Tachos e Tachadas.
Tipico de um pais que ainda não compreendeu a importância da sua cozinha tradicional, recuperei um ótimo texto da Jornalista Guta Chaves sobre os Tachos, do ano de 2011. O que mais me surpreende, é que em Salvador, agentes da saúde publica até pouco tempo queriam que as Baianas de Acarajé usassem papel alumínio, para a embalagem do Abará.
Vamos salvar o tacho de cobre
Por Guta Chaves.
A tradição desse utensílio de cozinha secular e ameaçado, além da receita de manutenção. De brinde, aprenda a fazer doce de leite
Os tachos de cobre chegaram ao Brasil junto com as famílias portuguesas. Muito comum na Europa, era o recipiente mais usado para fazer doces em pasta e em pedaços. Nas Casas Grandes, as sinhás ditavam receitas para as iaiás de quitutes açucarados à base de frutas. Hoje, ele está em risco de extinção.
Marmeladas, goiabadas e cocadas dulcíssimas atendiam bem ao gosto da época e ganharam o Brasil. Exemplo disso é a tradicionalíssima goiabada cascão feita no Rio de Janeiro, no interior de São Paulo e em Minas Gerais, já falada nesta coluna. Na cidade mineira de São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto, esse e outros doces de frutas feitos no tacho têm pelo menos dois séculos de produção artesanal. Lá, a tradição é tão forte que o modo de fazer os doces (de potes, barras, compotas e cristalizados) ganhou o título de Patrimônio Imaterial do Município.
Por todas as cidades de Minas Gerais, aliás, os doces feitos em tacho de cobre são presença marcante. Esse é um dos símbolos da doçaria mineira, que tem personagens memoráveis. Caso de seu Chico Doceiro, de Tiradentes, que faz cajuzinho com amendoim, canudinho com doce de leite e doce de abóbora em pedaços no tacho de cobre; e do Bolota, que prepara doce de leite cremoso e sem muito açúcar no mesmo vilarejo.
No interior de São Paulo, a obra do pintor Pedro Alexandrino dá uma ideia de como se vivia nas fazendas no fim do século 19 e meados do século 20. Entre os quadros do artista está Cozinha na Roça, no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, que retrata o ambiente bucólico e provinciano das fazendas e seus doces, feitos em tachos de cobre, como o de laranja da terra.
Essas são apenas algumas histórias de famílias que vivem (ou viveram) de apreciar e fazer a receita artesanal. Mas estão querendo extinguir o tacho de cobre. No ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu o uso dessas panelas alegando que o azinhavre (substância esverdeada, resultado da oxidação do cobre) pode causar problemas neurológicos.E como não falar das doceiras da cidade de Goiás Velho, no Estado de Goiás, que foram celebrizadas pela poeta Cora Coralina, autora de deliciosos doces e poemas? No livro escrito por sua filha Vicência Brêtas Tahan, Cora Coralina – Doceira e Poeta (Global Editora/Editora Gaia), tem doce puxa, feito de amendoim e rapadura, ambrosia, doce de leite, de coco, de banana, de cidra, laranjada e mais um monte de gostosuras. Todas feitas no insubstituível tacho de cobre.
Os proprietários do restaurante Dona Lucinha, com endereços em Belo Horizonte e em São Paulo, contestam a decisão. “Não sabemos se avaliaram o método tradicional e criterioso de limpar o cobre, que é feito há tempos”, diz Márcia Clementino Nunes. “O ideal seria ensinar as doceiras a limpar adequadamente seu tacho de cobre e não eliminá-lo.”
Para ela, temos um Patrimônio Cultural condenado, sem saber se foi avaliado com a cautela que merece. “A questão que colocaria é se um doce feito em tachos muito bem limpos também foi avaliado.” Sem contar o lado social: como as doceiras do interior, com poucos recursos, vão ter dinheiro para comprar (caras) panelas de aço inox? E do que elas vão viver?
Além da perda considerável em textura e coloração, o preparo de alguns doces pode ser extremamente complicado em outra panela. O de leite feito no tacho, por exemplo, fica bege, bonito e brilhante. No alumínio, torna-se meio acinzentado.
Quando eu era criança me chamavam de “a raspa do tacho”, expressão mineira usada para se referir ao filho caçula. E cresci muito bem comendo as tais receitas que "fazem mal". Tomara que elas não virem lenda e fiquem apenas nos livros e em nossa memória. Estamos correndo o sério risco de perder as tradições seculares em troca de uma cultura pasteurizada, esterilizada, sem sabor e impessoal. Sem colher de pau, sem tacho de cobre, sem queijo de leite cru... Do que mais teremos de abrir mão?
GUTA CHAVES é jornalista de enologia e gastronomia. Atualmente tem um escritório de jornalismo especializado.
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