A farinha nossa de cada dia, dai-nos hoje

Por Nilson Jaime

Cantada, dentre tantos, por Djavan e Juraildes Da Cruz; exposta fartamente por Guimarães Rosa – e descrita em minúcias por Câmara Cascudo e Bariani Ortencio –, a farinha está presente na identidade culinária nacional, do escaldado das parturientes e lactantes, à farofa e ao feijão-tropeiro com picanha nos bons restaurantes.


No sertão das Gerais, 1952, Guimarães Rosa aguarda, com vaqueiros, a frugal refeição à base de arroz, feijão, farinha, carne seca e pimenta. | Foto: Eugênio Silva/Reprodução/O Cruzeiro

No antológico livro “Casa Grande e Senzala”, o sociólogo Gilberto Freyre imputa às cunhãs indígenas, nossas avós, além do gosto pelo banho diário – “que ensinou ao português porcalhão do Século XVI” –, grande parte da culinária que hoje constitui a mesa do brasileiro.

Aos indígenas devemos a canjica, a paçoca, o bolo de milho, a pamonha, o mate do chimarrão (“cimarrón” do castelhano rioplatense, ou “matí” dos Quíchua), a jabuticaba (“Myrciaria cauliflora”), o maracujá (“Passiflora edulis”), a pitanga (“Eugenia uniflora”), o caju (“Anacardium occidentale”) e o pequi (“Caryocar brasilienses”), desejado e disputado por goianos, mineiros, tocantinenses e mato-grossenses, do Norte e do Sul, como troféu de sua identidade.

A polpa dos frutos do açaí (“Euterpe oleracea”), riquíssima em antocianina – pigmento que combate os radicais livres no organismo humano –, e do cupuaçu (“Theobroma grandiflora”), preferências da geração saúde nas academias de ginástica de Norte a Sul do país, são mercê da melhoria genética nas selvas tropicais, milenarmente preservadas pelos índios da Amazônia. Da mesma forma o cacau (“Theobroma cacao”), principal matéria prima do chocolate, e o guaraná (“Paullinia cupana”) – amplamente consumido em todo o país e até exportado –, são dois alimentos herdados aos indígenas e que ganharam o mundo, símbolos de sabor, bem-estar e saúde.

As mesas nobres perderiam majestade sem três membros da família Arecaceae preservados pelos silvícolas: o palmito juçara (“Euterpe edulis”), quase extinto em seu hábitat natural, a Mata Atlântica, substituído incontinenti pelos palmitos de açaí e de pupunha (“Bactris gassipes”), ambos da Amazônia – e multicaulinares, ao contrário do primeiro, que possui apenas um estipe –, favorecendo suas preservações.

Faz parte da antropologia culinária do homem cerratense o consumo da guariroba (“Syagrus oleracea”) aos domingos, com frango e arroz: o sertanejo se sente mais seguro, ancho e “rico”, ao olhar suas tulhas cheias e o quintal repleto de galinhas, frangos e pintos, a ciscarem por entre o guerobal, sob a vigilância atenta e a disputa cocoricante de ao menos dois galos.

Mas nenhum alimento é mais versátil e amplamente utilizado na culinária nacional que a farinha, par com outros produtos derivados da mandioca (“Manihot esculenta”). Cantada, dentre tantos, por Djavan e Juraildes Da Cruz; exposta fartamente por Guimarães Rosa – e descrita em minúcias por Câmara Cascudo e Bariani Ortencio –, a farinha está presente na identidade culinária nacional, do escaldado das parturientes e lactantes, à farofa e ao feijão-tropeiro com picanha nos bons restaurantes.

