Pequeno Dicionario da Cozinha Baiana

Verbete-Viúva de Carneiro 

A vocação brasileira para a incorporação e o sincretismo, é o tema deste antigo prato, que evoca, à presença ibérica em nossa mesa.
A utilização dos caprinos na alimentação nordestina e sua importância sócio cultural, além de revelar interditos alimentares, de culturas que fizeram parte da nossa raiz étnica.
Segundo o amigo Joaquim Alves, diferentemente da Buchada Pernambucana, a Viúva de Carneiro, é uma preparação feita com as tripas, uma trouxinha, embutida com miúdos, chouriço (sangue coalhado), bucho (livro), tiras de cenoura, vagem e pimentão, amarrados com a tripa, tudo de ovelha (a viúva) do carneiro.

A ingrata vida das viúvas
Se em algumas culturas, a viuvez significa exílio, vulnerabilidade e abuso, por outro lado, no regime colonial brasileiro, esta situação poderia significar sua autonomia.

As viúvas, construíram seu patrimônio, bem como verificar se elas se utilizaram de estratégias ou de uma rede de solidariedade para manter suas heranças e de seus filhos menores. Segundo recentes pesquisas realizadas pela historiadora brasileira Mary Del Priore, uma farta documentação do século XVIII indica que o número de mulheres envolvidas no comércio era bastante significativo. As mulheres quando viúvas tornaram-se responsáveis pela família e sua reprodução na sociedade, muitas transformaram-se em chefes de domicílio e tutoras dos filhos. 
Enquanto meeiras dos maridos nas comunidades ibéricas, herdavam o patrimônio do casal e deviam administrá-lo tanto para seu sustento quanto para o dos membros do domicílio. 
A viúvas de elite, durante sua viuvez desempenham um papel importante em sua família. Muitas herdaram fortunas em terras e escravos, permitindo-lhes criar estratégias de sobrevivência que lhes possibilitassem sobrepujar a estrutura tradicional do período. Engenhos e lavouras de cana simbolizavam o retrato de uma sociedade baseada na figura masculina, mas permitiam à mulher viúva desempenhar funções de mando semelhantes às exercidas por seus falecidos maridos. 

Na foto:  Os dias nada felizes da Maria Amélia (Duquesa de Bragança) para aquela mulher de 40 anos.
Depois da morte de Pedro II , guardara um luto fechado tanto pelo marido quanto pela filha, dedicando-se a obras de caridade como a criação de um hospital para tuberculosos carentes, na ilha da madeira (instituição ainda existente). 

Em rico matéria historiográfico, pode-se observar, inventários e testamentos que viúvas herdavam engenhos, produziam cana, trabalhavam nas quitandas, alugavam casas, comercializavam secos e molhados em pequenas vendas, administravam boticas, cuidavam dos filhos e recorriam à coroa como qualquer outro súdito. Muitas delas nos contam histórias de sucesso, mas muitas outras também se perderam pelo caminho em meio a patrimônios insuficientes.

“Sobrenomes Marranos”
O habito Português de dar o sobrenome de animais e arvores, vem de longas datas, as razões de adotarem nomes de animais, estarão muito provavelmente relacionados com qualidades ou defeitos geralmente atribuídos a esses animais. Exemplos: «bravo como um leão», «veloz como um coelho», «feroz como um tigre», «forte como um touro», «vaidoso como um pavão», «manso como um cordeiro», etc. 

