Caymmi 110 anos de Fogão e violão

Vatapá, acarajé e outros pratos típicos inspiraram canções de Caymmi, cujo tempero inclui personagens marcantes, religiosidade e erotismo

O mais baiano entre os baianos, Dorival Caymmi cantou sua terra como ninguém: as paisagens, o mar, os tipos humanos, igrejas e santos, o candomblé e os orixás, as mulheres... num mosaico de sensações em torno do viver (bem) na Bahia. 

E nele não poderia faltar o paladar. O compositor dedicou-se com gosto às iguarias coloridas e picantes típicas da culinária local. Nesse cardápio, o acarajé e o vatapá têm lugar especial, tingidos do amarelo-ouro do dendê e do vermelho intenso da pimenta. Verdadeiras receitas em forma de canção. Caymmi era descendente de italianos pelo lado paterno. 

Seu bisavô Enrico migrou para o Brasil para trabalhar nos reparos do Elevador da Conceição, hoje Elevador Lacerda. 
A grafia original do sobrenome era Caimmi. 
O pai, Durval, foi funcionário público e músico amador: tocava piano, violão e bandolim. 
A mãe, Aurelina, era dona de casa. Dorival começou a trabalhar aos 13 anos, na redação do jornal O Imparcial,como auxiliar. 
Depois do fechamento do jornal, em 1929, foi vendedor de bebidas e de cordões para embrulho. Enquanto isso, aventurava-se pelo mundo da música. Aos 16 anos compôs sua primeira canção, “No Sertão”, e aos 20 estreou como cantor e violonista na Rádio Clube da Bahia. 
Em 1935 passou a apresentar o musical “Caymmi e suas canções praieiras”. 
No ano seguinte venceu o concurso de músicas de carnaval com o samba “A Bahia também dá”. 
Gilberto Martins, diretor da Rádio Clube da Bahia, incentivou-o a seguir carreira no sul do país. E assim, em abril de 1938, aos 23 anos, Dorival “pegou um ita no norte” – como eram chamados os navios que rumavam para o sul do país (embora, nesta canção, ele tenha situado o embarque em Belém do Pará). 
O destino era o Rio de Janeiro. “Talvez eu volte pro ano/ Talvez eu fique por lá”. Na capital federal, aspirava a um emprego de jornalista e a uma matrícula na Faculdade de Direito.
Conseguiu uma vaga em O Jornal, mas não deixou de compor e de cantar. 
Dali para diante o sucesso foi ascendente. Em 1939 gravou “A preta do acarajé”com Carmen Miranda (1909-1955), poucos meses antes deela embarcar para os Estados Unidos. A cena acontece na cidade de Salvador, no início do século XX, e carrega traços do passado colonial da capital baiana, com a ambulante entoando o seu pregão e apresentando suas delícias: 
Na sua gamela tem molho cheiroso pimenta da costa 
 Tem acarajé 
 Ô acarajé [eco] Ola iê iê ô 
 Vem benzê-ê-êm 
 Tá quentinho 
 Todo mundo gosta de acarajé 
O trabalho que dá pra fazer que é 
 Todo mundo gosta de abará 
 Ninguém quer saber o trabalho que dá 
Como não existe acarajé sem vatapá, Caymmi exalta também esta delícia em um de seus “sambas-receita”, como costumava chamá-los. 

Caymmi era bom de garfo e bom cozinheiro. 
Enaltecendo suas experiências na cozinha, eis o samba sui generis que descreve as etapas da elaboração do prato: 
Quem quiser vatapá, ô, que procure fazer. 
Primeiro o fubá, depois o dendê 
Procure uma nega baiana, ô 
Que saiba mexer 
Bota castanha de caju 
Um bocadinho mais 
Pimenta malagueta 
Um bocadinho mais 
Amendoim, camarão, rala um coco 
Na hora de machucar 
Sal com gengibre e cebola, Iaiá 
Na hora de temperar 

Caymmi apresenta os ingredientes do prato na ordem da receita tradicional, mas acrescenta uma pitada extra de “pimenta” e de erotismo ao afirmar, com duplo sentido, que é preciso “uma nega baiana que saiba mexer”. 
Aliás, foi o vatapá o prato responsável pela apresentação da futura mulher Stella aos amigos no Rio de Janeiro, em 1939. 

Jorge Amado ofereceu um almoço em sua casa na Urca, onde, entre outros, estavam presentes o jornalista Samuel Wainer, o político e também jornalista Carlos Lacerda e o escritor Moacyr Werneck de Castro. 
A casa era um pedacinho da Bahia no Rio de Janeiro e ali, como é de supor, imperavam as iguarias da terra natal. Dorival e Stella se casaram em 1940 e, no ano seguinte, com a filha Nana já nascida, embarcaram para uma turnê pelo Ceará, que foi também uma espécie de lua de mel. 

No caminho o navio fez uma parada na capital baiana, e foi nessa data que a esposa foi oficialmente apresentada à família. Para o almoço na casa do Largo do Jenipapeiro, em Salvador, a mãe, Dona Sinhá (Aurelina), preparou escaldado de peru como prato principal. 

Iguaria predileta de “seu” Durval, pai do cantor, era o prato oficial dos antigos cardápios baianos de casamentos e aniversários, principalmente na década de 1940. 
Na cozinha de Stella ele se sentiria muito à vontade, principalmente quando preparava a peixada para toda a família. 
O prato também encabeçou o cardápio de um almoço antológico, em 1944, para celebrar a amizade entre ele e o cantor Silvio Caldas, após uma desavença em espetáculo no Copacabana Palace. 
O aberém é outra comida baiana cantada por Caymmi. Também de origem iorubá, trata-se de um bolo de massa de milho, amolecido na água e ralado na pedra, aquecido ligeiramente ao fogo, depois envolto em folhas de bananeira e atado com a fibra que se retira do tronco da árvore. 

Dorival Caymmi cita esse delicioso quitute no samba “Severo do Pão”: 
Lá vem Severo do Pão vendendo seu aberém 
Mas quando penso que não lá vem Tereza também 
É de ba efô é de bariforé 
Lá vem Severo do Pão vendendo acarajé. 

Menos conhecida, a música Acaçá, gravada apenas em 1984, fala de outra delícia admirada pelo compositor baiano, também ligada ao candomblé. 

Dorival costumava pedir à filha Nana que comprasse acaçás para ele. 
Mas, nesta canção, deixa os detalhes da receita de lado para se dedicar a outros sentidos, ligando a comida à sensualidade da mulher e estimulando o duplo apetite: culinário e erótico. 
Acaçá de milho bem-feito 
E o jeito? 
E o modo dela mercar? Sorrindo com dentes alvos 
A bata caindo do ombro Caindo pro peito […]
Bem-feito é o acaçá de leite 
 Bem-feito é o acaçá Bem-feito é o corpinho dela Bem-feito como acaçá Para saborear os pratos do mestre, nem precisa fazer suas receitas. 

Fabiano Dalla Bona é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de O céu na boca: Curiosidades gastronômicas, receitas, personagens religiosos (Tinta Negra, 2010) e Fama à Mesa (Tinta Negra, 2010).

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