“Farinhada”

No refrão da canção “Nóis é jeca mais é Joia” – composta em 1995 e vencedora do prêmio de Melhor Música Regional Brasileira de 1998 – Juraildes da Cruz (1954) expressa o preconceito que estigmatiza a farinha de mandioca desde sempre, tratada como alimento quase exclusivo de nordestinos, nortistas, goianos, sertanejos, caipiras e pessoas pobres e simples, os autointitulados “jecas”, no xote: “Se farinha fosse americana e mandioca importada/ banquete de bacana era farinhada”, repete em estribilho o cantor e compositor nascido em Aurora do Tocantins. A “farinhada” de Da Cruz é inclusiva de dezenas de pratos da culinária compostos com farinha de mandioca, alguns deles descritos por Câmara Cascudo (“História da Alimentação no Brasil”) e Bariani Ortencio (“Cozinha Goiana” e “Dicionário do Brasil Central).

Também no xote “Farinha”, letra e música do cantor e compositor alagoano Djavan (1949), o autor confere ao vocábulo a dimensão da versatilidade culinária do alimento. Inicia apresentando a planta da mandioca, também conhecida como “macaxeira”, “aipim”, “castelinha”, “uaipi”, “maniva”, “maniveira” e “pão-de-pobre”, conforme a região: “A farinha é feita de uma planta da família das Euforbiáceas, Euforbiáceas/ De nome ‘Manihot utilissima’/ Que um tio meu apelidou de macaxeira/ E foi aí que todo mundo achou melhor”. Os colóquios “mandioca-doce”, “mandioca-mansa”, “mandioca-brava” e “mandioca-amarga”, também são utilizados, conforme a pouca incidência de ácido cianídrico (as duas primeiras, menos de 50 mg de HCN por 1 kg de raiz) ou alta presença (as duas últimas, mais de 100 mg de HCN por 1 kg de raiz), causador de intoxicacões alimentares em animais e humanos.

A seguir, Djavan descreve a importância da farinha para o povo do Nordeste, algumas variedades do produto e sua utilização: “A farinha tá no sangue do nordestino/ Eu já sei desde menino o que ela pode dar/ E tem da grossa, tem da fina, se não tem da quebradinha/ Vou na vizinha pegar/ pra fazer pirão ou mingau/ Farinha com feijão é animal/ O cabra que não tem eira nem beira/ Lá no fundo do quintal tem um pé de macaxeira/ A macaxeira é popular/ É macaxeira pr’ali, macaxeira pra cá/ E em tudo que é farinhada a macaxeira tá”.

Originária da América Tropical, a mandioca – e seus produtos – é a terceira maior fonte de carboidratos nos trópicos, atrás do arroz e do milho, sendo responsável pela alimentação de meio bilhão de pessoas nessas regiões, inclusive na África e Ásia, grandes produtores e consumidores.

No estribilho, o eu-lírico do compositor evidencia um costume de interioranos que se mudam para a capital – encomendar da terra natal os produtos alimentícios de valor nostálgico: “Você não sabe o que é farinha boa/ Farinha é a que a mãe me manda lá de Alagoas/ Você não sabe o que é farinha boa/ Farinha é a que a mãe me manda lá de Alagoas”.

“Farinhada” significa mais que um conjunto de comida à base de farinha. Tem conotação festiva e sociológica importante para as gentes do interior, semelhante à pamonhada familiar em Goiás, ou à matança de capado às vésperas dos casamentos na roça. Nos dois, a parentalha ou os amigos se reúnem para festejar a bonança, a fartura e a amizade.

Na pamonhada, normalmente em dias chuvosos, os homens buscam na roça o milho verde em jacás, e cortam as espigas com facão, sobre um toco de madeira, enquanto contam causos de vantagem, de assombração, de atocaia, de onça, de acovardança ou de perrengagem, ou troçam uns dos outros, para a rizarama de todos.

Mulheres retiram a palha, ralam e roletam o milho; temperam a massa com sal, banha de porco ou manteiga de leite; enchem e amarram a pamonha com embira de bananeira, ou tiras de palha de milho. Há para todos os gostos: pamonha de doce, de sal, à moda – com pimenta, linguica e queijo, ou até jiló, ou torresmo – e colocam a cozinhar no fogão à lenha ou na trempe do fogareiro, aceso com serragem de madeira.

