CARURU DE OIÁ- As comemorações de Santa Bárbara ou Iansã. A comensalidade propiciada pelo caruru estimula o princípio da solidariedade e reciprocidade.

A festa de Santa Bárbara é uma das tradições religiosas populares mais antigas da capital baiana. 

À pesar de não serem precisas, nem haver consenso quando começou a celebração, o certo é que a festa mobiliza milhares de pessoas todos os anos, com o intuito de celebrar a força e o poder do Orixá e da Santa Mártir.

"Oya (Oiá) é a divindade dos ventos, das tempestades e do rio Níger que, em iorubá, chama-se Odò Oya. Foi a primeira mulher de Xangô e tinha temperamento ardente e impetuoso. Conta uma lenda que Xangô enviou-a em missão na terra dos baribas, a fim de buscar um preparado que, uma vez ingerido, lhe permitiria lançar fogo e chamas pela boca e pelo nariz. Oiá, desobedecendo às instruções do esposo, experimentou esse preparado, tornando-se também capaz de cuspir fogo, para grande desgosto de Xangô, que desejava guardar só para si esse terrível poder."

Pierre Verger

Iniciada ainda no século XVII, a devoção à mártir cristã ganhou muitos adeptos e novos elementos depois que chegou em Salvador. Tendo passado por alguns locais da cidade, atualmente, a festa oficial acontece no bairro do Pelourinho e reúne milhares de devotos no dia 04 de dezembro.

Tiveram início na Cidade Baixa, no morgado do século XVI, sendo transferidas para a capela do Corpo Santo no início do século XIX.
Por volta de 1912 passaram a ser realizadas na Cidade Alta, na Igreja do Paço, onde permaneceram até 1935.
Nesse período mudaram-se para a Igreja da Saúde e em seguida para a Ordem Terceira do
Carmo. 

Atualmente são realizadas na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
Seus fiéis estavam, portanto, concentrados nos mercados em função da atividade comercial, mas religiosamente dispersos pela cidade.

O culto a Santa Bárbara era praticado principalmente pelos comerciantes brasileiros e africanos, população de baixo poder aquisitivo, que não possuía grandes recursos para festejar com fausto, comparada a outros festejos religiosos, a festa da mártir tinha menor visibilidade.

Considerada patrimônio imaterial da Bahia em dezembro de 2008, a comemoração que une o sagrado e o profano também vai ficar por conta da Irmandade do Rosário dos Pretos, do Mercado de São Miguel e do Centro de Culturas Populares e Identitárias.


TIA MASSI (1860-1962). Maximiana Maria da Conceição nasceu em Salvador-BA e foi a mais célebre iyalorixá do Ilê Iyá Nassô Oká. 

Segundo o antropólogo Nelson Varón Cadena, o tradicional Caruru de Iansã, ao longo de sua história revelou grandes Quituteiras baianas
como Maria Tertuliana da Silva, que preparava o prato por encomenda do comerciante Antônio Franco, da Loja Mattos, para servir ao povo, Tia Balduina, Marcolina, Tia Massi,  Maria Pequena, Conceição do Peixe, Dona Toninha e Dona Carmelia no tempo em que a organização da festa esteve sob o encargo do espanhol Leopoldo Martinez assessorado por Oscar Ornelas da barraca do Ornelas, imortalizada no samba de Tião Motorista.
O caruru de Santa Bárbara passou a ser servido também no Quartel dos Bombeiros, a partir da década de 1950, quando Izidro Monteiro, orador da festa por mais de 25 anos, incluiu o espaço no roteiro da procissão.

Durante as homenagens a Santa Bárbara, os folguedos se desenvolviam no mercado da Baixa dos Sapateiros.
Nesse local se realizavam as queimas de fogos, os banquetes, a música, as rodas de samba, todos os tipos de divertimentos populares. Essa mistura de feira, comércio e diversão pública era, como ainda é nos dias atuais, característica das festas de santos na Bahia.
A programação de 1919 prometia muitas diversões ao público, que começariam
após a procissão e só terminariam no dia 8 de dezembro. Uma banda de música tocaria no
coreto e o céu seria iluminado com a queima de “muitos foguetões, bombas, girândolas de
foguetes e trocafios”.
A noite era animada ainda pela distribuição de um farto caruru, bebida e rodas de samba, como demonstram os versos da música de Tião Motorista:

"Logo que a santa retorne
Eu vou pro samba correndo
Vou na barraca do Ornela
Tomo um limão, vou dizendo:
Pegue o tambor, meu compadre!
Deixe essa cara do bicho!
Não vou sair desse samba,
Só saio se for no lixo."


