Pequeno Dicionário da Cozinha Baiana

Verbete-L Lelê de Coco
Bolo de massa consistente, feito à base milho vermelho pilado grosso, em pilão, cozido em calda de açúcar e leite de coco, sementes de erva doce, cravo e canela, sem adição de ovos, disposto em tabuleiro e servido frio em quadradinhos, salpicados com coco ralado.



Até hoje, vendido por baianas nas ruas e praças da cidades, o Lelê faz parte dos saborosos alimentos ligados aos festejos Juninos na Bahia, bem como, das cozinhas dos terreiros, servidas como merendas, nas festas públicas das casas de candomblé. 
O lelê é também interpretado como uma comida sagrada dos orixás caçadores, Odé, e de Logun Edé, orixá relacionado a caça e a pesca, preservando e marcando um lugar especial das comidas de milho nos cardápios afrodescendentes.  


Sabores, historias e tradição transformaram o Milho, no mais tradicional elemento da doçaria brasileira dos festejos Juninos. 
Nossa memoria está fincada nos primeiros aprendizados alimentares, este conjunto complexo de formas sociais aprendidas, afirma o antropólogo Sidney Mintz permanecem, talvez, para sempre gravadas em nossa consciência, mesmo diferenciando-se ao longo de nossa vida, elas fazem parte de uma herança afetiva, impregnada de emoções e significados. 
Ao estabelecer-se como uma forte tradição, as festa juninas no nordeste, ao longo dos anos, vai perdendo características e incorporando outras, mas se caracteriza pela continuidade, naturalmente resistente às inovações, e neste jogo, reforçam a importância das vivencias do passado.

Citação do livro Tereza Batista, cansada de guerra: 
"O xerém, prato da preferencia de Jorge Amado, segundo ele por ser bem rustico, é feito com o bagaço do milho(também chamado xerém) que sobrou da canjica-prato fino que acabou de ser feito. 
Ele conta que em sua casa em Ilhéus, quando era menino, sempre que fazia canjica, em grandes tachos, faziam também o Xerém: Como eram feito com as sobras tinham-se em bem menor quantidade e por isso mesmo disputadíssimo." 
Em Minas Gerais, o milho quebrado tem o nome de "canjiquinha", é o ingrediente básico do prato (conhecido como "quirera de milho" em São Paulo e outros Estados) quanto ao cozido propriamente dito. 
Os vocábulos "xerém" e "xarém" têm origem controversa, uma delas, originam-se de um termo árabe que designa "papas de grãos". 

Levando em conta as técnicas e a utilização da Sêmola de trigo no Cuscus, por extensão imagina-se que esta seria a melhor versão. 
No século XV, ao conquistar a Península Ibérica, os árabes incluíram a cana-de-açúcar nas mudas que passariam a produzir um dos únicos produtos agrícolas destinados a alimentação, que foi alvo de disputas e conquistas, além de marcar profundamente nossa cultura, mobilizando homens e nações.
A partir daí, de Portugal e Espanha, a cana-de-açúcar desembarca na América pelas mãos de nossos desbravadores. Estava assim, sacramentada a invasão mais doce da história brasileira, uma cultura que se perpetuaria pelo séculos seguintes. 

Grande parte dos pratos feitos a partir do Milho no Brasil, remetem a presença no negro em comunidades agrarias, à lavoura eram embalados por cantigas de trabalho dos escravos.
Segundo a historiadora Claudia Lima, no livro (Tachos e Panelas, historiografia da alimentação brasileira) "na primeira fase do ajustamento dos escravos africanos no Brasil, eles não consumiam de bom grado o milho, preferindo as bananas e o inhame, para facilitar a adaptação á futura dieta regular em terras brasileiras, em finais do seculo XVII, o milho e a mandioca, foram inseridos na Africa, e em seguida incorporados a refeição negra, escrava e livre.
Os negros Angoleses, das províncias meridionais e centrais, dominavam o "fubá", nome em Quimbundo dado á farinha de milho, e o "Angu" para o pirão de milho, um mingau mais consistente.
Pelo interior da Bahia, para o centro e o sul do Brasil, estendia-se a geografia do Milho."

         A musica e o trabalho escravo

Em Curvelo, Minas Gerais, a botânica e naturalista inglesa Marianne North, registrou imagens de um engenho, na segunda metade do século XIX: “Uma parte do terreiro estava coberta com espigas de milho recém-colhidas, que os escravos debulhavam debaixo do lume de algumas fogueiras, alimentadas com a palha das cascas e o bagaço de cana-de-açúcar. 


A força de trabalho dos negros foi explorada durante vários séculos no Brasil

A força de trabalho dos negros foi explorada durante vários séculos no Brasil-
 foto Instituto Moreira Sales

Um homem puxava um tipo de canto monocórdio, que o resto acompanhava com uma série de uivos, não sendo exatamente o tipo de melodia negra que escutamos nas ruas de Londres” – estranhou a viajante, que não conhecia a beleza dos vissungos. 