Por todo o tempo, histórias e estórias, mexericos e tricas variadas, só interrompidas quando alguma devota começa o “creio em Deus Pai”, ou o “salve rainha”, puxando o cordão das penitentes. As crianças retiram os estigmas do milho, “pra mode a pamonha não sair cabeluda”, mais brincando que trabalhando, como tem que ser. Quando encontram o mandaruvá lagarta-do-cartucho (“Spodoptera frugiperda”) no cabelo do milho, é um Deus-nos-acuda por causar nojo e medo às meninas. E, ao final, um grande banquete com pamonha e curau, rememorando sem saber, o ritual que nossas ancestrais cunhantãs repetiram por centenas de anos.

Na “mantança” de porco acontece parelho: o mesmo ritual, a expectativa dos noivos e dos pais, a correria dos meninos e meninas, a matança com peixeira na paquera, o sapecar com palha de milho, o quartejar dos capados e a fazença de linguica, torresmo e armonca na lata de banha.

Na “farinhada”, diferentemente das anteriores, a festa é de comemoração do trabalho, da produção e do “meio-de-ganho-vida”. É, por assim dizer, um mutirão no tempo da seca, em que as mulheres jovens e as matriarcas deixam seus afazeres domésticos por semanas a fio, acordando às três da madrugada, ou ao primeiro canto do galo, para começar a lida.

“Como não tem tu, vai tu mermo!”: com os maridos aperreados nas empreitas, na lida com o gado, na construção de cercas, na roçagem de pasto, ou com a bateção de sementes, sobra para as mulheres participar das “farinhadas”, em sistema de rodízio, até que se acabe a mandioca de farinha de toda a vizinhança.

Aforante o casamento, a alegria e o regozijo são os mesmos da pamonhada e da matança de capado: “exclusive” as cantarolas, as conversas-moles, as rezas e bem-querenças.

Farinha de mandioca

farinha de mandioca e o polvilho são dois dos principais produtos obtidos a partir das raízes da planta “Manihot esculenta” – classificação binomial determinada pelo botânico Crantz (Heinrich Johann Nepomuk von Crantz) – a mesma espécie citada por Djavan, baseada na nominação anterior do naturalista Polh (Johann Baptist Emanuel Pohl) para essa planta Euphorbiaceae.

Etimologicamente, “mandioca” origina-se do termo tupi “mãdi’og”, que significa “casa de Mani”, a deusa dos guaranis que se transforma em “mani-oca”. Do nome da deusa originou-se “Manihot”, usado na denominação científica.

Enquanto que a composição do polvilho é basicamente amido cru (de ampla utilização na fabricação de biscoitos, bolos, tapioca, goma e cola, dentre outros), a farinha de mandioca é composta por amido e fibras desidratados por meio da prensagem e posterior “torra”, no tacho ou no forno.

Assim como a mandioca, a farinha desta raiz apresenta em média 82,5% de amido, 2,7% de fibras, 0,3% de matéria graxa, 2,4% de cinzas, 0,2% de açúcares redutores e 2,6% de proteínas (dados de Cereda et al., 2003). Portanto, a farinha de mandioca é um alimento altamente energético e de baixíssimo teor proteico – praticamente zero.

Quase todos os alimentos encontrados no supermercado – inclusive os “in natura” – são preservados a partir de algum método de conservação comumente utilizado pelo homem: salga, defumação, desidratação, resfriamento, congelamento, cozimento, pasteurização, apertização, liofilizacao, concentração por adição de açúcar, ou uso de aditivos químicos ou naturais.

Esses métodos visam eliminar, diminuir ou paralisar o crescimento dos microrganismos (bactérias e fungos) que causam o apodrecimento dos alimentos; reduzir ou paralisar a fisiologia dos produtos (sim, as frutas, raízes, tubérculos, e outros vegetais, após a colheita, continuam vivos e respirando) a fim de evitar que se deteriorem.

