CIRANDA DOS SABORES: DA DOÇARIA PORTUGUESA ÀS MESAS POPULARES

“Nós morremos. Esse talvez seja o sentido da vida. 
 Mas nós fazemos linguagem. 
 Essa talvez seja a medida de nossas vidas.” 


Esta provocação da escritora estadunidense Toni Morrison, é o mote do nosso texto, fazer uma reflexão sobre a importância da historia oral, uma linguagem marginal, repleta de códigos sociais, econômicos e identitário. 

A culinária está intimamente ligada a memória dos traços culturais e as mudanças sócio-econômicas; o quê se come está diretamente relacionado com as escolhas feitas pelos grupos sociais, logo a comida é um “texto falante”, é a grande metáfora da autenticidade de uma sociedade.
Sai do seu campo de atuação - a cozinha - diretamente para as mesas populares; não é apenas um elemento da gastronomia, é o fio condutor do convívio humano. 

Pelo interior e nas capitais das províncias as famílias forneciam-se reciprocamente os doces e bolos para as festas habituais. Ao correr do dia as bandejas afluíram, trazendo o necessário e o supérfluo para a noite jubilosa, abarrotando as mesas improvisadas. 
Até a primeira década do século XX rara seria a cidade possuindo uma confeitaria-pastelaria. 
Essa função comunitária de uma sociedade, quase totalmente desaparecida, valorizava o conhecimento doceiro, desde a dona de casa às filhas menores que faziam, no mínimo suspiros e beijos, recortando o papel de seda colorido. (CASCUDO, 2004, P.596). 


Ulpiano T. Bezerra de Meneses considerou que “o “saber-fazer”, por exemplo, não é um conhecimento abstrato, conceitual, imaterial, filosófico ou científico, mas um conhecimento corporificado”; e, para ratificar o argumento referido, recorreu à memória nos seguintes termos: “os especialistas falam de uma memória-hábito ou memória corporificada (embodied memory). É a memória que nos permite guiar um veículo ou andar de bicicleta como se fossem ações geneticamente previstas”: É a memória do músico, da cozinheira, do artesão.
 Seja como for, embora não convenha alterar a nomenclatura internacionalmente corrente , seria desejável que, ao utilizarmos a expressão “patrimônio imaterial” a despíssemos com qualquer polaridade com um patrimônio material.

Os manuscritos culinários, vistos aqui como escrituras, por serem fixação da voz, (ZUMTHOR, 1993, p. 96), mostram tipos de memórias “subterrâneas”, revelando história de experiências, crenças religiosas, trocas sociais, memórias e representações do passado atreladas às ações contínuas e descontínuas das obrigações femininas que desempenham papéis determinantes para se entender as diversas memórias fragmentadas, mas ideológicas e culturalmente mediadas pelos fatos históricos.


Ao descrever as receitas contidas nos manuscritos de cozinha, constatou-se os doces como uma das maiores categorias descritas nos inventários acompanhado pelos registros de bolos e tortas
Os doces, bolos e tortas representam o prazer: a todos conquista na degustação coletiva. 
Os manuscritos culinários possuem um significado que excede o conteúdo das receitas porque são catalisadores de uma série de repartições: histórica, sociológica que constitui o trajeto cotidiano, revelando de que modo categorias como a comida, definida na maioria das vezes como objeto da gastronomia, tem também a precisão etnográfica, por partir de uma cultura particular. 
A comida está ligada a um conjunto de tradições contraídas no decorrer dos séculos, resultando em hábitos alimentares muito próprios. As receitas culinárias vão além do caráter nutricional. 
Observa-se nos manuscritos culinários as conexões entre os campos de interferência da voz e da escritura e seu papel na memória dos costumes, do cotidiano e da vida cultural. Compreendem-se a presença da voz nos manuscritos culinários, a relação oralidade-escritura e sua enunciação nos cadernos de receitas. 
Os manuscritos são a fixação de um texto oral e, conseqüentemente, tem uma relação com a performance – “emanação do corpo no oral” – e a recepção. Porque “a performance e o conhecimento estão ligados, assim, a performance modifica o conhecimento e o marca”. (ZUMTHOR, 2000, p.37). 
Por isto, os cadernos de receitas são escrituras porque estão em estreita relação com a voz, ou seja, são fixação, registros de uma oralidade. 
Compreendendo a comida como uma escritura, percebe-se um jogo de técnicas, atitudes e condutas ao enunciar receitas culinárias sinalizadoras de tempos e lugares. 
Ao investigar as escrituras conventuais portuguesas, Câmara Cascudo (2004) registrou os manjares com os quais se deliciavam os povoadores do Brasil - manjar branco, filhós de manteiga, alfenim, sonhos, mães-bentas, alféloa, raivas, sonhos, suspiros, casadinhos, arroz doce, entre outros. 
E no Brasil não faltou quem continuasse a tradição dos conventos portugueses percebida através de receitas de doces brasileiros como papos de anjo e manjar do céu. 
Analisar as escrituras dos doces nos manuscritos culinários permite a evocação da oralidade natural de uma determinada cultura, isto é, é um conjunto heterogêneo e complexo de modalidades e condutas discursivas determinantes de um sistema de representações dos membros de um corpo social. O alcance da voz e da escritura refere-se a autoridade que comanda a prática de um mundo. 
 A interpretação das escrituras dos doces aproximam os leitores da escritura dos sujeitos que as produziram. Zumthor (1993, p. 23 e 24)


Fontes: 
Alessandra Gomes Coutinho  e Beliza Áurea de Arruda  CIRANDA DOS SABORES: DA DOÇARIA PORTUGUESA ÀS MESAS POPULARES 

 FREYRE, Gilberto. Açúcar: em tôrno da Etnografia, da História, e da Sociologia do doce no Nordeste Canavieiro do Brasil. Coleção Canavieira n 2. Divulgação do Ministério da Indústria e do Comércio (Instituto do Açúcar e do Álcool). Divisão Administrativa, serviço de documentação, 1969. SILVA, Antonio. Doçaria popular portuguesa. Texto Brasil, 2004. 
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amalio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Memória, HistóriaOral e PatrimônioImaterial Afrobrasileiro:teoria, práxis

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