Esses cantos eram chamados de “Vissungos”, palavra que vem do umbundo ovisungo (cantiga, cântico), adaptados às fases de trabalho nas minas, outros parecendo cantos religiosos ajustados à ocasião. 


O filólogo mineiro Aires da Mata Machado Filho, conta que os negros no serviço cantavam o dia inteiro, antes mesmo do nascer do sol, dirigiam-se à lua, em cantigas de evidente teor religioso. 

Pela manhã, entoavam um “Pade Nosso”, pedindo a Deus e Nossa Senhora que abençoassem seu trabalho e comida: 
“Otê! Pade Nosso cum Ave-Maria, securo câmera qui t´Anganamzambê, iô…”. 

A seguir, o cantador mestre acordava os companheiros: 
“Galo cantou, rê rê/ Cacariacou/ Cristo nasceu/ Galo já cantou”. 

À lua era pedido que “furasse o buraquinho do dia”: 
“Ai! Senhê!/ Ô…ô imbanda, combera ti, senhê”. 

Ao meio dia, o cantador avisava à mulher de serviço que o sol ia alto: era hora do almoço: 
“Andambi, ucumbi u atundá…? Sequerende…”
 Para ajuntar terras nos montes, apressar a marcha do cavalo, avisar o encontro de um diamante, falar “língua de branco”, enterrar os mortos, ironizar a mau alimento que lhes era servido, alertar sobre fogo nos campos, perseguir a caça no mato, fugir para os quilombos, lembrar os pais, pedir uma roupa nova, contra feitiços, enfim, para tudo, cantavam os cativos. 
Segundo a historiadora Mary del Priore, os vissungos eram parte importante do cotidiano das fazendas e sua música, marcavam o ritmo dos trabalhos e dos dias, informando sobre o que se passava. 
Fiandeiras, capinadores da roça e no mutirão de construções, outros cantos enchiam as serras mineiras. 
Cantava-se até para reclamar do frio: “Auê/Duro já foi senguê” ou pedir chuva: “Ongombe coi i pique." 

Sem a formalidades da língua escrita, muitas das palavras de origem africana que identificamos no nosso vocabulário cotidiano, se referem à expressões informais aparecem na gastronomia (canjica, cachaça, caruru, moqueca, sarapatel, munguzá, fubá e lelê).

A presença do negros e negras nos centros urbanos e sua relação com os alimentos
O comércio alimentar, teve presença importante do negro escravo na Salvador dos séculos XVIII e XIX. 

Os trabalhos dos ganhadores agrupados em "cantos", eram de suma importância para o comércio baiano,  a presença deles nos espaços públicos era motivo de desavenças com os comerciantes do local. 
Segundo o historiador João José Reis, os cantos podem ter surgido inspirados nos grupos de trabalhos voluntários que existiam na África Ocidental, conhecido como oro entre os iorubas. 
“Os cantos baianos tinham nome de ruas, lagos, ladeiras, ancoradouros: canto da Calçada, do portão de São Bento, da Mangueira, do cais Dourado” (REIS,1993,13).
O autor também argumenta que o sentido da palavra canto pode significar esquina, lugar estratégico na cultura da rua, um espaço de confluência, reunião.
O professor João Reis informa, que os ganhadores que se dedicavam ao comércio de produtos da lavoura tinham uma grande influencia no mercado, por fazerem parte de uma liga africana de cunho comercial,  rede essa, que influenciava o mercado do Recôncavo que abastecia Salvador. 

As mulheres e o comercio de rua
A outra ponta da rede do comércio dos africanos abrangia Salvador, e nela como ressalta Reis, “reinavam ambulantes e quitandeiras, em sua grande maioria mulheres”. 
Arthur Ramos destaca a tradição da venda de alimentos nas ruas no seculo XIX, onde revela suas principais iguarias, o Acaçá, o Acarajé, e o Lelê:
Ainda hoje há expressões iorubas saidas dos terreiro e recorrente entre os negros baianos, carregadores das docas, as negras vendeiras de acaça e acarajé. 
Olé, Olé, patá, patá, abalá icó ou lelê, iô, aticum fererê, aticum fererê [...]
Invocar a proteção para o tabuleiro de guloseimas.
(Ramos, s\d, p 306)

O censo, do distrito de Santana, em 1849 apontava, que a maioria das mulheres libertas declarou “mercadejar diversos gêneros”, outras mais especificas citaram: mingau, acaçá, abarém, frutas, verduras, feijão, arroz, milho, pão e peixe. Elas monopolizavam o pequeno comercio de gêneros alimentícios que abastecia a cidade. 
"Em 1835, após a revolta dos malês, foi sugerido por uma comissão de juízes, que os africanos fossem proibidos de comercializar alimentos, embora fosse contra a presença dos africanos nas ruas, o chefe de policia, discordou da proibição, lembrando a “carestia repentina” gerada pela proibição anterior" 
Florismar Menezes Borges Acarajé:tradição e modernidade.