Além do samba, rodas de capoeira animavam os visitantes do mercado nesses dias
festivos.
Jorge Amado, ao escrever sobre a festa nos anos 40 do século passado, nos deixou a seguinte descrição:

"Em meio à célebre imundície desse Mercado da Baixinha, onde se venera uma imagem de Santa Bárbara, repicam os violões e batem os pandeiros.
O Mercado se transforma num único samba, onde dançam todos, os que ali têm barraca, os convidados, os penetras, as baianas.A comida é farta, a cachaça mais farta ainda."

Por que Santa Bárbara come caruru?
Na Bahia, as homenagens à santa turca ganharam novos elementos desde que
sua devoção chegou em Salvador.
O encontro de culturas possibilitou que os africanos e crioulos associassem a figura de Bárbara com a do orixá iorubá Iansã.
Com isso, as comidas à base de azeite de dendê foram incorporadas ao festejo.
Não só na festa de Santa Bárbara como nas demais festas religiosas populares era possível degustar comidas como efó, acarajé, vatapá, caruru...
Ao discorrer sobre a relação entre comida e festejo religioso popular na Bahia,
Odorico Tavares (1951) escreveu o seguinte sobre a festa da Conceição da Praia:
... Conceição da Praia é a festa da padroeira, e também a festa da comida baiana (...).
É o império do azeite-de-dendê, da pimenta, do
camarão.
E nestas filas de barracas, com seus nomes os mais belos (...)  todas estas barracas são como que cada uma delas um templo à
cozinha afro-brasileira.
É o caruru, com as múltiplas variedades; é o
vatapá, a cada hora, a cada instante, profanado em restaurante de outras terras, mas que na Conceição da Praia é esta maravilha de gosto
e de cor; é o acarajé, dourando-se ao calor do óleo fervente; é a galinha de xinxim; é o abará; é o efó... (TAVARES, 1951, p. 17-18)

O antropólogo Renato Ortiz afirma que:
"Santa Bárbara só é Iansã na medida que é uma santa católica cuja história particular encerra traços de chuva, trovão e raio.
Não é por acaso que ospais-de-santo jamais confundem seus orixás com os santos católicos, a essência dos deuses africanos permanece, por assim dizer, intactas junto à memória coletiva negra"


Nas festas populares, as chamadas comidas afro-baianas eram encontradas nessas barracas montadas nas imediações da igreja onde celebrava-se o santo de devoção.

No caso da festa de Santa Bárbara, as comidas eram servidas nas instalações do próprio morgado.
Segundo o relato detalhado de Vianna (1983), Após o retorno da pequena Santa Bárbara para o seu nicho no Mercado, era servido, à farta, caruru acompanhado de aberém, acarajé
e outros quitutes.
Corria muito aruá de milho maduro, gengibirra
e a inevitável cachaça.
Formavam-se rodas de samba e de batuque,
interrompidas por pequenas arruaças. (VIANNA, 1983, p. 37)

Mas se, nos terreiros de candomblé, Iansã come acará por que Santa Bárbara (sincretizada com o orixá Iansã) é homenageada com um caruru?
Como essa comida tornou-se um símbolo da festa de 04 de dezembro?
A explicação pode ser encontrada numa antiga correspondência santo/orixá que envolvia a figura da padroeira do morgado.
Além de Iansã, inicialmente, Bárbara foi também associada com o orixá Xangô.
A mártir cristã parece ter se tornado tão popular entre os africanos e seus
descendentes, que se tornou secundária a diferença de gênero entre a santa católica e o
orixá de Oió.
Nas palavras de Nina Rodrigues:

"Assim, em todos os terreiros e para todos os negros que conhecem os santos africanos, Sango é equivalente de Santa Bárbara ou é a própria Santa Bárbara.
Mas Sango sendo masculino e Santa Bárbara do sexo feminino era preciso que entre eles houvesse de comum um ponto de contacto tão capital que tornasse secundária a diferença de sexo.
Sango é o deus do trovão e é representado por meteoritos, machados de pedra ou pedra de raio.
Santa Bárbara é por sua vez a padroeira das
tempestades e dos raios de que foi vítima. Como é o sentimento de terror provocado pelo fenômeno físico do trovão e do raio, que
constitui o elemento fundamental da crença e a origem da invocação do patrono, a identidade mental dos protetores foi mais forte do que as
suas diferenças individuais de sexo."