Das muitas são as teorias, mas a mais provável, nós leva a fuga dos Judeus Portuguese, muitos sobrenomes usados por lusodescendentes identificam origem judaica, herança de ancestrais cristãos-novos. 
Os cristãos-novos eram judeus convertidos ao Catolicismo, por pressão da Igreja Católica, para escapar da punição dessa Igreja. Se não convertesse, o judeu português era enforcado ou queimado na fogueira.  
Os judeus conversos adotavam nomes de animais, plantas, cidades, etc. para esconder sua origem judaica. 
Muitos são descendentes de cristãos-novos: Fernando de Noronha, Jorge Amado, Paulo Coelho, vários médicos, advogados, juízes, políticos e muitos outros profissionais brasileiros. 
A história dos judeus no Brasil é longa e complexa, uma vez que se estende desde o início da colonização européia no novo continente. 
O historiador paulistano Paulo Valadares, autor do “Dicionário Sefaradi de Sobrenomes”, no qual destaca 14 mil sobrenomes oriundos de judeus da Península Ibérica, aponta para mais uma complicação: o da mestiçagem brasileira. 
A grande maioria dos cristãos-novos se misturou depois de uma ou duas gerações com outras culturas e raças. A grande maioria dos cristãos-novos se misturou depois de uma ou duas gerações com outras culturas e raças.  

A família Carneiro é formada basicamente por Judeus da Espanha que viveram a era de ouro do Judaísmo durante a diáspora na península Ibérica. 
Segundo conta a tradição, a Espanha era abrigo para muitos judeus de vários lugares e foi o refúgio do judaísmo durante a diáspora. A Espanha era até tratada por muitos desses judeus, conhecidos como sefarad, como sendo sua própria casa e com um carinho especial, como sendo extensão de Jerusalém. Mesmo assim, com a intolerância da Igreja Cristã, os judeus sefaradim oriundos de vários lugares, foram expulsos da Espanha para Portugal, alguns ainda retornaram para o norte do Marrocos, outros permaneceram em Portugal e sofreram o processo inquisitório do “Santo Oficio”. 


Na foto ao lado: Tripas de cordeiro trançadas, assadas no forno e mantidas defumadas. 
O zarajo é uma salsicha típica de Aragón e Cuenca, na Espanha, constituída por meada ou meada feita com intestino de cordeiro em aleitamento, temperada. 

A inquisição católica considerava crime a prática do judaísmo sendo punido com a morte. 
Chamados então de Cristãos-novos os judeus não podiam nem falar de suas origens. Mesmo sem status, tinham que provar o seu valor entre os cristãos, e como os judeus sempre foram excelentes navegadores e conhecedores de astros e pontos cardeais foram muito utilizados nas navegações portuguesas. 
Os que poderiam se misturar com o portugueses ficaram em Portugal. Os que tinham mais dificuldade de se misturar pela aparência física e pelo preconceito latente, foram enviados para o Brasil. 
Desses, poucos se arriscavam a viver judaísmos que se arriscavam eram julgados e mortos. 
No nordeste durante muito tempo ainda se respeitava o shabat, mas era muito difícil sem a ajuda fazer o devido retorno. 
Para proteger os filhos muitos judeus não contavam as histórias para as crianças, mas transmitiam as tradições sem dizer o porquê e depois de algum tempo transmitiam alguns segredos aos filhos homens mais velhos
A tradição de permanecer entre famílias é vista até hoje no nordeste do Brasil onde os Bezerra, os Seixas, os Lopes e os carneiros dão em casar preferencialmente a essas famílias em algumas cidades de Pernambuco e Ceará. 
Os Sefarad (sarará) escondem suas origens entre simplicidade e união entre as famílias. 
Segundo Stuart Schwartz no livro "Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico": "O poder e a autoridade inquisitoriais, em Portugal, estiveram firmemente empenhados em denegrir e exterminar o judaísmo, assim como discriminar e explorar os cristãos novos.
Quando da sua implantação, não houve um grande período de terror inicial tal como ocorreu na Espanha.



Segundo relatos do Luiz Mott em seu livro A INQUISIÇÃO EM ILHÉUS(1574-1774), resume dois fatos de crucial importância marcam a história luso-brasileira: a instalação do Tribunal do Santo Ofício em Lisboa e a fundação da vila de São Jorge de Ilhéus no sul da Bahia. 

