos, aos documentos e aos objetos, o termo adotado é material ou tangível, portanto são referências culturais materiais. 
E para se referir aos saberes, às habilidades, crenças, práticas e modos de ser das pessoas, o termo adotado é imaterial ou intangível, são referências culturais imateriais (BRAYNER, 2007). 
Mas estes bens e referências culturais pertencem a diferentes sistemas de linguagem: a arte, arquitetura, arqueologia e outros. Para que um objeto se torne um patrimônio ele deve perder sua função, sendo acrescido de um valor específico de patrimônio. O objeto além de seu sentido original ganha outros significados e muda o seu sistema de valor (LONDRES, 2005). 
Uma das formas para se converter em patrimônio se dá por meio do reconhecimento oficial, que no caso do Brasil é feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) criado em 1937. 
Nos anos 1970 os critérios de avaliação do patrimônio cultural começam a ser revistos, o que resultará em nova proposta que incorpora a expressão “referência cultural” (LONDRES, 1995). 
A Constituição Federal de 1988, por meio dos artigos 215 e 216, ampliou a noção de patrimônio cultural ao reafirmar os bens culturais de natureza material e reconhecer os de natureza imaterial, estabelecendo formas específicas de preservação além do já conhecido tombamento, como o inventário e o registro, onde se reconhece que o bem imaterial integra o patrimônio cultural ao inscrevê-lo em um dos Livros de Registro, sendo eles: saberes, celebrações, formas de expressão e lugares, identificados a seguir. 
O inventário comporta a descrição e documentação da manifestação cultural. 
Reconhece-se a necessidade de se incluir bens culturais que sejam referências dos diferentes grupos formadores da sociedade. 
O Departamento de Patrimônio Imaterial que opera dentro do IPHAN visa preservar o bem cultural imaterial, cuida dos processos, práticas, ofícios, saberes artesanais, os conhecimentos das pessoas relativo às formas de pescar, plantar, cultivar, colher, utilização de plantas como alimento e remédio, construção de moradias, danças, músicas, modos de vestir e de falar, rituais, festas religiosas e populares, relações sociais e familiares que revelam os aspectos da cultura cotidiana de uma comunidade. 
Por meio do registro se reconhece que um bem faz parte do patrimônio cultural da nação brasileira, ele se efetiva por meio da inscrição do bem em um ou mais de um dos seguintes livros: 
*Livro de Registro dos Saberes conhecimentos e modos de fazer do cotidiano das comunidades; 
*Livro de Registro das Celebrações rituais e festas do trabalho, da religiosidade, do entretenimento, e outras práticas da vida social; 
*Livro das Formas de Expressão manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas, e lúdicas; 
*Livro dos Lugares espaços como mercados, feiras, praças, santuários, onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. 
Os bens inscritos em um ou mais livros de registro recebem o título de Patrimônio Cultural do Brasil, que compete ao poder público documentá-lo, divulgá-lo, identificar os significados atribuídos ao bem e produzir material visual sonoro sobre suas características e contexto cultural (BRAYNER, 2007). 

A inscrição dos bens pode ser feita por instituições públicas e privadas, organismos internacionais e por cada cidadão. 
A pesquisa realizada sobre os sistemas culinários registrados pelo IPHAN (17/12/2014) evidenciou que todos se encontram inscritos no Livro dos Saberes :
Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, Vitória, Espírito Santo (2002), 
Ofício das Baianas de Acarajé (2005);
Modo artesanal de fazer queijo Minas nas regiões do Serro, Serra da Canastra e Serra do Salitre, Minas Gerais, (2008). 

O Registro do Ofício das Baianas de Acarajé resultou do inventário de identificação e referenciamento dos feijões e das mandiocas, no âmbito do Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular, do Centro Nacional de Cultura Popular, vinculado ao Departamento do Patrimônio Imaterial do IPHAN, em 2001 (BRAYNER, 2007). 