(Nina RODRIGUES, 2014, p. 129) 


Ou seja, a escolha do caruru para homenagear Santa Bárbara deveu-se à sua identificação com o orixá Xangô, Rei do império de Oió, Xangô come quiabo, um alimento ligado à dinastia.

O caruru é uma variação do amalá, a comida preferida de Xangô.
Apesar de algumas divindades compartilharem da mesma comida, o modo de preparo varia de acordo com o santo. No caso do caruru, segundo o preceito, o quiabo para São Cosme e São Damião deve ser cortado em pedaços pequenos porque os santos são crianças (erês) no candomblé.
Já para o caruru de Santa Bárbara/Iansã eles têm que ser cortados em rodelas.
O quiabo lascado em tira, cortado na diagonal, é utilizado para preparar o caruru de Xangô (amalá).
Tanto Iansã (esposa) como os Ibejis (filhos) comem quiabo em função deste vínculo familiar e real, que une a corte de Oió em torno da mesa.
Com isso, o caruru tornou-se motivo de festa e, apesar de outros pratos terem sido servidos durante anos aos fiéis de Bárbara/Iansã, foi o caruru que se consagrou como a comida-símbolo dessa festa em Salvador.
Caruru, na verdade, é apenas maneira de falar porque o prato servido nos carurus
de promessa é composto por caruru, vatapá, feijão fradinho, arroz, xinxim de galinha,
feijão preto, farofa de dendê, banana da terra frita, abará, acarajé, tudo regado à azeite
de dendê, num dos pratos que sintetizam a culinária afro-diaspórica no Brasil.
E como as chamadas “comidas de azeite” já estavam presentes nas feiras, barracas e festas, não foi difícil reuni-las no mesmo prato para homenagear a protetora contra os raios e
senhora dos mercados.

Celebrar com comida
Historicamente, a festa de Santa Bárbara em Salvador foi uma devoção popular que cresceu graças ao empenho dos africanos e crioulos do antigo morgado.
Como o festejo não estava sob o controle da Igreja Católica (presente na festa apenas na figura do padre responsável por celebrar a missa da santa), o samba, a capoeira, as comidas e bebidas foram incorporados às manifestações populares durante a festa.
O dia 04 de dezembro era um momento propício para extravasar e romper (ainda que
temporariamente) com a estrutura social imposta.

Todos os anos, ao preparar e servir o caruru em honra à Santa Bárbara, mesmo
sem saber, seus devotos reatualizam o banquete da família do rei de Oió Se quiabo
representa fartura para Xangô, o caruru é a festa da abundância.
Não é à toa que, na capital baiana, carurus costumam ser oferecidos tanto em setembro (Ibejis/Cosme e Damião) como em dezembro (Iansã/Santa Bárbara).
Além do caruru, o acarajé em forma de acará (sem acompanhamentos) também
está presente na festa oficial da santa.
Nos terreiros de candomblé, na cerimônia de
Iansã, esse alimento é distribuído pelo próprio orixá aos participantes da festa.
Alguns comem, outros guardam no bolso e tem aquelas pessoas que passam o bolinho no corpo e depois o despacham, num pedido de limpeza e proteção.
Os acarajés distribuídos durante a festa de Santa Bárbara, no Pelourinho, recebem o mesmo tratamento pelos fiéis.

No festejo de 04 de dezembro, os traços culturais dos negros aparecem não só na
expressão religiosa, mas também nessa tradição de distribuir acarajés e servir caruru de promessa.
Celebrar suas divindades com comida é uma característica forte do povo negro, que herdou a tradição africana de dançar e comer junto com os deuses.

Sem quiabo, camarão defumado e azeite de dendê é impossível preparar um
caruru. E sem caruru a festa de Santa Bárbara em Salvador não seria a mesma.
Ao destacar a importância desse prato da culinária afro-baiana nas comemorações à mártir cristã, a pesquisadora Edilece Souza Couto, em seu trabalho Tempo de Festas:
Homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940)

buscou ressaltar a relevância do povo negro no processo de estruturação do festejo que abre o calendário de festas populares da Bahia.



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