A presença dos cristão novos em Ilhéus, pode ser aqui ilustrada por uma curiosa historia, Thomás Ferreira é o primeiro natural de Ilhéus a comparecer perante o visitador Santo Tribunal: 36 anos, solteiro, mameluco, filho do branco Marçal Ferreira com sua escrava brasila, Helena. 
Sua culpa era ter comido carne em dias proibidos na quaresma antecedente, quando soldado em campanha na Serra do Araripe (Ceará), sob o comando do Capitão Cristóvão Rocha. "Naquela época tão mística e supersticiosa, qualquer deslize ou irreverência em matéria religiosa poderia ser interpretada como resquício de judaísmo ou adesão ao luteranismo, ambas heresias duramente castigadas e perseguidas pela Inquisição, daí os escrúpulos dos faltosos em logo desencarregar suas consciências de eventuais heterodoxias." 
Luiz Mott 

Os réus dos tribunais da Inquisição são testemunhos preciosos. Quando a Carta de Lei, de 25/05/1773 do Marquês de Pombal decretou a distinção entre cristãos-novos e velhos, no reinado de D. José II, os remanescentes já haviam esquecido suas origens – pois haviam-se tornado bons católicos. 

Contribuições linguísticas 
Continuando com mais os exemplos do cadinho ibérico, onde se fundiu a língua, cujo ramo, vindo a nós ainda nos dá várias centenas de palavras — de A a Z —, algumas tão comuns no nosso dia-a-dia: açougue, açude, adobe, alarido, alazão, algibeira, algodão, andaime, anil, anta, armazém, arrabalde, arroba, arroz, azeite, azeitona. E para que não se diga que não passamos do A, temos bairro, beringela, cetim, cifra, elixir, enxoval, fardo, fulano, limão, marfim, nuca, oxalá, rês, roça, safra, salamaleque, sapato, sofá, taça, talco, tarifa, xadrez, xarope, xerife — e fomos até o Z: zarcão, zênite. 


 Nacib e Gabriela Cravo &Canela
Sincretismo Gastronômico.

Jorge Amado em sua extensa obra, identifica a presença marcante dessa influência não apenas na língua, seu preponderante instrumento de expressão, como nos personagens árabes ou de origem árabe que se misturam tanto na "democracia racial brasileira", em geral, como particularmente no tecido de seus romances; movimentando-se entre negros, crioulos, espanhóis ou portugueses criados para viverem o drama, a tragédia, ou o amor que palpita nos romances desse autor tão peculiar. 
A atriz Sonia Braga como Gabriela e o ator Armando Bogus como Nacib

À mesa de Jorge Amado, convivem senhores de cacau, caboclos, madames, vadios, prostitutas, religiosos, negros e brancos, em uma ideia de Brasil socioculturalmente mestiço, ora imaginária, ora real. 
Numa Bahia acostumada aos modos europeus, Jorge Amado pôs a culinária de negros, sertanejos e pobres nas casas da elite branca, fosse com Gabriela cozinhando para coronéis do cacau, fosse com Dona Flor repassando receitas a senhoras nobres. 
E com elas, fez "a comida como vocabulário, como uma linguagem que mostra para as elites metidas a francesas quais seriam nossas raízes", como explica a antropóloga Lilia Schwarcz. 

Um dos pratos citados por Jorge Amado, é Viúva de Carneiro, no trecho de Gabriela, Cravo e Canela 
"Tempo bom, meses de vida alegre, de carne satisfeita, boa mesa, suculenta; de alma contente, cama de felizardo. 
No rol das virtudes de Gabriela, mentalmente estabelecido por Nacib na hora da sesta, contavam-se o amor ao trabalho e o senso de economia. Como arranjava tempo e forças para lavar a roupa, arrumar a casa, – tão limpa nunca estivera! – cozinhas os tabuleiros para o bar, almoço e jantar para Nacib? Sem falar que à noite estava fresca e descansada, úmida de desejo, não se dando apenas mas tomando dele, jamais farta, sonolenta ou saciada. 
Parecia adivinhar os pensamentos de Nacib, adiantava-se a suas vontades, reservava-lhe surpresas: certas comidas trabalhosas das quais ele gostava – pirão de caranguejo, vatapá, viúva de carneiro –, flores num copo ao lado de seu retrato na mesinha da sala de visitas, troco do dinheiro dado para fazer a feira, essa idéia de vir ajudar no bar."

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