O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) criado em 2000 pelo IPHAN constitui um instrumento de conhecimento e documentação de bens culturais que remete às referências culturais de lugar ou grupo. 

Trata-se de um instrumento de conhecimento do valor atribuído pelos grupos sociais a estes bens, tem como objetivo reconstituir o repertório de bens e práticas que reproduzem os ritos, símbolos, saberes e lugares (LONDRES, 2009). 
O primeiro passo para se preservar algo é conhecê-lo, portanto, inventariar significa descrever e documentar uma manifestação cultural por meio de entrevistas, textos, fotografias, desenhos, filmagens etc., documentando o que foi estudado na realização do inventário. 

O Inventário Nacional de Referências Culturais abrange as seguintes categorias de bens culturais:
1 Ofícios e tecnologias praticados por determinado grupo em determinada região, patrimônio dos praticantes e da comunidade que se beneficia com isto; as atividades vigentes podem ser acrescidas das ditas tradicionais, porém em desuso. 
2 Celebrações festas religiosas, jogos, brincadeiras. 
3 Artes, teatro, dança, literatura, música e seus respectivos lugares. 
4 Lugares (LONDRES, 2009). 
A salvaguarda do patrimônio imaterial não é tarefa apenas dos órgãos governamentais, estendendo-se à população. 
O IPHAN contribui como parceiro de instituições e grupos locais que querem preservar bens e práticas que identificam como patrimônio, através de repasse de informações e conhecimento, auxiliando na divulgação e na sugestão de parceiros. 
 O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) criado através do Decreto de n. 3.551/2000 com o objetivo de implementar uma política nacional de inventário, registro e salvaguarda de bens culturais de natureza imaterial, visa contribuir para a preservação da diversidade cultural, divulgar informações sobre o patrimônio cultural brasileiro, captar recursos, constituir parcerias e apoiar iniciativas e práticas de preservação desenvolvidas pela sociedade (BRAYNER, 2007, p.23). 
Muitas vezes as ações de salvaguarda eficazes nascem de propostas pouco complexas. Em 2003 o Iphan foi procurado por grupo preocupado com o desaparecimento de um tipo de renda, o Bico de Singeleza, produzido por mulheres no município de Marechal Deodoro, Alagoas. 

Só restava uma senhora idosa que sabia produzir a renda, em parceria com a prefeitura local e a Secretaria Estadual de Cultura foram realizadas oficinas de aprendizagem do Bico de Singeleza ministrada por Dona Marinita. 
Hoje a renda é produzida por maior número de artesãs, contribuindo para a renda das famílias e para permanência deste bem cultural (BRAYNER, 2007). 
Alguns bens registrados como patrimônio cultural do Brasil quando da entrega dos processos de recomendações foram acompanhados por projetos que envolviam ações necessárias à sua preservação, os Planos de Salvaguarda. 
 Eles estabelecem ações para continuidade da manifestação cultural registrada por parte do Estado e da sociedade (BRAYNER, 2007). 
Álvarez (2002) parte da noção de patrimônio de Pierre Nora (1984), ancorado na nação, para um patrimônio de carácter simbólico e de identificação, social, étnico e comunitário.

 No roteiro da roça à comida na boca, desencadeia-se o processo de patrimonialização, onde intervém um imaginário construído, sobrepondo-se diversos referenciais identitários. A alimentação é um ato social e cultural que não está isolado, convivem as variantes do indivíduo - regulações bioquímicas, metabólicas e psicológicas -, com as do meio - recursos disponíveis, condicionantes ecológicas, tecnologia e outros. Nela o homem biológico e o social encontram-se intimamente ligados (ÁLVAREZ,2002). Seria a moqueca apenas uma peixada? Alimentação e identidade em Salvador, Bahia (Brasil) 

¿La moqueca seria unicamente un plato de pescado? Alimentacion e identidad en Salvador, Bahia (Brasil) https://aof.revues.org/6475?lang=fr

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