Na terra do açúcar: doces!

A mesa de doces era comum nas varandas nobres, nas festas religiosas e os rapazes elegantes costumavam levar rebuçados – um tipo de caramelo que podia ou não conter ovos – nos bolsos, para oferecer às senhoras. 



O saber-fazer da Ilha da Madeira circulava entre os amantes de doçaria. De lá vinham conservas de doces em que entravam especiarias vindas de longe: cravo das Molucas, noz moscada de Banda, pimenta e gengibre de Malabar, canela do Ceilão e açúcar do Brasil

Diz Câmara Cascudo que o bolo possuía função social indispensável na vida portuguesa, representando a solidariedade entre as pessoas. Figuravam sempre em noivados, casamentos, visitas de parida, aniversários convalescença, enfermidade ou condolências. Ele significava oferta, lembrança, prêmio, homenagem. 

O doce, diz ele, “visitava, fazia amizades, carpia e festejava”. Em bandeja mais ou menos enfeitada, era oferecido ao rei, ao cardeal, aos príncipes, fidalgos, compadres e vizinhos. Desenhos feitos com pó de canela, formatos simbólicos, adornos com açúcar fundido deixaram sua história na doçaria portuguesa.

Qualquer bandeja de bolo ou doces era decorada. Panos com franjas ou “papel decorado” eram obrigatórios. 

Os segundos eram tradição seriamente respeitada, verdadeiras maravilhas de fineza e graças. Sua fabricação foi arte de freiras, pois era nos conventos que se aprendia a prepará-los. Tesourinhas especiais e muita paciência transformavam o rude papel em rendas finíssimas. 

No Nordeste, as meninas da elite iam aprender a “cortar papel para bolo” com matronas de saber reconhecido. O epíteto de “boa quituteira”, “mão de ouro nos doces” ou “boleira” era dote potencial para o casamento.

Menos sofisticado que as receitas portuguesas foi o emprego do leite de coco que, no Brasil, encontrou o milho. E juntos, tiveram no carimã, no polvilho, na goma de mandioca e no fubá, parceiros ideais para fazer bolos, cremes, papas, mingaus, tortas e pudins. 

A cocada e o doce de coco, além das comidas juninas como a pamonha, a canjica e o mungunzá, o cuscuz e a tapioca tem na fruta importada da Índia, o maior aliado. 

Gilberto Freyre lembra ainda a presença do doce nos pratos salgados como a lagosta ao molho de coco doce; a fritada de siri ou a guaiamunzada com arroz de coco; o marisco ao molho de coco.


Gabriel Soares de Souza reservou páginas às senhoras portuguesas, primeiras donas-de-casa na Colônia, e pioneiras em adaptar as receitas da terrinha aos produtos brasileiros, como o cará. “Da massa destes carazes – informa o cronista – fazem os portugueses muitos manjares com açúcar”. 

E dos amendões, ou castanha-de-cajú: “Desta fruta fazem as mulheres portuguesas todas as castas de doces que fazem de amêndoas cortadas e açúcar as fazem cobertas de açúcar de mistura com confeitos”.


As frutas cristalizadas eram guloseima encontrada em toda a Colônia. Mergulhava-se o fruto numa calda espessa e depois de retirado, ele era posto ao sol, ou sobre o forno do fogão a lenha para secar. Algumas delas ficavam, no dizer popular, “doces como torrões de açúcar”: caso das mangas ou de sapotis de Itamaracá na Bahia. 

Em caixotes, goiabadas e marmeladas circulavam entre as capitânias como um dos produtos mais consumidos, além de ser vendidos nas tendas de secos e molhados.


O vice-cônsul de S. M. britânica na Bahia e Paraíba, James Wethrell revelou o prazer em degustar “the most excellent” geleia de pitanga, o doce de araçá e o maracujá e o mamão em torta. Suspiros, diz ele, eram vendidos pelas ruas em feriados. Já o francês Ferdinand Denis adorou o arroz doce salpicado de canela. 


A rapadura, “massa dura de açúcar ainda não depurado”, veio das Canárias e acompanhava tropeiros e viajantes dentro da Colônia, notadamente no sul. Dotada de alto valor nutritivo era preparada em vasilhames apropriados e depois, embrulhada em folhas secas da própria cana, o que lhe permitia uma conservação invejável. Era acompanhamento para carne-de-sol, farofas, jerimuns, batatas, umbuzada, cuscuz e paçoca. Dela se faziam doces de banana, goiaba, araçá, caju, abacaxi, laranja ou guabiraba. Com mel de rapadura se saboreava – e até hoje se saboreia – inhame, macaxeira ou farinha.


A tradição da doçaria passou da cozinha à rua, graças aos tabuleiros das negras forras, tabuleiros enormes e forrados com panos alvos. “Negras doceiras”, contou Freyre, cuidadosas em enfeitar seus doces com papel azul ou encarnado, arrumados sobre folhas de bananeiras. “Desses tabuleiros de pretas quituteiras, uns corriam as ruas outros tinham seu ponto fixo à esquina de algum sobrado grande ou pátio de igreja, debaixo de velhas gameleiras. 

Aí os tabuleiros repousavam sobre armações de pau escancaradas em X […] 

De noite os tabuleiros se iluminavam como que liturgicamente de rolos de cera preta; ou então de candeeirinhos de folha-de-flandres ou de lanternas de papel”. Entre escravas, não faltou a que fugisse de seus senhores, levando consigo tabuleiros, balaios de frutas secas, bolos e doces como certa Simoa, vendedora de bolinhos, negra fula bem-falante que, num belo dia de 1837, fugiu de Aflitos, Recife, da casa de seu senhor Pimentel.


Conservou-se na Colônia – é sempre Gilberto Freyre quem relata – a tradição de acompanhar as procissões, pessoas oferecendo doces aos penitentes que se flagelavam. Sobretudo aos que representavam figuras da Paixão e da História Sagrada, os “bons”. Aconteceu que um desses beneméritos ofereceu o regalo a um indivíduo que fazia papel de judeu, mau e inimigo de Nosso Senhor. Foi denunciado à Inquisição!


Nem os remédios escaparam do doce. 

Para tratamento de tosses e bronquites se tornaram célebres as balas de doces de cambará, uruçu e agrião. Para “abrir o leite” de mulher parida, um pouco de cachaça com açúcar. Os mortos também gostavam de doces. Confirma a prática, o hábito de se “pôr a mesa às almas” – termo corrente nos processos inquisitoriais – normalmente em caminhos ou encruzilhadas, alimentando-as com pão, bolos, queijo, mel, água e vinho. 

O cardápio servia para pedir curas, dava conta do paradeiro de objetos perdidos, pessoas vivas e até das já mortas.


Mary del Priore. “História da Gente Brasileira”. Editora LeYa, 2016. 

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