A farinha de mandioca é basicamente mandioca desidratada, obtida ao se retirar água da raiz arrancado do solo, descascada e triturada, privando os microrganismos porventura presentes em sua biota natural, ou contaminantes, da umidade essencial ao seu desenvolvimento e preservação. Ao se extrair a água, impede-se também a fermentação, já que esta carece de leveduras e bactérias para ocorrer.

Nas casas de farinha – como são chamados os locais de fabricação – a desidratação se inicia após o processo de trituração das raízes. Por meio de prensas, ou de um tecido branco, a massa de mandioca triturada é prensada ou torcida, retirando-se a água livre, denominada “manipueira” (que embora seja tóxica e poluente – devido ao ácido cianídrico –, é “amansada” para a obtenção do molho “tucupi”, utilizado no famoso prato amazonense “pato no tucupi”. A massa prensada é então quebrada, “descaroçada” e torrada em um tacho próprio, até adquirir a coloração desejada.

A farinha de mandioca recebe diferentes denominações conforme a região, padrão de identidade do produto ou tecnologia de obtenção. Bariani Ortencio cita a “farinha de beiju”, formada por lâminas e torrada, segundo ele “a preferida do povo da cidade”. Joaquim Rosa menciona a “farinha de pau” (“…em frente, a estrada ligando Goiás à Bahia, por onde desciam grupos de baianos, capangas de carnes secas, rapadura e ‘farinha de pau’…”). E Carmo Bernardes se refere à “farinha de puba”, granulada e azeda: “… o resto só mesmo a ‘farinha de puba’, o sal e alguns pedaços de rapadura”.

A Instrução Normativa n° 42/2011, do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), classifica as farinhas de mandioca em três grupos: seca (fabricação tradicional); d’água (fabricada após a fermentação das raízes, submersas em água, o mesmo que “de puba”); ou bijusada (formada por lâminas), conforme exemplos na literatura  acima citados. A mesma Instrução Normativa estabelece três classes para o produto: fina, média ou grossa, conforme sua granulatura, confirmando a percepção de Djavan.

Centenas de pratos da culinária são preparados com base na farinha de mandioca. Se muitos brasileiros não se acostumaram a usar esse produto para engrossar algum tipo de comida, por certo se depararão com o churrasquinho de carne molhado em molho de tomate e passado na farinha. Ou com pirão de peixe, ou ainda com farofa e feijão tropeiro, durante uma degustação de picanha.

A base da sustentação alimentar dos primeiros portugueses ao chegarem ao Brasil, era a “farinha de pau”, razão pela qual o Padre Manoel da Nóbrega ajustou-se com o Cacique Tibiriçá, no Planalto de Piratininga, mudando-se com seus jesuítas para fundar a Vila de São Paulo de Piratininga.

O Padre José de Anchieta (1534-1597) em Carta do quadrimestre de maio a setembro de 1554, dirigida ao Santo Ignácio de Loyola, em Roma (“Minhas Cartas” 158 p.) anotou: “Para sustento destes meninos, a farinha de pau era trazida do interior, da distância de 30 milhas. Como era muito trabalhoso e difícil por causa da aspereza do caminho, ao nosso Padre (Padre Manuel da Nóbrega) pareceu melhor no Senhor mudarmo-nos para esta povoação de índios, que se chama Piratininga.(…) Por isso, alguns dos irmãos mandados para esta aldeia no ano do Senhor de 1554, chegamos a ela a 25 de janeiro e celebramos a primeira missa numa casa pobrezinha e muito pequena no dia da conversão de São Paulo, e por isso dedicamos ao mesmo nome esta Casa”. A maior cidade do Brasil foi fundada em razão da necessidade alimentar dos primeiros colonizadores pela mandioca, base da alimentação brasileira naqueles dias. Quinhentos anos depois, a farinha nossa de cada dia continua no cardápio do brasileiro.






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