Caruru de São Cosme, deliciosa tradição baiana
A oferenda aos santos gêmeos deve ser servida em
uma gamela que não tenha sido usada antes.
Depois, o conteúdo é levado a uma área de mata.
Esta da foto foi dedicada a Crispim, Crispiniano, Cosme e Damião.
Na Bahia, setembro é tempo de caruru, comida de santo oferecida aos Ibeji, filhos gêmeos de Xangô e Iansã, sincretizados como São Cosme e São Damião. Os santos católicos são celebrados no dia 27, mas o mês inteiro é marcado pelo oferecimento do Caruru de São Cosme, como o baiano carinhosamente abrevia o nome desse banquete africano refinado e irresistível. Quem nunca provou não sabe o que está perdendo.
Caruru completo
Além do caruru propriamente dito (feito de quiabo picadinho, temperado com amendoim, castanha, camarão seco e dendê), são servidos vatapá, feijão fradinho, feijão preto, milho branco, pipoca, banana frita, farofa de
dendê,inhame, acarajé, pedacinhos de cana de açúcar e de coco, rapadura e xinxin de galinha (ensopado com dendê).
Tudo muito bem arrumado no prato, num encantador jogo visual e de texturas, onde a diversidade de sabores traduz perfeitamente a alma da Bahia.
Um banquete africano requintado e irresistível
Os complementos que não podem faltar:
tirinhas do coco, roletes de cana, pipoca, milho branco cozido, feijão preto cozido, sem caldo
Para quem não é da terra, explico: Cosme e Damião foram dois irmãos gêmeos que viveram na Síria, no Século 3, e foram martirizados por terem aderido ao cristianismo. Eram médicos e entraram para o imaginário católico como protetores das crianças. Essas coincidências os levaram a ser sincretizados como os Ibeji.
Tudo no caruru é uma celebração à solidariedade, ao coletivo. Começa no corte do quiabo (uma festa média é um caruru feito com mil quiabos), que mobiliza as vizinhas, as parentas e as amigas, tarefa que, dependendo da quantidade de
comida a ser preparada, pode começar vários dias antes. Diz a tradição que os santos agradecem a quem se engaja na tarefa e que alguns (poucos) quiabos devem ficar inteiros, pois os premiados com eles, no prato, devem oferecer um caruru no ano seguinte.
Em algumas casas, Cosme e Damião recebem queimados
(o nome baiano para "bala" ou "bombom"). Em outras, são servidos com as iguarias da festa, ou farofa de mel
O mutirão prossegue na hora de servir o caruru, na azáfama das mulheres na cozinha, arrumando com agilidade uma quantidade industrial de pratos, com o capricho artesanal de quem prepara um mimo que o comensal vai partilhar com os santos.
O espírito comunitário continuava durante a festa: bastava saber que um conhecido estava oferecendo um caruru e ir chegando, que a comida sempre dava para todos. Também não era estranho o convidado levar um penetra. Pena que essa generosidade esteja em risco de extinção, com a Bahia cada vez mais aculturada às formalidades dos convites e dos RSVP.
No caruru de preceito (que segue o ritual religioso),
não podem faltar o acarajé e o abará.
Para o caruru, os bolinhos são feitos num tamanho menor
do que o que se vê no tabuleiro da baiana.
À esquerda, a banana frita, outro complemento indispensável
Em minha casa sempre teve Caruru de São Cosme, com direito ao altarzinho dos santos, que eram os primeiros a ser servidos com as iguarias — o conteúdo dos pratinhos de Cosme e Damião era recolhido depois e depositado em área de mata, para complementar o ritual da oferenda. Exatamente como minha mãe aprendeu com Elza, ialorixá que morava à beira de uma lagoa, em um dos coqueirais que embelezavam o bairro da Pituba, antes da especulação imobiliária devastar tudo.
Elza era baiana de acarajé, mulher sábia e solidária que se tornou uma das melhores amigas lá de casa, laço forte e improvável entre uma “pessoa do povo”, como se dizia nos Anos 60, e uma família branca de classe média. Até hoje me comovo com a força do mistério das palavras que ela dizia enquanto me benzia contra o mau olhado, com um galhinho de planta que terminava irremediavelmente murcho — prova de que eu estava “carregada” — ao final da reza. Ateia como sou, vez por outra me pego lamentando não poder mais recorrer às benzeduras de Elza e com muita saudade da alegria que eu percebia na celebração dos Ibeji em sua casa.
A rapadura, cortada em tijolinhos, também faz parte do prato
Hoje eu acordei com saudade de Elza, de quem não me ficou nenhuma fotografia, de quem nunca soube o sobrenome e cuja casinha simples, de chão batido, há muito foi varrida por algum trator para dar lugar a um espigão. Faz mais de 40 anos que ela partiu para o Orum e não teve como saber o quanto me ensinou sobre a beleza, a força e a generosidade do povo da minha Bahia, nem o quanto eu sou grata por essa lição.
uma gamela que não tenha sido usada antes.