É preciso entender que a escravidão legou as mulheres negras a luta pelo sustento domestico, suas ancestrais escravas da áreas urbanas viviam como escravas de ganho, na venda de iguarias pelas ruas da cidade do Salvador, para nutrir o sustento do seu senhor e o seu próprio. 
Do mesmo modo,  no continente africano as mulheres exerciam e ainda exercem papel expressivo na economia domestica como vendedoras ambulantes nas feiras livres.  


Maculelê-Luta ou dança?
As raízes do Maculelê remontam provavelmente às antigas danças de espadas do Velho Mundo, especialmente as praticadas pelos árabes. 
Versões de danças com o uso de bastões, simulando espadas, são comuns na Europa e na Ásia, desde a Antiguidade, na Bahia, desde o século 18, onde chegou possivelmente através de escravos africanos ou através dos portugueses, que praticavam a antiga dança dos paulitos ou, ainda, uma mistura de ambos. Incorporou elementos indígenas, africanos e europeus. 

Os Lelês seriam os paus usados na luta ou dança folclórica originalmente praticada por negros e caboclos do Recôncavo Baiano, que simula uma luta com bastões de madeira, ao som de atabaques e cânticos. 
Algumas versões transformaram-se em verdadeiras artes marciais, em que os bastões são mesmo os principais instrumentos de luta, como no caso de estilos existentes na China e no sudeste asiático. 
Na Bahia, a dança com bastões adquiriu identidade e estilo próprio: o Maculelê. 
O mais conhecido divulgador histórico do Maculelê foi Paulino Almeida de Andrade (1876-1968), o Mestre Popó de Santo Amaro da Purificação, que também era capoeirista. Popó teria aprendido o Maculelê com descendentes de escravos malês. 
Os malês eram grandes guerreiros, formaram um grande império muçulmano na África ocidental, dos século 13 ao 16. Na Bahia, lideraram a maior revolta escrava urbana do Brasil, em 1835. A influência árabe no Império do Mali, na Idade Média, levou esses africanos ao uso da espada em batalhas, como arma alternativa. 
Segundo a historiadora baiana Zilda Paim (1919-2013), grande divulgadora e pesquisadora do Maculelê, os macuas e os malês se encontraram na Bahia, vindos da África como escravos, estavam no Recôncavo Baiano no final do século 18. Mas dificilmente teriam se encontrado na África, pois lá eles viviam em regiões muito distantes.
Os malês são do Saara ocidental, enquanto os macuas são do sudeste africano, especialmente Moçambique. 
É possível que os malês tenham assimilado essa arte dos mouros (árabes do norte da África) e repassado aos baianos. Entretanto, os povos bantos, da África Meridional, também tiveram contato com comerciantes árabes, na Idade Média. Existem versões em que o nome maculelê é associado ao nome de africanos. 
De fato, existe um povo que vive na fronteira da África do Sul com Moçambique chamado makulele ou makuleke, nessa região, por volta do século 13, emergiu um próspero centro comercial envolvendo transações com muçulmanos, que comerciavam no Oceano Índico. 

Para finalizar, com o avanço da indústria alimentar e a dissolução ou resinificação de muitas tradições acontecem em nome da rapidez e praticidade, o registro dos saberes alimentares e a manutenção das festas tradicionais visam salvaguardar técnicas e receitas e, principalmente, reconhecer tais práticas como pertencentes a um contexto cultural maior e como uma forma de expressão de um grupo social onde se desenvolve. 
Entender e valorizar esta cultura e tradição, o seu jeito de ser e ver o mundo, a sua maneira especial de se alimentar, pode-se afirmar a culinária baiana, mantém a raiz desta festa tradicional bem brasileira.




                  Receita de LeLê de Coco da Bahia 

Ingredientes: 
500g de canjiquinha 
1/2 litro de leite de coco 
1/2 litro de leite 
1/2 litro de água para a calda 
11/2 xícara (de chá) de coco ralado 
1 ½ xícara de açúcar 
Cravos, erva doce e canela 
1 pitada de sal 

Modo de Preparo: 
Deixei a canjiquinha de molho em água por uma hora (o melhor é deixar de um dia para o outro). 
Depois lave bem em água corrente, escorra em uma peneira. Prepare uma calda em ponto de bala mole, com o açúcar e água, acrescente o cravo, a canela e a erva doce em um saquinho feito com gaze (boneca). 
Acrescente o leite de coco, o leite, e a canjiquinha, até ficar uns dois dedos acima. 
Leve ao fogo e cozinhe lentamente por cerca de 30 minutos. Acrescente se desejar pedacinhos de coco seco 
Misture bem e volte para o fogo. Quando começar a ferver, baixe o fogo e vá mexendo até engrossar e o líquido ser absorvido, ele deve soltar da panela.
Despeje em um tabuleiro molhado, salpique coco ralado e espere esfriar bem. Depois corte em quadradinhos, sirva frio.

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