Depois, o conteúdo é levado a uma área de mata.
Esta da foto foi dedicada a Crispim, Crispiniano, Cosme e Damião.
Na Bahia, setembro é tempo de caruru, comida de santo oferecida aos Ibeji, filhos gêmeos de Xangô e Iansã, sincretizados como São Cosme e São Damião. Os santos católicos são celebrados no dia 27, mas o mês inteiro é marcado pelo oferecimento do Caruru de São Cosme, como o baiano carinhosamente abrevia o nome desse banquete africano refinado e irresistível. Quem nunca provou não sabe o que está perdendo.
Caruru completo
Além do caruru propriamente dito (feito de quiabo picadinho, temperado com amendoim, castanha, camarão seco e dendê), são servidos vatapá, feijão fradinho, feijão preto, milho branco, pipoca, banana frita, farofa de
dendê,inhame, acarajé, pedacinhos de cana de açúcar e de coco, rapadura e xinxin de galinha (ensopado com dendê).
Tudo muito bem arrumado no prato, num encantador jogo visual e de texturas, onde a diversidade de sabores traduz perfeitamente a alma da Bahia.
Um banquete africano requintado e irresistível
Os complementos que não podem faltar:
tirinhas do coco, roletes de cana, pipoca, milho branco cozido, feijão preto cozido, sem caldo
Para quem não é da terra, explico: Cosme e Damião foram dois irmãos gêmeos que viveram na Síria, no Século 3, e foram martirizados por terem aderido ao cristianismo. Eram médicos e entraram para o imaginário católico como protetores das crianças. Essas coincidências os levaram a ser sincretizados como os Ibeji.
Tudo no caruru é uma celebração à solidariedade, ao coletivo. Começa no corte do quiabo (uma festa média é um caruru feito com mil quiabos), que mobiliza as vizinhas, as parentas e as amigas, tarefa que, dependendo da quantidade de
comida a ser preparada, pode começar vários dias antes. Diz a tradição que os santos agradecem a quem se engaja na tarefa e que alguns (poucos) quiabos devem ficar inteiros, pois os premiados com eles, no prato, devem oferecer um caruru no ano seguinte.
Em algumas casas, Cosme e Damião recebem queimados
(o nome baiano para "bala" ou "bombom"). Em outras, são servidos com as iguarias da festa, ou farofa de mel
O mutirão prossegue na hora de servir o caruru, na azáfama das mulheres na cozinha, arrumando com agilidade uma quantidade industrial de pratos, com o capricho artesanal de quem prepara um mimo que o comensal vai partilhar com os santos.
O espírito comunitário continuava durante a festa: bastava saber que um conhecido estava oferecendo um caruru e ir chegando, que a comida sempre dava para todos. Também não era estranho o convidado levar um penetra. Pena que essa generosidade esteja em risco de extinção, com a Bahia cada vez mais aculturada às formalidades dos convites e dos RSVP.
não podem faltar o acarajé e o abará.
Para o caruru, os bolinhos são feitos num tamanho menor
do que o que se vê no tabuleiro da baiana.
À esquerda, a banana frita, outro complemento indispensável
Em minha casa sempre teve Caruru de São Cosme, com direito ao altarzinho dos santos, que eram os primeiros a ser servidos com as iguarias — o conteúdo dos pratinhos de Cosme e Damião era recolhido depois e depositado em área de mata, para complementar o ritual da oferenda. Exatamente como minha mãe aprendeu com Elza, ialorixá que morava à beira de uma lagoa, em um dos coqueirais que embelezavam o bairro da Pituba, antes da especulação imobiliária devastar tudo.
Elza era baiana de acarajé, mulher sábia e solidária que se tornou uma das melhores amigas lá de casa, laço forte e improvável entre uma “pessoa do povo”, como se dizia nos Anos 60, e uma família branca de classe média. Até hoje me comovo com a força do mistério das palavras que ela dizia enquanto me benzia contra o mau olhado, com um galhinho de planta que terminava irremediavelmente murcho — prova de que eu estava “carregada” — ao final da reza. Ateia como sou, vez por outra me pego lamentando não poder mais recorrer às benzeduras de Elza e com muita saudade da alegria que eu percebia na celebração dos Ibeji em sua casa.
A rapadura, cortada em tijolinhos, também faz parte do prato
Hoje eu acordei com saudade de Elza, de quem não me ficou nenhuma fotografia, de quem nunca soube o sobrenome e cuja casinha simples, de chão batido, há muito foi varrida por algum trator para dar lugar a um espigão. Faz mais de 40 anos que ela partiu para o Orum e não teve como saber o quanto me ensinou sobre a beleza, a força e a generosidade do povo da minha Bahia, nem o quanto eu sou grata por essa lição.
Fonte:http://www.fragatasurprise.com/
Belas e sabias palavras
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